Tema central
NUSO Nº Junho 2017

Há outro mundo possível construído pelas tecnologias de participação política?

Movimentos políticos e sociais ao redor do mundo USAM cada vez mais as tecnologias de informação e comunicação (TICS), dando ensejo a perspectivas de transformação da democracia. No entanto, tais ferramentas ainda não conduziram a um maior protagonismo da sociedade em relação ao Estado nem a uma melhor distribuição de poder. Esta reflexão busca identificar os principais desafios e riscos para os instrumentos digitais de participação política.

Há outro mundo possível construído pelas tecnologias de participação política?

O desenvolvimento da internet vem alterando profundamente as dinâmicas sociais, econômicas e políticas, e o potencial do uso das tecnologias de informação e comunicação (tics) para transformar a democracia é bastante destacado pela literatura1.

Nos últimos anos, o mundo tem assistido a diversas manifestações políticas que utilizam ou são construídas com o uso cada vez mais intenso da internet e das tics. Alguns exemplos recentes são as revoltas árabes; o movimento de indignados, que passou a ter papel político de destaque na Espanha, com o #15-m, o partido político Podemos e as confluências municipalistas; o Movimento dos Girassóis e a recente nomeação de Audrey Tang como ministra digital em Taiwan. As tics potencializam as interações e a produção, distribuição e compartilhamento de informações, com custo reduzido e significativa rapidez, diminuindo as barreiras associativas antes existentes2.

No Brasil, os protestos e passeatas mobilizados com o uso intensivo de ferramentas digitais passaram a ocupar o centro da dinâmica política desde junho de 2013 e, do ponto de vista governamental, pelo menos há oito anos vêm sendo desenvolvidas iniciativas de inovação tecnológica para a participação social, com destaque para o Cultura Digital/Consulta Pública3 que baseou a consulta do Marco Civil da Internet, o Delibera/Pensando o Direito4, o Noosfero/Participa.br5 e as experiências de Conferências Nacionais que utilizaram ferramentas digitais.

Tais episódios e iniciativas seriam evidências do que este artigo entende como a emergência de democracia em rede, que promete, entre outras coisas, o protagonismo da sociedade em relação ao Estado e a distribuição de poder. E embora tenhamos observado a multiplicação destas iniciativas e o surgimento de um campo de tecnologias digitais de participação política, esta promessa de transformação parece ainda não ter sido respondida. Uma das razões mais citadas para explicar esta dificuldade de avançar rumo a uma nova democracia é a resistência dos políticos, partidos e empresas que têm se beneficiado do paradigma autocrático e centralizador.

Sem refutar tal argumento ou diminuir seu peso, buscaremos construir uma reflexão política que identifique outros desafios e riscos para este campo de tecnologias digitais de participação política, como a complexidade de obter simultaneamente alguns elementos como escala sem intermediação, qualidade no debate sem exclusão, mudanças permanentes nas instituições estatais e construção de comuns.

Responder aos principais dilemas e desafios que o uso de tecnologias na participação e no debate político revela parece ser a medida correta para avaliar a chance de o ecossistema de tecnologias de participação social lograr impacto coletivo. Sem isso, faltariam algumas das condições mínimas para se construir um sentido político ou uma agenda comum neste campo. Nas próximas linhas, tentamos resumir esses dilemas em seis questionamentos.

O sucesso da audiência é bom para a democracia?

A massificação das plataformas de «social media» trouxe a promessa da comunicação horizontal de muitos para muitos e a possibilidade de fazer mobilização sem a necessidade de dispor do controle dos meios, como acontecia com a velha mídia broadcast. Grupos que são capazes de se organizar em torno de recursos comunicacionais e de campanha levam sua mensagem para muito mais gente, constituindo-se como fortes atores na disputa de agenda nesses ambientes.

Esse fenômeno também fez surgir um novo tipo de ativismo e de advocacy, facilitado por novos intermediários que aproximam o cidadão comum, pré-digerindo pautas difíceis e facilitando a formação de «massas de incidência» via sistemas automatizados de publicação, envio de e-mails e telefonemas direcionados aos alvos da mobilização, quase sempre atores que ocupam cargos públicos.

