Ensaio
NUSO Nº Outubro 2022

Por uma democracia feminista (sempre em construção)

Por uma democracia feminista (sempre em construção)

A pergunta pelo conteúdo da democracia esteve em primeiro plano no ciclo anterior de protestos desencadeado em resposta à crise de 2008 e a determinados contextos locais. De Tahrir à Porta do Sol, de Syntagma à Praça da Catalunha ou ao Zuccotti Park em Nova York, nós manifestantes invocávamos diversas vezes o significante «democracia». Mas a qual democracia nos referíamos? Não era a dos partidos, das câmaras de deputados fechadas às necessidades e à vontade das maiorias, mas uma «verdadeira» democracia que construiria poder cidadão contra a ditadura financeira, os interesses particulares e os políticos profissionais. Era questionado um sistema de representação insuficiente, uma reivindicação que hoje parece estancada diante de necessidades mais urgentes: frear as mudanças climáticas – um problema concreto e presente com soluções aparentemente muito distantes, mas que muda tudo – ou a ascensão das extremas direitas e dos pós-fascismos que, em alguns lugares, identificamos como a maior ameaça a essas democracias imperfeitas que então desafiávamos.

Estávamos, portanto, diante de um ponto de bifurcação: caso não se conseguisse frear a saída antissocial para a crise e se, em lugar da democracia, o medo se aprofundasse, chegariam os «homens brancos irritados» (angry white men), e uma parte da população os seguiria. Mas não sabíamos o que viria depois. Não sabíamos que figuras como Donald Trump ou Jair Bolsonaro acabariam governando seus países. Naquela época, o problema era entender que, mais que um conjunto de instituições – eleições, partidos, Parlamento –, a democracia pela qual lutávamos era definida como a distribuição-dissolução social de toda forma de poder, a igualdade radical na participação política e na distribuição da riqueza, e o reconhecimento do poder constituinte como a fonte raiz dessa democracia, conforme explica Emmanuel Rodríguez. Hoje na Europa já não falamos disso, mas de «cordões sanitários» ou «democráticos», ou seja, grandes coalizões que deixem de fora a ultradireita, «frentes populares» e «votos úteis para frear o fascismo». Nada disso aprofunda a democracia nem serve para redistribuir mais poder ou recursos; seu resultado é oposto e funcional à hipótese conformista do mal menor.

Abrimos de repente uma porta e, do outro lado, havia um muro. Encontramos assim duas linhas de força. Uma primeira que diz que a democracia é sempre imperfeita e necessita ser construída continuamente, daí a necessidade de proteger com extremo cuidado o direito ao protesto e à contestação, apesar das tensões que isso possa gerar no próprio sistema. Essa é uma política construída como criação, como ato de autoinstituição social, e a qual determina que a única Constituição democrática é a que passa por «uma inovação contínua», nas palavras de Antonio Negri. Em um sentido oposto, outra linha assegura que a democracia deve ser protegida como uma criança frágil da ameaça apresentada pela ultradireita, inclusive abrindo mão às vezes de seus próprios princípios – com determinadas restrições à livre manifestação de opinião, novos crimes de ódio e novas limitações ao protesto – com o objetivo declarado de reduzir a capacidade de influência social desses novos ultras e orientar toda a energia política para conter sua ascensão. Elas se apresentam como duas linhas divergentes: «se quiserem democracia, conformemse com o que existente e não peçam mais». Nesse sentido, a emergência dos pós-fascismos está sendo instrumentalizada por alguns partidos para tentar reverter a crise de legitimidade da política institucional, do próprio projeto neoliberal e de seus comparsas, inclusive as forças social-democratas em suas vertentes social-liberais. No entanto, a verdadeira «frente antifascista», talvez a única que tenha realmente possibilidade de recuperar a democracia, é a que propõe ampliá-la, que trata de dar respostas à crise de representação imaginando e abrindo espaço para formas políticas que mantenham vivo o vínculo entre o poder distribuído no corpo social e as instituições que o sustentam, apostando nas lutas que podem possibilitar uma redistribuição do poder e dos recursos.

