Artículo
NUSO Nº Outubro 2008

A integração no espaço sul-americano. A Unasul e o Mercosul podem se complementar?

O espaço sul-americano constitui um subsistema internacional diferenciado. Hoje, a região se encontra cada vez mais interconectada, apresenta diversidades marcantes e atravessa um processo de mudança. Neste contexto, a questão da governabilidade adquire importância especial. O Mercosul e a Unasul são as iniciativas institucionais da maior relevância no momento de conferir institucionalidade ao espaço sul-americano. Em ambas, o Brasil desempenha um papel fundamental. O artigo sustenta que, embora existam inúmeros problemas, os dois processos podem se complementar a fim de contribuir para um entorno de paz e estabilidade política na região.

A integração no espaço sul-americano. A Unasul e o Mercosul podem se complementar?

América do Sul como um espaço regional diferenciado

A América do Sul apresenta características de um subsistema político internacional diferenciado. São características muito ligadas à geografia, à vizinhança e à história. Hoje, elas também se relacionam com recursos compartilhados e com a proximidade de seus mercados. Essas características resultam em uma agenda de questões dominantes – políticas, econômicas e sociais – que refletem problemas e oportunidades comuns, e que muitas vezes demandam respostas coletivas.

Na realidade, a idéia de um espaço sul-americano diferenciado tem raízes históricas profundas. Como já foi ressaltado, é um espaço diferenciado por motivos geográficos, que por sua vez potencializam a conexão das respectivas agendas nacionais. Os efeitos de contágio do que ocorre em qualquer país sobre os demais costumam ser intensos. Isso não significa que seja um espaço regional separado, nem contraposto, a outros, nos quais os países sul-americanos se inserem em suas relações externas, como o latino-americano e o hemisférico. Tampouco implica que não existam diferenças dentro do próprio espaço sul-americano. Por exemplo, entre a sua vertente andina e a atlântica, ou entre a do Norte, que tende a se inserir no Caribe e que está mais vinculada economicamente com os Estados Unidos, e a do Sul, com uma tradição de vinculação européia.

A América do Sul constitui um espaço regional que, além de diferenciado, apresenta limites difusos, já que em muitas questões não pode ser distinguido do espaço mais amplo da América Latina e do Caribe. Esses limites difusos explicam o papel protagônico que em muitos casos o México desempenha em questões relacionadas com desenvolvimentos políticos na América do Sul.

Acontecimentos recentes revelaram a importância que esse entorno regional tem para os países sul-americanos – inclusive em sua dimensão latino-americana mais ampla –, especialmente quando devem ser encarados alguns problemas complexos de suas respectivas agendas políticas. Essa relevância se refletiu na Cúpula do Grupo do Rio em Santo Domingo, em março de 2008, e nos fatos que a precederam. Por se tratar do Grupo do Rio, o episódio teve uma dimensão latino-americana que incluiu um protagonismo significativo do México. Tal reunião contribuiu para desmantelar uma rota de colisão que, por seu alto grau de complexidade e confusão, poderia, naquele momento, ter fugido ao controle de seus principais protagonistas: Colômbia, Equador, Venezuela e, em certa medida, Nicarágua.

Com seus resultados em Santo Domingo, o Grupo do Rio conseguiu se reencontrar com sua função original. Esta era, precisamente, exercer uma mediação coletiva para dirimir e, dentro do possível, solucionar conflitos que envolvem um conjunto de países da região, e que ao mesmo tempo podem produzir um efeito-derrame sobre o resto. Como derivação do Grupo de Contadora, o prestígio do Grupo do Rio é explicado por seu papel relevante na abordagem, e depois na solução, da violência que dominou a região centro-americana durante os anos 1980.

A relevância do espaço sul-americano se refletiu na cúpula extraordinária da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), convocada em Santiago em setembro de 2008 a fim de analisar e contribuir para enfrentar os conflitos internos que têm ameaçado a democracia na Bolívia e, inclusive, a unidade interna do país. Embora seja muito cedo, no momento de escrever este artigo, para avaliar os efeitos que a mencionada reunião terá no desenvolvimento futuro do processo político boliviano, o certo é que a Declaração do Palácio de la Moneda permitiu a reflexão sobre a capacidade e a vontade política dos países sul-americanos de realizar contribuições concretas para a solução de problemas que podem alterar a paz e a estabilidade na região.