Aliado aos algoritmos dos principais ambientes de mídias sociais, esse novo tipo de ativismo acaba reforçando a lógica de disputa por audiência, que maximiza as chances de vitórias de campanhas em função de a pauta ter apelo midiático ou ser atrelada a eventos específicos, reduzindo assim as possibilidades de que as novas tecnologias fortaleçam um advocacy motivado a reformas institucionais ou agendas mais amplas de políticas públicas.

Os ambientes de mídias sociais e o «novo advocacy» baseados em software proprietário e algoritmos não transparentes são muito bons em catapultar mensagens, segmentar público e proporcionar uma arena de disputa por audiência. E todas essas qualidades, ainda que tragam alguns resultados políticos positivos, são muito mais eficientes para o retorno do investimento em publicidade. Campanhas em torno de produtos (políticos ou não políticos) têm agora à sua disposição uma ferramenta mais complexa e efetiva para influenciar o público, permitindo novas combinações de recortes e associação de sentimentos e afetos com produtos e mensagens. Por outro lado, são péssimas para o debate político.

Para isso, precisamos de arquiteturas de interação e algoritmos que valorizem a cultura e as dinâmicas democráticas de distribuição de poder, transparência e que sejam eficientes na identificação de ruídos e no estabelecimento de consensos mínimos, focando a discussão onde realmente importa: nas decisões que serão tomadas por um método democrático.

É por isso que seguimos nos perguntando: para onde isso nos levará no longo prazo? Devemos nos conformar a uma lógica de advocacy repaginada, que consegue mobilizar o cidadão comum através de mensagens impactantes e bem sincronizadas, como o próximo passo na direção da democracia em rede?

Nossa resposta é não. Talvez possamos oferecer uma teoria de mudança mais adequada para a promessa da democracia em rede, que consiga estimular a ação coletiva autônoma, superar o limite da participação orientada a eventos e construir arranjos comuns que sejam capazes de impactar as instituições no caminho da participação e da melhora da democracia. Falaremos disso mais adiante.

Qualificar o debate resultará sempre em elitização?

Esse diagnóstico que resumimos na seção anterior não é novo. Diversas organizações e governos, aliados a comunidades de código aberto6, vêm desenvolvendo e utilizando aplicativos baseados em arquiteturas de interação e algoritmos que buscam o debate informado e autônomo entre ideias diferentes, com vistas a aprimorar a formação de consensos, o encaminhamento de decisões coletivas e o aprimoramento de recursos comuns.

Exemplos como o Liquid Feedback7 (Partido Pirata), as consultas públicas colaborativas baseadas em Dialogue e Delibera8 (Marco Civil da Internet9, Pensando o Direito10, Participa.br), Cidade Democrática11 (Concursos de ideias, Webcidadania Xingu12), Decide Madrid13 (Consul14), Decidim Barcelona15 (Decidim16), Democracyos (Argentina), Democracit17 (Grécia) e Empatia (Portugal/Itália), entre outros, mostram que existe uma vontade manifestada por diversos tipos de organizações em oferecer alternativas para diálogos democráticos na rede. Mas essas experiências em geral não escalam nem estão gerando resultados com impacto.

Por que essas experiências não escalam e não geram impacto? Porque elas ainda partem do perfil do ativista que tem recursos cognitivos, tempo, motivação e formação para atuar nessas plataformas. Em outras palavras, a forma com que essas soluções são feitas requer cidadãos empoderados, que tenham recursos cognitivos ou que já tenham adquirido voz política18 através de outros processos de participação offline. Elas acabam chegando apenas à «elite da participação», ou seja, pessoas que já têm predisposição e tempo de participar.