Um terremoto lilás

Nos últimos anos, ganhou força outro ciclo de mobilizações com caráter global e potencial democratizador, que teve seu epicentro na América Latina e nos países do sul europeu com suas próprias variações ou reflexos no restante do mundo: o grito feminista. Se a proposta dos pós-fascismos está articulada a partir dos eixos de gênero, raça e nação, as lutas das mulheres são um lugar privilegiado para confrontá-los. A agenda antigênero tem um papel relevante na ascensão ou na presença pública dessas opções ultras e faz parte de uma estratégia clara para conquistar poder – institucional, midiático ou social –, utilizado nitidamente na Europa Central, Europa Oriental e América Latina para debilitar a democracia liberal. Para explicar seu sucesso, porém, é preciso retroceder até o surgimento do neoliberalismo, o que significaram esses 40 anos de domínio e o que suas formas de governo deixaram sobre o planeta e nossas subjetividades. Como explica Wendy Brown, essas direitas se alimentaram dos modos de subjetivação e da destruição dos mundos comuns impostos pela regulação neoliberal desde o final da década de 1970. Esse aspecto micropolítico é essencial na estratégia de gerar uma cultura antidemocrática a partir de baixo. Se seus discursos fundamentados na liberdade e na moral para justificar suas exclusões e ataques à democracia, à igualdade racial, de gênero e sexual, à educação pública e à esfera pública têm seu papel, prepararam terreno para o seu crescimento as privatizações maciças, o ataque aos direitos sociais e à própria ideia do social e da sociedade.

Portanto, defender a democracia contra os pós-fascismos implica na realidade recorrer à sua raiz, recuperar sua substância quando ela retira seu espartilho liberal. Uma sociedade só é democrática quando reconhece que a liberdade só pode levar à igualdade. Nas palavras de Emmanuel Rodríguez, e dito em termos clássicos: «Somente os iguais podem ser livres, e somente os livres podem ser iguais. A república dos iguais é a que reconhece e aplica a todos a liberdade política fundamental: a participação em toda forma de poder explícito. E tal condição exige a supressão de todo privilégio». Os feminismos têm muito a contribuir para essa proposta.

Mas qual feminismo?

Se nos perguntamos pelo conteúdo da democracia, não podemos continuar sem nos perguntar também pelos feminismos. É inquestionável que existe hoje um movimento diverso com diferentes propostas e visões que se relacionam também com distintos interesses de classe. A questão de como se concebe a igualdade estabelece a principal demarcação. Simplificando muito, uma das linhas de fratura mais evidente é a que faz a divisão entre as que concebemos o feminismo como uma ferramenta de transformação do sistema, que necessariamente deve estar vinculada a outros processos de contestação em andamento – não é somente um posicionamento teórico, mas uma prática política – e aquelas cujo horizonte é a igualdade entre homens e mulheres nos limites do existente: os malditos 50%. Esse feminismo liberal concebe a igualdade com os homens dentro de cada estrato social, mas mantendo a hierarquização social intacta. E isso é assim porque essa linha entende a igualdade como formal, de oportunidades, não como a igualdade real, material, de condições e possibilidades de vida. Por isso, as medidas propostas são políticas muito centradas em superar o «teto de cristal», pensadas para que algumas mulheres cheguem aos lugares de poder social. 