A mensagem da cúpula de Santiago e de sua declaração foi muito clara no sentido de que os problemas da democracia, em um país do espaço sul-americano, dizem respeito a todos os demais. Isto os mobiliza para a introdução de pautas de racionalidade que neutralizem eventuais propensões a soluções violentas. Além disso, os países sul-americanos conseguiram transmitir ao resto do mundo, com fatos, a idéia de que estão preparados e dispostos a assumir suas responsabilidades coletivas dentro da região.

O desenlace produzido nas duas reuniões foi, em grande medida, resultado de uma diplomacia – às vezes silenciosa, outras nem tanto – de alto nível, realizada antes e durante a cúpula mencionada por aqueles países com capacidade de incidir sobre a evolução política da região. Neste sentido, a Unasul poderia constituir um âmbito funcional para o exercício de uma liderança coletiva na região – o que, por si só, já justificaria sua existência e seu fortalecimento.

A institucionalização do espaço geográfico sul-americano

Sem voltar demais na história, nas primeiras décadas do século XX já havia iniciativas destinadas a impulsionar a institucionalização do espaço geográfico regional. Em geral, foram iniciativas que promoviam uma idéia denominada «União Sul-Americana». Naquela época, a visão estava especialmente concentrada no sul da região. Inclusive as propostas que levaram à constituição da Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC) se referiam aos países do sul americano, em geral identificados com os do «Cone Sul», que em sua versão mais ampla incluía a Bolívia e o Peru.

Em certa medida, a ALALC foi o resultado da visão política do presidente argentino Arturo Frondizi, junto com outros líderes da região. O interesse do México em participar mostra que, finalmente, a organização criada pelo Tratado de Montevidéu de 1960, assim como o processo de integração comercial desenvolvido em seu âmbito, teve um alcance latino-americano. O mesmo ocorreu, certamente, com sua posterior transformação em Associação Latino-Americana de Integração (ALADI) através da assinatura do Tratado de Montevidéu de 1980, em cuja elaboração o México teve um papel de destaque (a principal reunião negociadora foi realizada em Acapulco, marcada por forte liderança mexicana).

A criação do Grupo Andino, em 1969, contribuiu para colocar em evidência a identidade sul-americana da idéia de integração regional. A iniciativa andina dos presidentes Eduardo Frei, do Chile, e Carlos Lleras Restrepo, da Colômbia, foi fortemente influenciada pela necessidade de contrabalançar o papel predominante do Brasil e da Argentina na concepção e no desenvolvimento da integração regional, especialmente através da ALALC.

No entanto, apesar das iniciativas de integração propostas em distintos momentos, certo é que até recentemente o espaço sul-americano foi marcado pela lógica da fragmentação, alimentada por conflitos por territórios ou recursos compartilhados que haviam predominado desde o período da independência. Essa lógica se refletiu em vários conflitos armados, especialmente no século XIX.

Apenas na década de 1980 a maioria dos conflitos territoriais sul-americanos foi superada. O retorno à democracia contribuiu para instalar a lógica da integração nas relações internacionais dentro do espaço sul-americano. Além de sua finalidade econômica, a integração foi percebida desde então como um meio para fortalecer a tendência de consolidar os valores e as instituições da democracia. É a partir de então que o entendimento crescente no velho ABC – triângulo do sul das Américas, formado por Argentina, Brasil e Chile, que por sua vez integra um triângulo histórico com EUA e Europa – gera um núcleo duro embrionário com influência econômica e política em todo o espaço sul-americano.

Este núcleo duro se institucionaliza no Mercosul com a assinatura do Tratado de Assunção em abril de 1991. O Chile foi convidado a ser parte, junto com os quatro membros originais, e sempre teve uma presença implícita significativa apesar de não ter aceitado ser membro pleno. Prova disso é o grau de integração econômica – que se reflete no fluxo de comércio e investimentos – alcançado nos últimos anos entre o Chile e os países do Mercosul.