Por isso, acreditamos que o desenho da deliberação coletiva deve levar em consideração o aspecto pedagógico da interação. Para nós, a aposta correta consiste em criar arquiteturas e algoritmos de participação com interfaces minimalistas e dinâmicas – que vamos chamar aqui de arquiteturas de discussão crowdsource19 capazes de promover um aumento gradual na energia de engajamento que os participantes podem oferecer em cada momento. O processo é capaz de considerar diversos tamanhos e disponibilidades de participação, e todos os elementos são aproveitados para o resultado. Quase nenhuma informação se perde.

Então essa é uma primeira constatação: o formato de discussão mais tradicional, cuja imagem mais conhecida é a dos antigos fóruns de discussão e cuja arquitetura será chamada aqui de «árvore de comentários», traz em si um grande limite de engajamento, exigindo que o participante embarque numa discussão com recursos e disposição para travar longas conversas e muitas vezes exigindo uma série de conhecimentos prévios que não estão amplamente distribuídos na sociedade.

Além disso, mesmo para aqueles que se mobilizaram para participar no processo tradicional em árvore, os incentivos em relação aos resultados da conversa são pouco animadores: normalmente, não há um processo de deliberação claro que aproveite toda aquela informação disponibilizada pelos participantes, gerado uma sensação de impotência em quem participou.

As arquiteturas em árvore ou mistas que apresentam processos mais claros de deliberação (Loomio20, Cidade Democrática21, Decide Madrid, Decidim Barcelona, Aplicativo da Conferência da Juventude22, Liquid Feedback23 ou até mesmo o proprietário Considerit) o fazem ao custo de aumentar sensivelmente a complexidade do processo, estabelecendo fases, regras e obrigações que acabam por diminuir ainda mais o potencial de engajamento, mesmo que a sensação de efetividade da discussão aumente para aqueles que ultrapassaram a barreira.

Na última década, portanto, parte considerável das iniciativas cívicas e governamentais se resumiu a arquiteturas pouco inclusivas e com pouco potencial de engajamento em escala, ao mesmo tempo em que as mídias sociais conquistaram bilhões de usuários e consolidaram uma lógica de audiência que impulsionou o novo advocacy mas contribuiu pouco para a colaboração entre Estado e sociedade.

Um Estado sem soberania tecnológica resiste às mídias sociais?

Os governos aderiram às mídias sociais como consumidores, o que fica evidenciado pelos resultados da pesquisa tic governo eletrônico24, que revela, por exemplo, que no Brasil 92% dos órgãos federais, 74% dos estaduais e 62% das prefeituras estão presentes por meio de perfil ou conta próprios em redes sociais como o Facebook e o Twitter. E, embora os resultados não apresentem detalhes sobre a qualidade do uso de tais tecnologias, esses números revelam os avanços recentes na infraestrutura de acesso e na relevância política atribuída ao uso de tais ferramentas, além de indicar que os governos conseguem mobilizar certos recursos para a adoção e utilização de tecnologias disponíveis.

No entanto, apenas metade dos órgãos federais conseguiu oferecer «website adaptado para dispositivos móveis ou desenhado em alguma plataforma versão mobile, proporção que foi de 42% nos órgãos estaduais». Quando analisamos a porcentagem de órgãos que criaram e disponibilizaram aplicativos digitais próprios, encontramos 33% dos órgãos federais, 20% dos estaduais e apenas 4% das prefeituras.

E, se por um lado todas as prefeituras (de uma amostra de mais de 1.200 municípios) declararam ter utilizado computador e internet, nem metade delas (41%) possui uma área ou departamento de Tecnologia da Informação (ti). Apenas 29% das prefeituras da região Nordeste e 25% dos municípios com até 10.000 habitantes declararam ter uma área de ti. Nas esferas federal e estaduais, a maior parte dos órgãos públicos já possui área ou departamento de ti, sendo que a existência dessa área estava praticamente universalizada entre os órgãos da esfera federal (97%) e presente em 83% dos órgãos estaduais.

