Tema central
NUSO Nº Outubro 2022

O curioso caso de um peronismo não verticalista

A rejeição de grande parte do kirchnerismo à assinatura de um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) mostra a heterogeneidade da coalizão panperonista que governa a Argentina. Ao mesmo tempo, contudo, as tensões internas no governo de Alberto Fernández refletem uma situação inédita no peronismo: a ausência de uma liderança unificada. Isto gera incerteza sobre o futuro imediato.

O curioso caso de um peronismo não verticalista

O peronismo vive uma situação inédita. Não é inédita a derrota eleitoral que sofreu em novembro passado nas eleições de meio de mandato, pois governos peronistas também foram derrotados em 1997, 2009 e 2013. Tampouco é inédita a difícil situação econômica; durante os primeiros meses do governo de Carlos Menem houve um pico inflacionário, e nos últimos anos de seu governo o desemprego atingiu 13% da população economicamente ativa. O que de fato é inédito é a divisão do governo em dois blocos abertamente opostos. O enfrentamento entre os dois setores internos da Frente de Todos se intensificou nos últimos meses até atingir um grau de incerteza que congelou a agenda legislativa e ameaça as perspectivas dos últimos dois anos da gestão do presidente Alberto Fernández.

O tema que expôs a profundidade da fratura entre as duas «alas» da Frente de Todos foi a assinatura de um acordo com o Fundo Monetário Internacional (fmi) para viabilizar o refinanciamento do oneroso empréstimo assumido em 2018 pelo então presidente Mauricio Macri. Naquele ano, e após vários meses de crise cambial e desvalorização do peso, Macri obteve um financiamento do fmi de mais de 50 bilhões de dólares, e a Argentina tornou-se o principal devedor do organismo (sua dívida equivale hoje a 61% da carteira da instituição). No entanto, essa enorme injeção de recursos não deteve a crise, a ponto de o governo cessante entrar em default poucos dias antes de deixar o poder. Desde o primeiro dia em que a fórmula vencedora composta por Alberto Fernández e Cristina Fernández de Kirchner assumiu o governo, os vencimentos do empréstimo com o fmi pairaram sobre a cabeça do novo governo como a espada de Dâmocles. Todos os setores da Frente de Todos concordam em algumas questões básicas. O empréstimo foi assumido por Macri em condições de legalidade duvidosa de acordo com os protocolos do Fundo e com baixíssima legitimidade política interna: a dívida foi assumida sem discussão no Congresso argentino, anunciada pelo presidente como fato consumado num vídeo no Facebook de apenas um minuto e meio de duração. O próprio fmi aceitou, num relatório de avaliação interna em 2021, que pelo menos parte dos fundos em dólares foi oferecida pela Argentina a investidores financeiros para desfazer suas posições em pesos e levar à fuga de seus capitais para fora do país. A possibilidade de pagamento real do empréstimo foi bastante fantasiosa desde o início; então, em meio à pandemia, ficou claro que era impossível enfrentar o esquema de vencimento em dólares conforme acordado. Mas os acordos terminam aqui. E enquanto isso o empréstimo mantém-se em vigor, já que é uma obrigação soberana assumida pelo Estado nacional.

Após dois anos de negociação, o ministro da Economia Martín Guzmán (ex-professor de Economia da Universidade de Columbia e aluno de Joseph Stiglitz) anunciou que havia sido obtido um pré-acordo para um refinanciamento. Isso se deu na forma de um crédito de facilidades estendidas, por meio do qual o fmi emprestaria ao país as quantias necessárias para fazer frente a cada um dos pagamentos programados, sob a condição de aprovar revisões trimestrais dos números da economia argentina. As condicionalidades exigidas pelo Fundo, embora sejam menores do que as que o organismo historicamente impôs, incluem o compromisso de aumentar as tarifas de energia e rever de alguma forma o sistema previdenciário do país (subsídios de energia e aposentadorias compõem os maiores gastos do Estado argentino). Esses pontos, no entanto, são provisórios.