Vale ressaltar um fato que tem ajudado a conferir uma dimensão sul-americana a iniciativas que antes se limitavam ao Cone Sul: a importância crescente que o Brasil começa a outorgar à região em sua estratégia de desenvolvimento e de inserção no sistema internacional. Isto foi notório durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso e tem continuado, e inclusive se acentuado, durante a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva. Há uma tendência crescente de impulsionar iniciativas e participar ativamente do cenário regional. Trata-se, por outro lado, de uma participação que se manifesta também nos fluxos de comércio e investimentos e na presença cada vez maior de empresas brasileiras nas economias dos países sul-americanos.

Talvez seja por isso que, desde o início, o Brasil perceba o Mercosul com um alcance sul-americano. Inclusive durante as negociações do Tratado de Assunção, foi um representante brasileiro, o atual chanceler Celso Amorim, quem propôs substituir o nome Mercado Comum do Cone Sul, como figurava nos rascunhos originais e na imprensa, por Mercado Comum do Sul. Tudo isso é natural quando se leva em consideração que, para o Brasil, seu contexto contíguo – tão importante na política internacional de qualquer país – é quase toda a América do Sul. Este não é um dado menor em qualquer projeção que se realize sobre o papel que o Brasil aspirará a desempenhar no desenvolvimento futuro das relações entre os países deste espaço geográfico e, inclusive, na promoção de sua identidade como região diferenciada do resto da América Latina.

O caminho que levou à criação da Unasul, na Cúpula de Brasília de maio de 2008, iniciou-se com outra cúpula também realizada em Brasília, em agosto de 2000. Desde sua origem, foi um caminho com um sentido estratégico profundo e, ao mesmo tempo, com forte ênfase no desenvolvimento da conectividade física e energética do espaço sul-americano.

Do ponto de vista do Brasil – entre outros, por motivos geográficos evidentes –, as infra-estruturas física e energética requerem um enfoque sul-americano. Isto é demonstrado pelo fato de que uma das resultantes da primeira cúpula de Brasília tenha sido a Iniciativa para a Integração da Infra-Estrutura Regional Sul-Americana (IIRSA). E também pelas múltiplas conexões atuais e potenciais no desenvolvimento energético da região. Tanto a infra-estrutura física como a energética são questões que também requerem um enfoque regional no tocante ao financiamento dos projetos e dos marcos institucionais que facilitem os custosos investimentos que se fizerem necessários.

A Unasul constitui uma tentativa de criar um âmbito institucional que abranja toda a região. Nasceu com o Tratado de Brasília assinado em 23 de maio de 2008 e que deve ser ratificado por nove dos doze países signatários para entrar em vigência: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela. Nas cúpulas sul-americanas de Cuzco (Peru) em 2004, Brasília em 2005 e Cochabamba (Bolívia) em 2006, o nome era Comunidade Sul-Americana. Logo depois, por ocasião de uma cúpula energética na Ilha Margarita (Venezuela), em 2007, o nome mudou para o atual.

Seus objetivos são amplos. Incluem, segundo o Preâmbulo do Tratado de Brasília, contribuir para o fortalecimento da integração regional por meio de um processo inovador que possibilite avançar para além da mera convergência dos esquemas sub-regionais já existentes. Como se sabe, são eles o Mercosul e a Comunidade Andina de Nações (CAN), que celebraram entre si, no âmbito da ALADI, um acordo-marco de complementação econômica com a modalidade de uma rede de acordos bilaterais que podem convergir em um único espaço de livre mercado.

A Unasul surge então como uma iniciativa de forte perfil político, que inclui sua projeção internacional (como mostra a ampla enunciação do artigo 15 do Tratado) e que não exclui sua ampliação ao resto da América Latina (como afirmam os artigos 19 e 20).

É uma iniciativa de forte acento brasileiro. Reflete uma vontade deste país de impulsionar a institucionalização de um espaço geográfico composto por nações que, em sua maioria, fazem fronteira com o Brasil. Trata-se, portanto, de um ato de liderança do Brasil que tem conseguido consenso dos demais países, alguns com particular entusiasmo, como pareceria ser o caso do Chile. A presidente chilena, Michelle Bachelet, exercerá a presidência pró-tempore no período (segundo semestre de 2008) em que, espera-se, o Tratado deverá ser ratificado pelos países signatários. Neste período, poderia ser formalizado um consenso em torno do Conselho de Defesa Sul-Americano, uma iniciativa também brasileira.