De fato, esse posicionamento liberal coincide com o que há até pouco tempo haviam sido as linhas fundamentais do feminismo institucional mainstream. Como explica Susan Watkins, o enorme impulso do ciclo feminista de lutas das décadas de 1960 e 1970 ficou institucionalizado internacionalmente em um projeto político que consistia em incorporar as mulheres aos estratos empresariais e profissionais da ordem existente. O discurso do «empoderamento» das mulheres dessa perspectiva liberal é, há muito tempo, um mantra do establishment global e uma linha fundamental do feminismo das organizações internacionais, como a Organização das Nações Unidas (onu), o Banco Mundial, etc. Trata-se de um projeto vinculado às políticas oficiais de desenvolvimento que fomentavam o setor privado e promoviam a incorporação maciça das mulheres à força de trabalho, como mão de obra barata; ou sua inclusão na economia formal mediante o empreendimento por meio da economia da dívida e do sistema financeiro, como foi feito pelo programa de promoção de microcréditos para mulheres pobres. Assim, a agenda feminista global serviu para impulsionar as novas doutrinas e práticas neoliberais, afirma Watkins. Como suas principais consequências, os avanços na igualdade de gênero, que sem dúvida ocorreram em escala global, foram acompanhados por um aumento da desigualdade econômica e da deterioração das condições de vida em todo o planeta, também em muitos daqueles países incorporados ao «desenvolvimento». «Igualdade no colapso» poderia ser seu lema.

Feminismo do transbordamento

O novo ciclo de mobilizações feministas dos últimos anos transbordou completamente a agenda de paridade liberal – ou neoliberal – que tinha desvalorizado a potência dos feminismos como movimento social depois da onda dos anos 1960 e 1970, segundo explica Raquel Gutiérrez Aguilar sobre a experiência latino-americana. Trata-se de um fenômeno visto também nos feminismos de base europeus com um forte acento anticapitalista e mais presença no sul. Surpreendem a força do feminismo latino-americano presente nas revoltas chilenas que provocaram uma Convenção Constitucional, a «maré verde» que inundou as ruas até conseguir o direito ao aborto na Argentina, as feministas bolivianas que se organizaram na Assembleia das Mulheres para frear o golpe enquanto declaravam sua independência de todo governo. Enquanto isso, no México, a brutalidade dos feminicídios desatou manifestações multitudinárias e distúrbios protagonizados por mulheres. Essas novas rebeliões que desbarataram a lógica do feminismo liberal se levantaram sobre a urgência das vidas perdidas, dos feminicídios – #NiUnaMenos –, das violências sexuais, mas também sobre as mortes por abortos precários e a impossibilidade, inclusive depois de décadas de luta, de decidir sobre a própria maternidade, a agenda de direitos sexuais e reprodutivos. 

Segundo Gutiérrez, o transbordamento ocorreu por uma renovação dos códigos e causas feministas – a ampliação de seus sujeitos de luta, suas demandas e debates –, em que as mobilizações de caráter radicalmente autônomo tiveram um forte componente de feminismos comunitários, decoloniais e populares. Esses feminismos renovados souberam «superar» a questão sexual e não ficar presos no pânico moral, na vitimização e na posição de demandante de proteção estatal que ela implica. Ou seja, esses feminismos conseguiram conectar a luta contra as violências machistas ao restante das violências estruturais e institucionais – dos Estados, entre elas as policiais – e as derivadas de condições de pobreza ou encarceramento, além daquelas produzidas pela exploração da natureza, pelo extrativismo e pela exploração neocolonial dos territórios. As lutas feministas latino-americanas incorporaram todas essas lutas que nos lembram qual é a relação entre o processo de globalização capitalista, o novo processo de acumulação por desapropriação e a escalada de violência contra as mulheres, linhas feministas provenientes de autoras como Silvia Federici e Maria Mies.

Para Mies, «o capitalismo não pode funcionar sem o patriarcado, já que o objetivo desse sistema, isto é, o processo de acumulação contínua de capital, não pode ocorrer a não ser que sejam mantidas ou recriadas as relações homem-mulher» e o justifica precisamente na necessidade que esse processo tem do trabalho de cuidados não remunerado, ou seja, da reprodução gratuita ou semigratuita da mão de obra. Essa reflexão da economia feminista sobre o trabalho produz a contribuição política mais potente e com maior capacidade de devolver seu sentido à palavra democracia: a de reorganizar a sociedade a partir da preservação e da defesa da vida, vidas vividas em condições humanas, vidas que se abrem para a potência do ser e não da acumulação de benefícios. Muitas das lutas mais importantes da época têm uma vertente reprodutiva: pelo direito à saúde ou à educação, à moradia e a outros serviços públicos, pela segurança alimentar, contra a contaminação provocada pelo agronegócio, contra as mudanças climáticas, por um cuidado digno na velhice e boas condições para o trabalho doméstico, ou pela renda básica universal… O feminismo dos últimos anos encarna, atravessa ou se compõe com essas lutas.