Nesse contexto, poucos dias após o anúncio do pré-acordo, o filho da ex-presidente Cristina Fernández, deputado nacional Máximo Kirchner, anunciou por meio de uma carta pública que não o apoiava. Expressou fortes críticas à gestão do ministro Guzmán e afirmou que se sentia excluído do sistema decisório do presidente Fernández. Por tudo isso, renunciou ao cargo de presidente do bloco legislativo da Frente de Todos na Câmara dos Deputados. Chamar essa reação de «explosiva» seria pouco.

Embora, nos dias que se seguiram à demissão, tenham sido tomadas medidas para reduzir a intensidade da situação (Fernández disse que não pediria a renúncia de funcionários próximos a Máximo Kirchner e anunciou que sua agrupação, La Cámpora, não deixaria o governo), as rachaduras hoje parecem mais profundas do que nunca. Líderes políticos e formadores de opinião do kirchnerismo criticam o acordo com o fmi, propõem denunciar a dívida e recorrer à Corte de Haia, além de dividir os votos governistas no Congresso. Mas as rachaduras não são novas. A vice-presidente Cristina Fernández já havia manifestado seu desacordo com o governo em várias ocasiões, e ministros de seu setor apresentaram publicamente sua renúncia (não aceita) ao gabinete em outubro de 2021, após a derrota nas eleições primárias. Naquela ocasião, ela mesma afirmou em uma carta aberta que Alberto Fernández carecia de decisão, vontade de enfrentar os setores do capital e agilidade na gestão1. A centralidade que o gênero epistolar assumiu na política argentina é praticamente oitocentista, embora essas cartas sejam publicadas em plataformas virtuais.

Deve-se notar, contudo, que os dois setores internos em conflito não são equivalentes. O kirchnerismo é um coletivo compacto, com uma liderança única e definida: Cristina Fernández de Kirchner. O setor que poderia ser chamado de «albertista», por outro lado, é mais uma espécie de arquipélago de atores singulares unidos por uma desconfiança (que não é nova) em relação ao estilo de liderança da ex-presidente. Governadores, prefeitos da província de Buenos Aires, sindicalistas unidos na Confederação Geral do Trabalho (cgt), o Movimento Evita e figuras do peronismo na cidade de Buenos Aires que estão há décadas próximas ao presidente, como Gustavo Béliz (que sofre forte resistência de Cristina Fernández) fazem parte do conglomerado, mas não têm com Alberto Fernández a relação vertical que o kirchnerismo tem com a ex-presidente. Deve-se acrescentar a esses dois setores o do presidente da Câmara dos Deputados, Sergio Massa, que até agora permanece mais ou menos desconsiderando o conflito aberto, mas cujas ambições (certamente) recaem sobre si próprio2.

O experimento da Frente de Todos

A situação atual do peronismo é inédita porque a Frente de Todos foi, por sua vez, uma construção nova. É a primeira vez, desde 1983, que o peronismo não tem uma liderança única, forte e vertical. Steven Levitsky e Kenneth Roberts oferecem uma pista para pensar a situação atual em seu livro The Resurgence of the Latin American Left [O ressurgimento da esquerda latino-americana], de 2011, dedicado a interpretar a ascensão da esquerda latino-americana na primeira década do século. Os autores classificam em quatro categorias os partidos e movimentos que estavam no poder na época. Movimentos de esquerda (Movimento ao Socialismo boliviano), populismos de esquerda (o chavismo, com Hugo Chávez ainda vivo), partidos de esquerda institucionalizados (Partido Socialista chileno e Frente Ampla uruguaia) e, finalmente, o peronismo, classificado como «partido-máquina populista». Levitsky e Roberts escrevem: «Os partidos-máquina populistas são organizações estabelecidas que sobrevivem anos, ou mesmo décadas, fora do poder, inclusive como oposição a governos autoritários. No entanto, essas organizações estão vinculadas ao projeto político de uma personalidade dominante que se situa no vértice de uma estrutura de autoridade piramidal»3.

A teoria partidária, que é bem conhecida por Levitsky e Roberts, assume que os partidos são institucionais ou movimentos baseados em liderança. Os partidos institucionalizados têm líderes, mas são vários, e nenhum deles tem um único papel de líder único (os exemplos seriam o socialismo chileno e a Frente Ampla uruguaia). O peronismo seria uma rara avis, um partido institucionalizado, com mecanismos rotinizados e durabilidade, mas que requer uma liderança personalista para funcionar.