Finalmente, pode-se ressaltar que a idéia de institucionalizar o espaço sul-americano corresponde a tendências que são observadas em outras regiões. Exemplos relevantes são os dois espaços geográficos regionais formados pela América do Norte e a bacia do Caribe, pela Europa e a bacia do Mediterrâneo e, em particular, pelo Sudeste Asiático. Nesta última região, consolidou-se a noção de «regionalismo multipolar», resultante de uma rede de acordos governamentais (entre os quais se destaca a Associação de Nações do Sudeste Asiático, ASEAN) e de um denso tecido de conexões empresariais. Trata-se de um regionalismo de geometria variável e de múltiplas velocidades, com exemplos que provavelmente influirão de forma cada vez maior no regionalismo sul-americano.

Os desafios da institucionalização do espaço sul-americano

São muitos os desafios que devem ser enfrentados para o desenvolvimento da institucionalização do espaço sul-americano. Dois deles se sobressaem: por um lado, sua conciliação com múltiplos espaços de inserção regional e global de cada país sul-americano; por outro, conferir aos âmbitos institucionais uma dose suficiente de credibilidade.

São desafios que vão se acentuar, já que as profundas transformações atuais nos mapas do poder e da competição econômica global geram múltiplas opções na inserção externa de cada país da região. Sob essa perspectiva, nenhum país aceitará limitar-se a seu entorno regional e tentará, ao contrário, aproveitar ao máximo as oportunidades que se abrem em escala global. Além disso, as transformações são explicadas pelo fato de que, em geral, os processos de integração regional são percebidos como tendo baixa eficácia, conseqüência de uma experiência acumulada nas últimas cinco décadas que nem sempre produziu os resultados prometidos.

Enfrentar esses desafios exigirá pelo menos três condições. A primeira é que cada país da América do Sul desenvolva uma estratégia nacional de aproveitamento dos múltiplos espaços de sua inserção internacional, inserindo nela a própria região. A segunda é que as iniciativas de alcance regional sejam refletidas em instituições e regras de jogo que tenham as qualidades necessárias para penetrar na realidade. E a terceira condição é que os compromissos assumidos nos diversos âmbitos institucionais da região – em particular, os de caráter preferencial – permitam fortalecer, e não debilitar, o desenvolvimento de um sistema multilateral eficaz em escala global, especialmente no que se refere ao comércio de bens e serviços no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Cabe lembrar que a América do Sul se transformou em um espaço geográfico de densidade crescente, diferenças marcantes e grande dinamismo. É, nesse sentido, um verdadeiro mosaico. Tudo indica que continuará sendo assim no futuro. Captar bem as forças profundas desatadas na região é um desafio complexo para quem quer que opere nela, tanto no plano político como, sobretudo, no empresarial.

De fato, a região se tornou mais densa. A interdependência entre os diversos países cresceu substancialmente nas últimas décadas, deixando os sistemas políticos e econômicos nacionais mais próximos e sensíveis ao que ocorre em sua vizinhança. Esta tem cada vez mais escala sul-americana. Tal densidade é observada em pelo menos três planos. Um deles é o da produção e do comércio. As redes tecidas por empresas transnacionais e, crescentemente, por multilatinas – e também por um número significativo de pequenas e médias empresas originadas na própria região – cresceram gradualmente, e com mais intensidade nos últimos anos. Isto se reflete no intercâmbio comercial e nos investimentos, especialmente concentrados no Sul americano, com impacto na logística e no transporte. O outro plano é o da energia, em suas múltiplas modalidades. Este, ao contrário do anterior, tem um alcance que abrange quase toda a América do Sul. O terceiro plano é o do narcotráfico e das diversas manifestações de violência e crime organizado. Sua densidade tem se acentuado e representa uma ameaça tangível em vários países da região.

Além de mais densa, a região é também mais diferenciada, o que nem sempre é captado em leituras realizadas em outras latitudes. As diversidades de tamanho e graus de desenvolvimento se somam, nos últimos tempos, a algumas que são produto de dissonâncias conceituais emergentes. Entre outros, os conceitos de democracia e integração se prestam a diferentes interpretações. Outra diferenciação observada em alguns momentos é resultado dos horizontes nos quais alguns protagonistas tendem a colocar os desafios enfrentados pelos distintos países. Existem aqueles que se projetam em direção ao futuro, que percebem a globalização como uma oportunidade a ser aproveitada. E existem outros que ainda não puderam terminar de processar seus distintos passados, alguns com raízes em muitos séculos atrás. Nesses casos, a tendência costuma ser ver mais ameaças que oportunidades no mundo que os rodeia.