Tecer alianças de iguais

A tarefa de organizar a força coletiva que encarne esse projeto só pode partir de feminismos que não funcionem como identidade, mas que incluam os homens e as pessoas que não se encaixem nesse esquema binário na luta contra o sexismo e na reivindicação de uma democracia de iguais: um projeto de mudança construído coletivamente e de forma antiautoritária. Para fazer isso, foram tecidas alianças práticas em conflitos concretos. Precisamente, Gutiérrez Aguilar afirma que uma das virtudes do feminismo latino-americano é a capacidade de conectar as lutas, por exemplo, entre o movimento indígena e o movimento feminista. Segundo Verónica Gago, «hoje uma revolta, uma greve, uma ocupação popular, indígena, comunitária, tem ao mesmo tempo perspectiva feminista em seu interior». O mesmo ocorre na Europa, onde as alianças mais promissoras são aquelas nas quais o feminismo se compõe com a mobilização das pessoas migrantes ou racializadas em sua luta contra as leis de migração, contra o racismo ou pelos direitos trabalhistas dos setores em que essa mão de obra está mais presente e submetidos à hiperexploração: trabalhadoras domésticas, setor agrícola, trabalho sexual, etc. Está nascendo um novo sindicalismo feminista. 

Nos Estados Unidos, o feminismo também teve um papel de destaque nas mobilizações mais importantes desde a década de 1970: as de Black Lives Matter [As vidas negras importam], que colocaram foco nas violências institucionais racistas e sexistas de uma perspectiva antipunitiva. Não é à toa que esteve muito presente nesse movimento a reivindicação de abolir as prisões e «desfinanciar» a polícia para, em seu lugar, levar educação e serviços aos bairros pobres de maioria afro-estadunidense. Daí surgem exemplos de mobilizações que transcendem os debates abstratos ou midiáticos sobre o «sujeito do feminismo» e geram alianças práticas como as produzidas em Nova York e Hollywood, onde milhares de pessoas tomaram as ruas sob o lema «As vidas trans negras importam».

Portanto, a capacidade do feminismo de «fazer democracia» radica na possibilidade de tecer frentes amplas, na possibilidade de se manifestar e incorporar os conflitos concretos muitas vezes não identificados como lutas «de mulheres», mas «de todos». Por exemplo, em alguns lugares onde as opções de extrema direita chegaram ao poder – Brasil, Polônia e outros –, as manifestações feministas e o próprio movimento foram percebidos como um lugar fundamental, às vezes o principal, de oposição aos governos ultras. Na Polônia, as manifestações pela defesa do direito ao aborto chegaram a mobilizar os mais diversos setores sociais: trabalhadores de transporte, taxistas, defensores da liberdade de imprensa, etc. Além disso, a plataforma feminista polonesa All-Poland Women’s Strike [Greve de mulheres de toda a Polônia] ampliou suas demandas para além das reivindicações lgbti+ e das mulheres para incluir outras exigências, como direitos trabalhistas, separação entre Igreja e Estado, e total independência do Poder Legislativo, como explica Magda Grabowska. Por toda parte, as lutas feministas com capacidade de ampliar a democracia estão ao lado daqueles e daquelas que defendem as liberdades conquistadas que nos permitem lutar com mais capacidade.

Uma nova fase de institucionalização?