Em outras palavras, Levitsky e Roberts afirmam que o peronismo funciona como um partido, mas tem a peculiaridade de operar com «lideranças seriais». Um líder forte é sucedido por outro, e outro, e outro (ou outra). A melhor descrição do partido-máquina com liderança serial de que falavam Levitsky e Roberts foi dada em 2015 pelo então governador da província de Salta, Juan Manuel Urtubey, poucos meses antes da eleição, quando, em entrevista ao jornal La Nación, afirmou: «Olha, quando eu tiver um candidato a presidente, pois ainda não tenho, ele começará a me parecer um grande dirigente; em setembro, me parecerá que é o mais próximo aos postulados do peronismo, e em outubro, quando ganhar as eleições, me parecerá a reencarnação de Perón. Assim somos nós.»

A experiência peronista é então única de duas maneiras. Para começar, há poucos partidos políticos fundados por um líder carismático que conseguiram sobreviver ao exílio prolongado ou à morte do fundador. O peronismo o fez duplamente: primeiro sobreviveu a 18 anos de proscrição, exílio de seu líder e perseguição de seus militantes entre 1955 e 1973; em seguida, à morte de Perón em 1974 e, logo depois, mais sete anos de repressão violenta sob a última ditadura militar (1976-1983).

As explicações para a sobrevivência do peronismo enfatizam a capacidade de organização e resiliência de vários atores na base do movimento: os sindicatos (analisados por Daniel James4), os governadores e dirigentes provinciais relativamente autônomos das províncias (estudados por Ana María Mustapic5), a descentralizada militância territorial (retratada pelo próprio Levitsky6) e os grupos juvenis que aderiram maciçamente ao peronismo nos anos 1970. Ou seja: os setores que permitiram ao peronismo sobreviver sem Perón e que lhe dão vitalidade ainda hoje são os mesmos que tensionam a vida interna da Frente de Todos. Essas tensões têm sido historicamente resolvidas pela liderança. O peronismo nasceu como um movimento ligado a uma liderança carismática que conseguiu sobreviver à morte de seu líder original. Isso é pouco habitual, mas não impossível. O curioso é que tenha sobrevivido sem se burocratizar completamente, conservando uma espécie de necessidade serial de carisma.

A bibliografia sobre partidos assume que, nos casos em que um partido carismático consegue fazer a transição para um formato partidário institucionalizado, acaba transformando-se numa organização mais cinzenta, mais processual, dirigida por burocratas. Assim diz Max Weber, criador tanto do conceito de carisma como do conceito de burocratização. Weber compara os partidos modernos à Igreja Católica. O carisma é o milagre original: não é planejado ou projetado. Ou é reconhecido como tal pelos seguidores ou não é. O carisma se autoexplica e se autolegitima. Além disso, é sempre pessoal e constitui a única fonte do que há de novo na política. O carisma não é transmitido nem herdado, diz Weber; na melhor das hipóteses, é sublimado em autoridade organizacional. O carisma do fundador pode ser institucionalizado, mas nenhuma figura alcançará a autoridade do líder original.

Não foi isso, porém, que aconteceu com o Partido Justicialista. A liderança original de Juan Domingo Perón foi sucedida por um breve período de «desordem» e condição colegiada sob as 62 Organizações Peronistas, que culminou na derrota de 1983. O momento de refundação ocorreu em 1988, quando Carlos Menem derrotou nas primárias o governador da província de Buenos Aires, Antonio Cafiero. Mas o importante para o argumento deste artigo é que, após a primeira e única eleição interna do peronismo para a candidatura presidencial, não ocorreu a burocratização do pj; em vez disso, surgiu uma liderança que duraria 11 anos. Tanto que Menem integrou sem rispidez e de forma completa toda a liderança da Renovação cafierista: Carlos Grosso, José Luis Manzano e Juan Manuel de la Sota assumiram responsabilidades de peso durante o governo menemista, e Menem pôde atuar durante os dez anos de sua presidência como a máxima autoridade do partido sem grandes desafios. O êxodo do chamado Grupo dos Oito em 1991, sob o comando de Carlos «Chacho» Álvarez, não fez senão confirmar a liderança de Menem: sua figura era tão forte que o exit, a fuga, era preferível a lutar no interior do partido.