É, finalmente, uma região com uma forte dinâmica de mudança. As mudanças na região refletem, em parte, o dinamismo de um mundo turbulento e em constante metamorfose. Mas também são, em boa medida, frutos de seu próprio plantio. Aqueles que não acompanham de perto as notícias originadas em cada um dos países da região, ou que insistem em colocá-las no contexto de paradigmas do passado, correm o risco de não entender o que está acontecendo. Os fatos carregados de futuro se evidenciam constantemente. É fundamental saber detectá-los a tempo para poder antecipar as mudanças. Um dos fatos carregados de futuro mais recentes é a descoberta daquelas que prometem ser amplas riquezas de hidrocarbonetos no litoral atlântico do Brasil.

O que foi dito é importante para abordar a questão de fundo da governabilidade do espaço sul-americano. Isto é, assegurar o predomínio da paz e da estabilidade política na região. Nessa perspectiva, é preciso concentrar os esforços para conseguir que a lógica da cooperação e da integração permita domesticar os conflitos naturais e, sobretudo, neutralizar tendências de fragmentação.

São esforços que demandarão diagnósticos atualizados das forças profundas que operam em uma realidade sul-americana rica em matizes, além de muita sabedoria e prudência política. Principalmente por se tratar de um espaço regional cada vez mais multipolar, no qual, como foi enfatizado antes, cada um dos países percebe múltiplas opções para suas respectivas inserções no mundo. As diversidades existentes evocam respostas de geometria variável, flexíveis e de múltiplas velocidades, como as que se desenvolveram no espaço geográfico asiático – e, mais recentemente, na própria União Européia.

Se a realidade sul-americana se assemelha a um mosaico, pela diversidade de situações que nela se manifestam, é provável que, por um longo período, isso também seja refletido no plano institucional. E é possível que – ao menos por algum tempo – o espaço geográfico regional careça de algo similar ao que a União Européia representa, na atualidade, para o espaço europeu. Por isso, somente o passar do tempo permitirá uma noção mais clara de qual será a contribuição da Unasul para a governabilidade do espaço sul-americano. Se conseguir efetivamente se transformar em um âmbito para a consolidação da paz e da estabilidade política na região, sustentada em países com graus elevados de coesão social, suas contribuições serão valiosas. Nesse sentido, a mencionada Declaração de la Moneda é um importante passo para afirmar o papel futuro que a Unasul poderá desempenhar.

No entanto, a Unasul levanta várias questões. Uma delas se refere a sua capacidade de penetrar na realidade. A experiência ainda inconclusa da incorporação da Venezuela como membro pleno do Mercosul justifica tais dúvidas. Porém, mesmo quando o Tratado de Brasília entrar formalmente em vigência, deverá demonstrar que pode lograr seus ambiciosos objetivos. A distância entre construções formais e fatos concretos costuma ser significativa em uma região onde pareceria ser mais fácil criar instituições que utilizá-las em sua plenitude. Por isso, cabe perguntar se não teria sido mais conveniente centrar a idéia da Unasul em seu sistema de cúpulas periódicas, sem aspirar a sua formalização no plano jurídico em torno de uma organização com objetivos ambiciosos. Outra questão se refere à sua coexistência com os processos de integração existentes, em particular com o Mercosul. Segundo o Tratado de Brasília, a Unasul deveria contribuir para o fortalecimento da integração regional por meio de um processo inovador que permitisse ir além da mera convergência dos esquemas já existentes. Já o Mercosul, em sua dimensão ampliada com a incorporação da Venezuela como membro pleno e de outros países da região como membros associados, tem almejado cumprir uma função de alcance sul-americano. Isto pode ser visto na participação de líderes de toda a região em suas reuniões presidenciais, como foi o caso da Cúpula de Córdoba, que contou inclusive com a presença de Fidel Castro.