O feminismo está se articulando com outras lutas por todo o mundo e faz parte de um impulso democratizador que põe no centro a questão da igualdade. Mas em muitos países, sobretudo os que presenciaram as revoltas de 1968 com mais intensidade, o feminismo também se tornou um amplo consenso que faz parte do sistema o qual se deseja questionar. É provável que estejamos hoje diante de um novo processo de institucionalização da onda feminista atual que avança com diferentes intensidades em cada região. As grandes mobilizações dos últimos anos aumentaram em grande medida o capital político de se mostrar publicamente como feminista, e não só para a esquerda, ainda que especialmente. Presidentas do Fundo Monetário Internacional (fmi) ou de grandes bancos, e até mesmo algumas líderes de partidos de extrema direita europeus se declararam feministas. Evidentemente, isso não ocorre por toda parte. Há em muitos países violentas guerras conflagradas, e mostrar-se como feminista implica grandes custos políticos e vitais. Em outros países, no entanto, o feminismo – liberal – distingue e «é premiado» dentro do jogo dos discursos políticos da democracia representativa. Em países europeus como a Espanha, esse feminismo se tornou ideologia «oficial», parte do mainstream, e é por isso que as extremas direitas podem se apresentar como «antissistema» quando o confrontam. O feminismo de base enfrenta as seguintes dificuldades: os ataques dos fundamentalismos cristãos e das extremas direitas, e o fato de ser fonte de legitimidade e diferenciação para a esquerda, assim como para boa parte da direita.

Para além das políticas públicas mais tradicionais, o feminismo institucional se identifica de forma esmagadora com a questão da paridade. Esse é o discurso da presença de mulheres em posições de poder ou prestígio social; ninguém exige paridade nas áreas rurais italianas ou espanholas, onde a regra para imigrantes é a superexploração, nem no setor da construção, exceto – quando muito – igualdade salarial e de direitos. Deduz-se falsamente que a presença de mais mulheres implica mais políticas feministas. A pergunta é: para além das questões simbólicas, o que essa presença de mulheres em lugares de poder muda? Quem representam as mulheres que chegam a esses lugares, a não ser as de sua própria classe? A partir dos feminismos de base, respondemos que o poder de que necessitamos não é o de «representar» as mulheres nos degraus mais elevados da estrutura social, mas o poder que emana dos projetos coletivos, a única possibilidade real de melhorar a vida de todas as mulheres, sobretudo as que estão mais abaixo. 

Como dizíamos, o feminismo pode ser um discurso que distingue, que permite a integração de determinadas mulheres nos circuitos do poder, sejam social-democratas ou neoliberais. O problema com o qual nos deparamos aqui é o da representação: determinadas mulheres passam a atuar como supostas mediadoras entre o movimento e as instituições. 

Portanto, como «tradutoras» em políticas públicas da enorme potência emanada dos movimentos de base. Daí surge também a obsessão pelo «sujeito» do feminismo: quem pode e quem não pode fazer parte, sobretudo em referência à discussão sobre a inclusão das pessoas trans. Muitas das que se erguem como vigilantes das fronteiras do feminismo são aquelas que pretendem representar «as mulheres» nessas instâncias estatais. Assim aconteceu na Espanha, por exemplo. Para esse feminismo oficial, desestabilizar a categoria «mulher» coloca em perigo as políticas de afirmação positiva ou de proteção das mulheres, entendidas em grande medida como vítimas. Esse feminismo transexcludente afirma lutar contra o gênero, mas na realidade o reafirma, pois o transformou no eixo de suas demandas de inserção nas políticas estatais. Aprofundando um pouco, descobrimos os fios que permitem entender esse debate como destinado em grande medida a confrontar esse feminismo de base com caráter mais transformador, que foi majoritário no impulso das mobilizações dessa última onda e muito mais próximo do «transfeminismo», ou seja, um feminismo que identifica as lutas lgbti+ como próprias, inclusivo com as pessoas trans – e as trabalhadoras sexuais – e para o qual as alianças com outros movimentos pela transformação social são fundamentais. Aqui nos deparamos novamente com o significado profundo da democracia. Segundo Gutiérrez Aguilar, o problema com a concepção liberal da política não é a representação em si, mas como ela se organiza a partir de mecanismos de delegação que separam governantes e governados. Essa delegação reforçou o governo neoliberal do mundo por meio de uma democracia que, como mencionamos, se identifica cada vez mais com sua forma procedimental, estruturada em partidos e ultrarregulamentada, «na qual a representação vai ser sempre uma representação em ausência, na qual os representados estão ausentes e calados». Para essa pensadora mexicana, precisamente uma «política em feminino» é uma política não estadocêntrica, já que busca a «produção do comum», identificada com a reprodução em conjunto da própria vida. O marco é essa impugnação da política liberal que situa os indivíduos sozinhos e isolados perante o Estado, enquanto a política do comum é estabelecida a partir da construção de um «nós» coletivo gerado nos lugares de encontro, no fazer juntas.