O padrão serial só foi fortalecido mais tarde com a ascensão de Néstor Kirchner e Cristina Fernández como articuladores de uma nova hegemonia dentro do partido (Eduardo Duhalde nunca conseguiu consolidar plenamente sua liderança interna). A vitória do kirchnerismo sobre Duhalde em 2005 consolidou uma nova «liderança serial» que duraria até 2015 (embora tenha tido desprendimentos). A efetiva anulação de Menem e sua transformação num senador muito pouco relevante não deixaram de ser surpreendentes para quem viu em primeira mão o controle que ele chegou a exercer em seu apogeu.

Somente entendendo o papel da liderança como ponto de síntese das tensões internas do peronismo é que se pode compreender o pêndulo ideológico entre o neoliberalismo radical do menemismo e as políticas de centro-esquerda «nacionais e populares» do kirchnerismo. Historicamente, sempre houve posturas diversas dentro do chamado «movimento nacional e popular». O que unia a inconsistência programática era a aceitação da singularidade da liderança. Isso nos permite compreender trajetos como o do atual senador Oscar Parrilli. Peronista desde sempre, dirigente do peronismo da província de Neuquén, Parrilli foi em 1992 o membro que defendeu na Câmara dos Deputados a privatização da empresa Yacimientos Petrolíferos Fiscales (ypf), estatal de hidrocarbonetos e principal companhia do país na época (assim como hoje). Próximo dos Kirchner na década de 1990, ele ingressou no círculo decisório do governo como secretário-geral da Presidência em 2003 e defenderia a «recuperação» da empresa pelo Estado. Hoje, como senador, é uma das vozes ativas do kirchnerismo contra a assinatura do acordo com o fmi.

No entanto, não é que o peronismo fosse alheio às tensões internas mais ferrenhas. Pelo contrário: os confrontos internos do movimento atingiram níveis de violência muito elevados, incluindo a violência armada entre várias facções, da esquerda e da extrema direita peronistas, na década de 1970. Na entrevista mencionada, Urtubey acrescentou sobre o novo dirigente que estava esperando: «Se for bem-sucedido, em quatro anos faremos campanha para sua reeleição; se não for, vamos ‘atropelá-lo’». O ponto-chave é esse «se não for bem-sucedido». O confronto interno costuma diminuir durante a gestão do governo, quando a hegemonia do/a presidente é aceita, e se intensifica nos últimos anos do governo de um presidente sem possibilidade de reeleição (como aconteceu entre Menem e Duhalde entre 1997 e 1999, ou no kirchnerismo depois de 2013) e durante os períodos na oposição. A novidade é que o peronismo continua hoje tão ou mais dividido que em 2019, quando teve início o atual governo.

O peronismo após 2015: uma nova era para o movimento

A finalização do governo de Cristina Fernández em 2015 deixou claro que a velha dinâmica de tensões internas selvagens/aceitação da nova liderança já não vigorava. Em 2015, o peronismo entrou numa nova era.

A primeira novidade é que o vínculo carismático entre Cristina Fernández e um importante setor da sociedade não se esgotou com sua saída do poder. A fortaleza desse vínculo ficou evidente em 2017, quando a ex-presidente mostrou que seu nome encabeçando uma chapa era eleitoralmente competitivo. O peronismo nunca teve um ex-mandatário que ocupasse esse lugar real e simbólico. Perón nunca foi um «ex-presidente». No exílio, ele permaneceu mais relevante que nunca e depois morreu no poder (sua viúva, María Estela Martínez, nunca foi uma verdadeira líder do movimento). Menem rapidamente esgotou seu capital político ao deixar o poder. Embora tenha sido candidato à presidência e depois eleito várias vezes para o Senado, nunca se destacou na câmara alta e não tentou (nem conseguiria) liderar uma corrente interna do peronismo. Sua liderança, outrora tão poderosa, simplesmente evaporou.Mas o peso de Cristina Fernández permaneceu após sua saída da Presidência. Sua liderança não apenas não se esgotou, como manteve total centralidade no peronismo entre 2016 e 2019. Na eleição de 2017, ela concorreu com os setores encabeçados por Sergio Massa, de um lado, e Florencio Randazzo e o Movimento Evita, de outro (com o atual presidente Alberto Fernández como chefe de campanha), e os superou amplamente.