A ampliação do Mercosul tem tido pelo menos duas dimensões. Uma se refere ao espaço das preferências comerciais. Através de acordos de alcance parcial (instrumento previsto pelo Tratado de Montevidéu de 1980), foi-se tecendo uma rede de preferências que abarca outros países membros da ALADI e, em particular, os que foram adquirindo um status de membros associados, a começar pelo Chile e a Bolívia. A outra dimensão diz respeito à ampliação dos objetivos políticos do Mercosul. A defesa da democracia e dos direitos humanos, ao lado de outras metas no plano social, incorporou-se gradualmente à agenda do bloco. E foi ampliada a outros países sul-americanos associados.

A Unasul e o Mercosul ampliado teriam então objetivos similares, especialmente no âmbito político. Porém, a Unasul deveria permitir a abordagem de questões como a infra-estrutura física e a complementação energética, que superam o que poderia ser alcançado com a atual cobertura geográfica do Mercosul. Isso é particularmente importante para o Brasil, que tem fronteiras comuns com a maioria dos países membros da Unasul.

No entanto, existem duas grandes diferenças. Por um lado, o Mercosul é uma realidade assentada em compromissos jurídicos já assumidos por seus países membros. Embora sejam compromissos imperfeitos e incompletos, seria difícil deixá-los de lado, tendo em vista as correntes de comércio e investimento que se desenvolveram entre os parceiros desde a assinatura do Tratado de Assunção. O Mercosul tem também uma identidade embrionária, como demonstra a incorporação da sigla nos documentos de identidade dos cidadãos dos quatro membros plenos.

A Unasul, por outro lado, deve ainda superar o processo de ratificação de seu tratado constitutivo. Embora seja possível que isso ocorra em breve, não necessariamente se concretizará, sobretudo se forem levadas em consideração as diferenças políticas entre alguns de seus membros que afloraram no caminho que levou à recente Cúpula de Brasília. Outra grande diferença entre as duas organizações é que o Mercosul se baseia não apenas na vontade política dos países membros – que se mantém apesar das muitas dificuldades –, mas também, principalmente, em um pilar fundamental para a integração produtiva: as preferências comerciais pactuadas. A Unasul não tem previsto nada similar. Em todo caso, as preferências econômicas entre seus membros serão as que resultarem da convergência da rede de acordos de alcance parcial celebrados ou que se celebrem no âmbito da ALADI.

Dois cenários para o futuro

Cabe perguntar, então, sobre o impacto que a Unasul terá sobre o Mercosul. Ao menos dois cenários alternativos podem ser sugeridos:

1. Um primeiro cenário implicaria diluir não apenas o objetivo mais ambicioso de um Mercosul que, em alguns momentos, parecia aspirar a ter um alcance político sul-americano, mas também deixar de lado a meta mais concreta de que o processo de integração seja percebido como um instrumento eficaz de transformação produtiva. A pior variante seria a seguinte: a Unasul não consegue avançar e, por sua vez, o Mercosul continua perdendo sua função de motivar decisões de investimento produtivo destinadas ao espaço econômico comum.

2. No segundo cenário, ambos os espaços se complementam e se potencializam mutuamente. Isto significa um Mercosul dotado de instrumentos flexíveis mas previsíveis, que reflitam metodologias de geometria variável e de múltiplas velocidades, e que possa constituir o núcleo duro de uma construção mais ampla de alcance sul-americano (a Unasul). Tecnicamente, seria possível. Nesse caso, o Mercosul, sem deixar de lado seus objetivos políticos referidos aos membros plenos, reenviaria ao âmbito da Unasul os objetivos políticos de alcance sul-americano.

Na hora de considerar este cenário de complementação, é preciso levar em conta que as duas iniciativas, Mercosul e Unasul, têm em comum o fato de que buscam a governabilidade da região sul-americana. De ambas participa o Brasil, que é o país de maior dimensão relativa. Possuem conteúdo econômico, mas sem dúvida objetivos políticos, pois envolvem as relações de poder entre as nações que compartilham esse espaço geográfico. Estão ligadas às suas estratégias de inserção internacional. Almejam produzir bens públicos regionais que permitam neutralizar eventuais tendências de fragmentação no subsistema político internacional.

Por isso, a complementação entre a Unasul e o Mercosul pode contribuir para o predomínio da lógica de integração no espaço sul-americano. Tal complementação é possível. Mas vai precisar de uma liderança coletiva com a participação de todos os países da região, especialmente daqueles que valorizam um entorno regional de paz e estabilidade política.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Outubro 2008, ISSN: 0251-3552


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