Portanto, aprofundar a democracia a partir do feminismo supõe a existência de movimentos e mobilizações autônomas; formas de nos compor que não ignorem a importância do Estado, mas que estabeleçam e afirmem a possibilidade de que haja política para além dele. Isso não implica desconhecer os direitos conquistados nem deixar de pensar como usar nossa força para conquistar outros, mas sim afirmar que os direitos inscritos no Estado são totalmente insuficientes para nós e podem até mesmo debilitar os componentes emancipatórios das lutas. Por exemplo, isso acontece em um tema essencial para o feminismo: o de recuperar a autonomia corporal diante das agressões. Não queremos ser reduzidas a vítimas que necessitam de proteção estatal, e, de fato, nem todos os corpos feminizados podem receber essa proteção: para muitos deles, o Estado não só não protege como é uma das principais fontes da violência e da opressão que sofrem, sejam migrantes sem documentação, prostitutas ou trans. Às vezes, parece que nos esquecemos de que o Estado continua sendo uma máquina de dominação e que os direitos convergem sempre com poderes de estratificação social e linhas de demarcação social em modos que às vezes ampliam e outras atenuam essas mesmas dominações e fronteiras sociais. Voltando a Wendy Brown, não podemos nos esquecer de que os direitos surgiram como um meio de proteção diante dos abusos arbitrários do soberano e do poder social, mas também como um modo de assegurar e naturalizar os poderes dominantes de classe, gênero e outros. Embora os discursos tenham se transformado profundamente desde o feminismo da década de 1970 – que ainda falava a linguagem da libertação e acompanhava a onda revolucionária de 1968 – e hoje as demandas dos movimentos se codifiquem cada vez mais em termos de direitos, o horizonte continua sendo a emancipação de todo poder, não da proteção estatal. A verdadeira democracia é realizada na exigência de compartilhar esse poder, não em regulálo para se proteger, lembra Brown.

É nas lutas pela vida, nos espaços de autonomia do social, onde podemos reconhecer outras formas de política não liberais – de democracia direta –, sejam indígenas, feministas, do sindicalismo social, pelos bens comuns, espaços de apoio mútuo, cooperativas ou organizações políticas de base. Em outras palavras, lutas que não estejam organizadas por meio de mecanismos de delegação. Um movimento de base forte tem também a capacidade de reconstruir a ruptura do laço social impulsionada pelo neoliberalismo que, como dizíamos, possibilitou o enraizamento das ideias pós-fascistas. A organização por baixo que produz continuamente a democracia é a melhor barreira para frear o avanço do neoliberalismo. Portanto, não necessitamos que falem por nós, e nem todas as revoltas podem ser traduzidas em termos legislativos. Na verdade, suas experiências produzem experiências «não representáveis»: espaços de automanutenção da vida que geram alternativas sem esperar a sanção estatal; espaços e práticas que abrem caminhos possíveis para imaginar e concretizar saídas para a crise ecológica ou social; lugares onde elaborar sentidos e linguagens comuns necessários para transformar a sociedade e a cultura. Nas lutas feministas dos últimos tempos, vislumbramos essa exigência de ir além da democracia representativa, de torná-la «real».


Nota: a versão original deste artigo foi publicada em espanhol em Nueva Sociedad No 298, 3-4/2022, disponível em www.nuso.org. Tradução de Luiz Barucke.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Outubro 2022, ISSN: 0251-3552


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