A questão então é por que a ex-presidente não reconstruiu sua liderança partidária nem tentou retornar ao poder. A própria Cristina Fernández renunciou a isso quando escolheu Alberto Fernández como candidato presidencial em 2019. Ele afirmou em entrevista ao jornal Página/12 em 2018 que «sem ela não é possível, mas só com ela não é suficiente».

Cristina Fernández parecia ter levado em conta que um setor importante da sociedade argentina nunca votaria nela, que há atores com poder dentro do peronismo que desconfiam de seu estilo de liderança e que, sem somar todo o arco peronista, a vitória ficaria distante em 2019. A unidade do peronismo foi fundamental para a vitória sobre o macrismo. E assim chegou-se à bifurcação entre a Presidência (encabeçada por Alberto Fernández) e a liderança política dentro do peronismo (encarnada no agora vice-presidente).

Modelos de sucessão no peronismo

Desse modo, os antecedentes existentes da passagem do bastão de uma liderança para outra podem ser sintetizados em três modelos:

(a) Desaparição física do líder. Neste caso, abre-se forçosamente uma sucessão. Foi o que aconteceu com Perón. Sua morte na Presidência, em 1974, abriu um período de vacância e anomia que não se solucionou até 1987, quando Antonio Cafiero foi eleito governador da província de Buenos Aires (a liderança de Cafiero foi fugaz e durou até sua derrota para Menem em 1988).

(b) Esgotamento natural da liderança. Isto aconteceu com Menem em 2003. Muitos esperavam que ocorresse com Cristina Fernández depois de 2015, mas, como dissemos, ela provou que seu capital político era, quando não intacto, tão relevante como sempre, e que o kirchnerismo constituía uma facção estável dentro peronismo.

(c) Desafio bem-sucedido de um challenger que «aposenta» o líder. Isto se aplicaria a dois casos: Menem com Cafiero em 1988, e Néstor Kirchner com Duhalde em 2003. São casos um tanto diferentes, mas opera a mesma lógica de uma figura desafiadora que consegue ocupar a liderança do movimento.

Futuros cenários na Frente de Todos

A primeira conclusão é que a Frente de Todos, como organização política, não funciona bem sem uma liderança unificada (ou simplesmente não funciona). Não é fácil pensar o futuro num contexto tão desfavorável e com um grau tão alto de incerteza. (Alberto Fernández assumiu em dezembro de 2019, em março do ano seguinte o mundo mergulhou na pandemia da covid-19 e agora, em 2022, com a pandemia cedendo, o mundo está imerso num conflito global com a invasão russa na Ucrânia.)

Nesse contexto, surgem diferentes cenários. O primeiro seria a institucionalização da disputa interna. Neste caso, todos os setores existentes (kirchnerismo, albertismo e massismo) aceitariam resolver a liderança em eleições internas, sejam elas primárias abertas, simultâneas e obrigatórias (paso) ou de outro tipo. Essa opção implicaria um esforço para sair do impasse atual por meio da aposta na transformação do peronismo no tipo de partido «burocratizado» que, até agora, nunca foi. Tal coisa parece pouco provável hoje, inclusive porque aquele que perdesse ficaria automaticamente fora da competição pela Presidência. Alberto Fernández disse que promoveria essa via (com ele como competidor), mas os acordos parecem muito improváveis.

O segundo cenário seria que Alberto Fernández decidisse romper com o kirchnerismo, assim como Néstor Kirchner fez com Eduardo Duhalde em 2005, e que finalmente construísse o «albertismo». Não há dúvida de que há atores próximos ao presidente que o aconselham a seguir esse caminho, mas o próprio Fernández parece muito relutante em segui-lo. Ganharia se o fizesse? É certo que ele teria o apoio de alguns sindicatos, de alguns governadores e prefeitos, talvez de movimentos sociais e talvez até de alguns empresários. Mas Néstor Kirchner desafiou Duhalde num momento em que a economia estava em alta e depois de ter acumulado enorme popularidade. Nenhuma dessas duas condições existe hoje, tanto por fatores externos ao governo como por erros autoinfligidos (como a reunião na residência presidencial para comemorar o aniversário da primeira-dama em plena quarentena).