Os resultados (porcentagens) variam de maneira inversamente proporcional às exigências e complexidades de cada atividade e, mesmo que a pesquisa não tenha questionado diretamente para além dos recursos administrativos e institucionais, é possível inferir que algumas das causas estejam relacionadas justamente com o baixo desenvolvimento de capacidades estatais para produção e governança destas tecnologias, sendo mais fácil consumir ou utilizar – como usuário – as tecnologias já existentes e disponibilizadas no mercado.

Além de ser custoso e exigir profissionais especializados, o desenvolvimento e a governança de tecnologias por parte dos governos esbarra ainda nas limitações de contratação25. A adesão (como consumidor) de plataformas de serviços/mídias sociais gratuitas oferece um caminho alternativo. Em um cenário onde as experiências cívicas e governamentais demonstraram alcançar pouca escala, e, por outro lado, sendo a ampla maioria da população já usuária de mídias sociais, a adesão governamental e o uso de tais mídias para ações de consulta e deliberação participativa acaba sendo inevitável. Porém, esse uso acarreta enormes riscos, como veremos a seguir.

As bolhas de opinião e o marketing digital dificultam o debate democrático?

Tais riscos podem ser exemplificados com o que se passou no recente plebiscito na Colômbia, que acabou recusando o acordo de paz. Mas poderiam ser descritos a partir da polarização política que se acentuou no Brasil nesses últimos anos, com o que aconteceu com o plebiscito do Brexit, com a eleição de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos, enfim, com o que tem acontecido em qualquer discussão política que se faz nas redes sociais (cada vez mais marcadas pela produção e compartilhamento de boatos e notícias falsas e pela desinformação)26.

Por exemplo, muitas pessoas na Colômbia começaram a acreditar que, se votassem pelo acordo de paz, estariam votando para que o chefe das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (farc) pudesse ser o próximo presidente – e que as duas coisas seriam iguais de alguma maneira. Esta mensagem foi impulsionada (posts patrocinados, perfis falsos e «robôs») e passou a atrair boa parte da atenção – em especial pelo seu caráter emocional e por aproveitar de questões mais técnicas e complicadas do acordo que eram pouco compreendidas pela população em geral.Quem nunca teve vontade de escrever aquele post e de conseguir falar com essas pessoas? Chamar atenção para algum fato, botar o foco em algum dado, mas não conseguiu falar para todo mundo? Nas mídias sociais, não há o todos para todos. Não há mais um ciberespaço sem barreiras. Não há um espaço público comum, portanto.

Quem já percebeu estar limitado a uma bolha de opinião com amigos que pensam igual ou parecido e deixar de estar em contato com a diferença e de debater com o diferente? Em resumo, quem nunca se sentiu nadando contra uma corrente de manipulação e medo que acaba dominando a vista das pessoas, sem ter voz para contrapor por estar confinado, sem condições de disputar os fluxos dominantes de informação (construídos cada vez mais artificialmente)? Junto com a baixa inclusão (tanto de acesso como das altas barreiras cognitivas das ferramentas cívicas27), avaliamos que a questão da polarização/manipulação é um dos principais problemas da democracia digital.

O desafio parece estar em desenvolver tecnologias que respondam a duas perguntas. Em primeiro lugar, como dar mais poderes para quem fica em uma situação de minoria e está sendo esmagado pela avalanche de mensagens manipuladas (e cujas mensagens não conseguem visibilidade nas redes sociais, chegando a cada vez menos gente)? Além disso, como permitir que os indecisos sejam informados e possam trazer perguntas e diversidade para a maioria?

Os recentes experimentos conduzidos pelo Instituto Cidade Democrática buscam o desenvolvimento de tecnologias que respondam a essas questões, superando a arquitetura complicada e excludente das ferramentas utilizadas pelos governos e trazendo diversidade para as bolhas de opinião, que alienam as pessoas do debate informado e prejudicam a capacidade das minorias de comunicarem suas agendas. A metáfora é a dos freios e contrapesos democráticos, para garantir diversidade ao debate ao impedir que um só lado domine o fluxo principal de comunicação, como acontece nas principais plataformas de redes sociais utilizadas.

Ação coletiva autônoma é suficiente para mudar políticas?

Pudemos apresentar aqui algumas das armadilhas de se optar por algoritmos e arquiteturas de interação que apostam na audiência como meio de obter escala e operam por eventos, mantendo os padrões de broadcast, reforçando um tipo de participação passiva atrelada a fortes estruturas de intermediação, mantendo a mesma cultura política e estimulando o consumo de conteúdos e pautas em vez de ações coletivas autônomas.

Para efetivar uma democracia em rede, devemos fomentar ações coletivas autônomas, que respondam aos interesses singulares e a contextos hiperlocais estimulando o papel de produtor de pautas que cada pessoa pode assumir. No atual contexto, no entanto, há poucos incentivos para esse tipo de ação encontrar destaque e repercussão, pois as iniciativas acabam sendo marginalizadas pelas atuais estruturas de intermediação.

Além de estar limitada pela audiência, a ação autônoma traz consigo um risco adicional de se descolar da realidade dos grandes desafios coletivos, já que é fruto da reunião de interesses singulares de pequenos grupos de pessoas, podendo se descolar do que é deliberado, planejado e priorizado pelas instituições políticas (atribuições constitucionais, eleições, orçamentos, conselhos, conferências, etc.).

Dessa forma, parece necessário que haja um tipo de «cola» entre as agendas societais oriundas da ação coletiva autônoma e as agendas estatais para as quais já existe recurso público mobilizado (orçamento público) e que respondem às demandas mais críticas (indicadores sociais). Quando a ação coletiva autônoma inclui esses dois diagnósticos na sua estratégia de atuação, aumenta a probabilidade de impacto no resultado da sua própria ação, levando o Estado a planejar e executar melhor o orçamento público nas áreas que mais precisam da política.

Hoje, tanto os processos de advocacy como os de participação social implementados pelo Estado e a sociedade civil não têm levado em consideração esses diagnósticos de evidência, sofrendo pela ausência de impacto e transformação das instituições. Desenhar processos de participação que deem escala para fomentar ações coletivas autônomas em torno dos pontos de interseção entre desejos populares, recursos públicos existentes e indicadores sociais deficitários parece ser o caminho para resolver este problema. Além disso, essa opção fornece uma narrativa forte para motivar o engajamento público em torno de soluções de problemas críticos para os quais há pontos de contato nas instituições públicas.

Para que essa «cola» exista, defendemos a articulação entre as iniciativas de participação social com iniciativas que mapeiem recursos públicos e indicadores sociais (por exemplo, ips Amazônia), apresentando-as através de visualização e dados abertos. Por outro lado, a disponibilização pública, aberta e acessível de informações sobre recursos públicos e indicadores sociais aumenta a efetividade das ações coletivas autônomas de participação social.

Articular sociedade e Estado em torno do comum?

Outra barreira para a distribuição de poder e para que a cidadania exerça um papel protagonista é a disputa para comandar a forma através da qual a participação social deve ocorrer, o que pode ser traduzido como: quem decide quais processos e aplicações serão adotados. Essa decisão diz respeito à arena onde se dará a participação, impactando sua qualidade e efetividade. A arquitetura, os algoritmos e a apresentação do processo acabam influenciando o perfil, a escala e o real poder de influência das pessoas que participam. São decisões importantes que precisam estar abertas para a cidadania.

A despeito dos recentes avanços na discussão sobre governo aberto e na mudança da perspectiva de governo eletrônico para governança digital28, o Estado ainda mantém uma exagerada prevalência na definição dos métodos e tecnologias de participação. Tanto o modelo de adoção de tecnologias proprietárias como o modelo fechado de produção por empresas públicas acabam por impor barreiras à participação direta da sociedade na governança (produção, uso e modificação) de tais tecnologias. No entanto, algumas experiências de adesão têm acontecido na política de participação social do governo federal brasileiro durante os últimos sete anos e merecem atenção.