O terceiro cenário seria que o kirchnerismo denunciasse o governo e rompesse definitivamente com ele. Tal coisa não é impossível, e pode até ser inevitável. É difícil imaginar como a coalizão continuaria após a oposição de setores kirchneristas ao acordo com o fmi. Mas também é quase impossível imaginar como continuaria se o kirchnerismo aprofundasse sua ruptura com o governo.

O quarto cenário é que continue o impasse, essa convivência pouco agraciada entre queixas, resmungos e denúncias mútuas. Os acontecimentos dos primeiros meses de 2022 parecem apenas confirmar que, de fato, nem Alberto Fernández nem Cristina Fernández e seu filho Máximo Kirchner podem ou querem romper com a lógica do conflito constante sem ruptura aberta.

Máximo Kirchner escolheu o ato pelo aniversário do golpe de 24 de março de 1976 para mostrar a capacidade de mobilização de sua organização, La Cámpora; Alberto Fernández voltou a insistir que é ele quem toma as decisões, numa reiteração não muito convincente; Cristina Fernández usou uma homenagem aos ex-combatentes por ocasião do 40º aniversário da Guerra das Malvinas para criticar a porta-voz presidencial (escolha estranha pela assimetria das figuras7). Essa dinâmica, no entanto, não parece satisfazer ninguém. Os dois anos restantes provavelmente mostrarão um governo com sérios problemas para tomar decisões e estabelecer diretrizes compartilhadas por todos os seus parceiros; mais dois anos de gestão marcados por desconfianças e bloqueios entre a primeira e a segunda linhas.

E, por fim, seria muito difícil pensar numa opção que garantisse uma oferta eleitoral única em 2023. Em caso de derrota, seria consolidada uma nova liderança, nem de Alberto Fernández nem de Cristina Fernández, ou a entropia continuaria? É difícil dizer. A própria situação do peronismo sem uma liderança clara já é desconcertante.


Nota: a versão original deste artigo foi publicada em espanhol em Nueva Sociedad No 299, 5-6/2022, disponível em www.nuso.org. Tradução de Eduardo Szklarz.

  • 1.

    O texto completo da carta pode ser lido em www.lanacion.com.ar/politica/el-texto-completo-la-dura-carta-de-cristina-kirchner-contra-alberto-fernandez-y-su-entorno-nid16092021/.

  • 2.

    Gustavo Béliz renunciou ao cargo de secretário de Assuntos Estratégicos em julho passado. Sergio Massa assumiu como ministro de Economia, Desenvolvimento e Agricultura em agosto. [n. do t.]

  • 3.

    S. Levitsky e K. Roberts: The Resurgence of the Latin American Left, Johns Hopkins up, Baltimore, 2011, p. 14.

  • 4.

    D. James: Resistencia e integración. El peronismo y la clase trabajadora argentina, Siglo Veintiuno, Buenos Aires, 2006.

  • 5.

    A.M. Mustapic: «Del Partido Peronista al Partido Justicialista. Las transformaciones de un partido carismático» em Marcelo Cavarozzi y Juan Manuel Abal Medina (comps.): El asedio a la política. Los partidos latinoamericanos en la era neoliberal, Homo Sapiens, Rosário, 2002.

  • 6.

    S. Levitsky: «Una ‘Des-Organización Organizada’: organización informal y persistencia de estructuras partidarias locales en el peronismo argentino» em Revista de Ciencias Sociales No 12, 2001.

  • 7.

    Mencionou, além disso, que enviou de presente de aniversário ao presidente o livro Diario de una temporada en el quinto piso. Episodios de política económica en los años de Alfonsín, do sociólogo Juan Carlos Torre. Não passou despercebido que o livro fale da crise econômica que acabou com o governo de Raúl Alfonsín, nem que a vice-presidente tenha destacado em seu discurso a «tremenda atualidade» do livro. Trecho disponível em «Interna: Cristina Kirchner reveló que le regaló un libro a Alberto Fernández y chicaneó a su vocera», vídeo em TN, 2/4/2022, www.youtube.com/watch?v=ibbxj4g95m8.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Outubro 2022, ISSN: 0251-3552


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