A mais significativa dessas experiências, materializada na consulta pública do Marco Civil da Internet29 (2009), teve sua tecnologia baseada no trabalho de uma comunidade de código aberto30 que atuava na agenda de cultura digital, capitaneada pelo Ministério da Cultura. Como desdobramento dessa experiência, uma série de outras consultas públicas utilizaram a mesma tecnologia ou articularam outras comunidades de código aberto que estavam desenvolvendo tecnologias de deliberação coletiva na rede.

Este também foi o caso das iniciativas do Participa.br e do Pensando o Direito, que aderiram a pelo menos três comunidades de código aberto: Noosfero, Delibera (Wordpress) e Allourideas (Pairwise)31. O ponto em comum dessas iniciativas é que elas foram todas baseadas na utilização e adesão a comunidades de desenvolvimento de software livre que já vinham atuando na criação de tecnologias inovadoras de deliberação coletiva. Mesmo sem um instrumento formal de governança, os desenvolvedores mais ativos dessas comunidades de código passaram a ter um papel ativo nas discussões e definições sobre a tecnologia que estava sendo desenvolvida, pois muitas vezes seu conhecimento era demandado pelas equipes dos órgãos do Estado. A prática mostra que, nestes casos, o Estado passou a ser um importante membro das comunidades, desenvolvendo código e aperfeiçoando as tecnologias. Por outro lado, o efeito do investimento estatal nas comunidades pequenas pode levar à concentração de poder nos agentes públicos, desequilibrando o arranjo voltado a distribuição de poder entre os vários agentes.

Uma lacuna importante na estratégia dessas comunidades é construir um arranjo cujo modelo de negócios viabilize também a adesão das prefeituras com baixa capacidade financeira e técnica, que nunca desenvolveram ou disponibilizaram aplicativos (96% segundo a tic governo eletrônico). Um modelo que viabilize a adesão de um grupo maior de governos e distribua os custos de desenvolvimento entre eles parece mais sustentável em um ambiente de grande descontinuidade dos projetos e investimentos públicos.

Acreditamos que uma saída plausível para preencher essa lacuna seja a gestão de políticas públicas a partir de arranjos de comuns nos quais o Estado participa por adesão e passa a contratar serviços de baixo custo (coerentes com as limitações financeiras e jurídicas existentes) ou estabelecer parcerias com outros governos no interior do arranjo. A lógica orientada a serviços e a licença de código e conhecimento aberto criam as condições para desenvolver a soberania tecnológica por parte dos governos, independentemente de suas capacidades prévias, pois possibilita a oferta de serviços de capacitação e de suporte (para construir tais capacidades de maneira crescente).

Progressivamente, a comunidade do software passa a contar com mais governos e organizações da sociedade civil, ampliando a oferta de serviços ou de parcerias (governo-governo) possíveis. O consórcio de desenvolvimento, inspirado por iniciativas similares em outras partes do mundo32, parece-nos uma solução que diminui os custos para cada cliente, ao mesmo tempo em que responde às necessidades de investimento e custos que uma tecnologia de ponta exige.

Acreditamos que o conhecimento para construir e manter relações com comunidades de código aberto e gerir o desenvolvimento e utilização de software como um bem comum é uma capacidade estatal que precisa estar presente nas instituições públicas. Só um arranjo que desenvolva utilizando softwares livres já em operação e com desenvolvimento ativo pode, ao mesmo tempo, viabilizar a adesão e a manutenção de tecnologias de ponta por parte do Estado, seja do ponto de vista dos custos, seja do ponto de vista da autonomia.

Extrapolando essa relação, pensar o desenvolvimento de qualquer política pública a partir de arranjos de comuns que garantam a soberania do Estado (muitas vezes dependente de processos isolados e tecnologias proprietárias), ao mesmo tempo em que preservem a autonomia da sociedade, parece ser condição necessária para operar transformações institucionais que diminuam a assimetria informacional e produzam políticas duradouras e com desenhos democráticos. Vemos isso como um caminho nítido para construir as pontes que nos levarão para a democracia em rede.

Conclusões

Buscamos apresentar aqui uma síntese de nossa mais atual reflexão sobre os limites encontrados pelo ecossistema de tecnologias de participação social, analisando um modelo de advocacy baseado em eventos e outro modelo de deliberação qualificada, porém sem escala. Colocamos ambos os modelos em evidência a partir de uma discussão que tem, como pano de fundo, as promessas de viabilizar uma democracia em rede que permita ações coletivas autônomas e distribua poder, diminuindo a assimetria entre Estado e sociedade e construindo comuns, mas que hoje encontram-se conformados em uma esfera pública interconectada que se confunde com as principais mídias sociais e impulsiona o fenômeno de polarização e manipulação.

Como dissemos, o desenho das estratégias de engajamento que nos parece mais promissor nestes dias, fortemente marcados por algoritmos de segmentação e polarização, é aquele que vai articular, num arranjo de código aberto e de comuns, uma arquitetura de interação crowdsource, antídoto para as bolhas e a manipulação com recursos estatais e indicadores públicos.

Trata-se do resultado de uma reflexão de fôlego, motivada pelo incômodo de encontrar pouca potência de construção dessa democracia em rede no atual ecossistema em que estamos inseridos. Esta teoria, hoje, tem moldado o desenvolvimento de nossos novos produtos e protótipos no Instituto Cidade Democrática. Compartilhar essas reflexões com todos os que nos acompanham e demais interessados em superar os desafios aqui colocados é a nossa contribuição para o campo de tecnologias digitais de participação política, com a esperança de favorecer a construção de uma agenda política coletiva.

  • 1.

    Henrique Carlos Parra Filho: é diretor executivo do Instituto Cidade Democrática e mestrando em Gestão de Políticas Públicas na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (gpp - each usp). Correio eletrônico: .Ricardo Augusto Poppi Martins: é diretor de Tecnologia do Instituto Cidade Democrática e mestrando em Ciência Política, Instituto de Ciência Política, Universidade de Brasília (ipol/unb). Correio eletrônico: .Palavras-chave: advocacy, comunicação, democracia, informação, internet, tecnologias.. Ver Pierre Lévy: «Pela ciberdemocracia» em Dênis de Moraes (org.).: Por uma outra comunicação, Record, Rio de Janeiro, 2003; Yochai Benkler: The Wealth of Networks: How Social Production Transforms Markets and Freedom, Yale University Press, New Haven, 2006 e Manuel Castells: A sociedade em rede, Paz e Terra, São Paulo, 2008.

  • 2.

    Clay Shirky: Lá vem todo mundo. O poder de organizar sem organizações, Zahar, Rio de Janeiro, 2012, pp. 23-25.

  • 3.

    Em julho de 2009, o Ministério da Cultura lançou o Fórum da Cultura Digital Brasileira com o objetivo de agregar em uma plataforma web pessoas e fluxo de conteúdos ligados à construção de políticas públicas e marcos regulatórios para o digital. A plataforma estimulou a participação de mais de 7.000 integrantes, que criaram quase 2.000 blogs, 400 grupos de discussão e 500 fóruns até julho de 2012. Debates importantes, como a criação do Marco Civil da Internet, proposto pelo Ministério da Justiça em 2010, usaram a rede não apenas como espaço de discussão, mas como ferramenta para a colaboração do público e sistematização de contribuições enviadas ao projeto de lei. V. http://culturadigital.br/marcocivil/.

  • 4.

    Delibera é um software livre para sugestão, voto e deliberação de ideias. Foi adotado e aprimorado pelo Ministério da Justiça para o desenvolvimento da plataforma Pensando o Direito. V. https://github.com/redelivre/delibera e http://pensando.mj.gov.br/.

  • 5.

    Noosfero é um software livre para redes sociais que possui as funcionalidades de blog, e-portfólios, rss, discussão temática e agenda de eventos. Foi adotado e aprimorado pela Secretaria de Governo (antiga Secretaria-Geral da Presidência da República) para o desenvolvido da plataforma Participa.br. V. http://noosfero.org/ e www.participa.br/.

  • 6.

    Chamamos de «comunidade de código aberto» os coletivos organizados em torno de comuns de conhecimento como tecnologias sociais ou software livres, como os softwares Consul e Decidim na Espanha, ou ainda Noosfero e Mapas Culturais no Brasil.

  • 7.

    http://liquidfeedback.org/.

  • 8.

    https://github.com/ethymos/delibera.

  • 9.

    http://culturadigital.br/marcocivil/debate/.

  • 10.

    http://pensando.mj.gov.br/debates/.

  • 11.

    www.cidadedemocratica.org.br/.

  • 12.

    http://webcidadaniaxingu.org.br/.

  • 13.

    https://decide.madrid.es/.

  • 14.

    https://github.com/consul/cónsul.

  • 15.

    https://decidim.barcelona/.

  • 16.

    https://github.com/AjuntamentdeBarcelona/decidim.barcelona.

  • 17.

    .

  • 18.

    Kalinca Gutierrez Copello: «‘Thinking and Speaking for Ourselves’: The Development of Shack Dwellers’ Political Voice in the Age of icts», tesis doctoral, University of Sussex, 2015.

  • 19.

    Usamos aqui o conceito crowdsource significando um processo onde uma massa de participantes se organiza para convergir a objetivos comuns. Uma arquitetura de participação desse tipo é aquela que permite engajar milhares de pessoas numa mesma discussão, absorvendo diversos níveis de engajamento.

  • 20.

    www.loomio.org/.

  • 21.

    www.cidadedemocratica.org.br/.

  • 22.

    http://app.juventude.gov.br/.

  • 23.

    http://liquidfeedback.org/.

  • 24.

    Comitê Gestor da Internet no Brasil – cgi.br: tic governo eletrônico 2015. Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação no setor público brasileiro, coord. Alexandre F. Barbosa, cgi.br, São Paulo, 2016 disponível em http://cetic.br/media/docs/publicacoes/2/tic_egov_2015_livro_eletronico.pdf, acesso: 15/11/2016.

  • 25.

    Leonardo Germani: «Desafios para o desenvolvimento de serviços digitais pelo governo federal brasileiro», tese de mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (puc-sp), 2016.

  • 26.

    Hannes Grassegger e Mikael Krogerus: «Big Data: Toda democracia será manipulada?» em Outras Palavras, 5/2/2017, disponível em http://outraspalavras.net/posts/big-data-toda-democracia-sera-manipulada/.

  • 27.

    R. Poppi: «How Pol.is is being adopted by Cidade Democrática in Brazil» em Cidades Democráticas, 9/11/2016, https://medium.com/cidades-democráticas/how-pol-is-is-being-adopted-by-cidade-democrática-in-brazil-1fd744b2aece#.g84wgza2o.

  • 28.

    Tomás de Aquino Guimarães e Paulo Henrique Ramos Medeiros: «A relação entre governo eletrônico e governança eletrônica no governo federal brasileiro» em Cadernos ebape.br vol. 3 No 4, 12/2005, disponível em www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1... (acesso: 13/1/2017); L. Germani: op. cit.

  • 29.

    http://culturadigital.br/marcocivil/debate/.

  • 30.

    http://culturadigital.br/.

  • 31.

    www.allourideas.org/.

  • 32.

    Experiência de consórcio espanhol: «Más de 30 instituciones usarán Decide Madrid para promover la participación ciudadana» em Europa Press, 13/12/2016, www.europapress.es/madrid/noticia-mas-30-instituciones-usaran-decide-madrid-promover-participacion-ciudadana-20161213144441.html; Consórcio/arranjo open source compartilhando infraestrutura tecnológica: «Barcelona comparte la plataforma de participación ciudadana con seis municipios del área metropolitana» em La Vanguardia, 1/2/2017, www.lavanguardia.com/local/sabadell/20170201/413903936115/barcelona-comparte-plataforma-de-participacion-ciudadana-con-6-municipios.html?utm_campaign=botones_sociales&utm_source=twitter&utm_medium=social.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Junho 2017, ISSN: 0251-3552


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