Tema central
NUSO Nº 2021 / Agosto - Setembro 2021

Do «BRICS» ao «TRICS»? Brasil e Turquia entre a política doméstica e a geopolítica mundial

Nos últimos cinco anos, tanto o Brasil quanto a Turquia passaram por turbulências internas e agora se encontram na encruzilhada de uma disputa hegemônica global, que requer decisões estratégicas com implicações econômicas, tecnológicas e geopolíticas sem precedentes. Apesar de algumas sobreposições na política nacional e na história, o Brasil e a Turquia são duas potências regionais lideradas hoje por líderes autoritários e ultra-conservadores que, no entanto, empregam estratégias de política externa completamente diferentes, tanto global quanto regionalmente.

Do «BRICS» ao «TRICS»?  Brasil e Turquia entre a política  doméstica e a geopolítica mundial

Em 2003, Recep Tayyip Erdoğan e Luiz Inácio Lula da Silva emergiram como importantes líderes políticos de duas potências regionais em ascensão, a Turquia e o Brasil. Após a fundação do Partido da Justiça e Desenvolvimento (akp, na sigla em turco) em 2001, Erdoğan obteve uma esmagadora vitória nas eleições gerais de 2002 e se tornou primeiro-ministro da Turquia com uma missão clara de avançar nas negociações para integrar a União Europeia e recuperar a economia nacional da crise financeira de 2001. Em 2002, Lula concorria pela quarta vez à Presidência pelo Partido dos Trabalhadores (pt), fundado em 1980, e finalmente venceu as eleições com 61,27% dos votos no segundo turno, gerando grandes expectativas por avanços transformadores nas políticas públicas do Brasil, inclusive na política exterior. Apesar de frustrações, avaliações desfavoráveis e ressentimentos com relação às conquistas de ambos os líderes políticos, é possível afirmar que eles iniciaram um processo de mudança na política exterior de seus países na busca por prestígio internacional e liderança regional. Hoje, passado o controverso impeachment de Dilma Rousseff em 2016, o pt já não ocupa o poder, enquanto Erdoğan se tornou o primeiro presidente turco após a aprovação do referendo constitucional de abril de 2017. Na atual geopolítica mundial, Brasil e Turquia parecem atravessar uma difícil conjuntura que pode acabar alterando seriamente suas possibilidades de alcance global e liderança regional. Nos últimos cinco anos, os dois países passaram por profundas turbulências internas e se encontram hoje na encruzilhada de uma disputa hegemônica internacional entre os Estados Unidos e a China que requer decisões estratégicas com implicações econômicas, tecnológicas e geopolíticas inéditas.

Pontos em comum entre os dois gigantes regionais

Brasil e Turquia estão entre as sociedades mais desiguais do mundo, tendo obtido em 2018 o índice de Gini de 53,9 e 41,9, respectivamente1. Ambas são economias em desenvolvimento de renda média que enfrentam complexos problemas socioeconômicos e disparidades regionais internas (tabela 1). Os dois países sofreram recentemente com crises financeiras globais e reduzidas taxas de crescimento econômico: de acordo com o Banco Mundial, o Brasil apresentou taxas de crescimento negativas em 2015 (-3,5%) e 2016 (-3,3%), e taxas baixas desde 2017 (1,3% em 2017 e em 2018, e 1,1% em 2019); as taxas de crescimento da Turquia caíram de 6,1% (2015), 3,2% (2016) e 7,5% (2017) para 2,8% (2018) e 0,9% (2019). Ambos enfrentam problemas internos de corrupção, tendo o último relatório da Transparência Internacional, de 2018, classificado o Brasil na 106ª colocação (entre 198 países) com pontuação de 35/100 e a Turquia na 91ª colocação com 39 pontos2. Os dois países são ex-impérios que ocupam vastos territórios de grande magnitude geopolítica. A Turquia é uma histórica ponte entre o Oriente e o Ocidente, membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (otan) e do Centro de Desenvolvimento da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (ocde), e seu território nacional é atravessado por oleodutos e gasodutos. Já o Brasil é uma massa continental que cobre metade do território sul-americano, detém a segunda maior reserva de petróleo cru da América Latina e do Caribe em 2019, é um país megadiverso ambientalmente e se encontra na órbita hegemônica dos eua dentro do que o Departamento de Estado denominou «hemisfério ocidental». Trata-se de um importante país das Américas que, particularmente durante a «maré rosa» na América do Sul, apresentou uma política exterior fundamentada em uma ambição política de autonomia global e regional em concorrência com Washington. No âmbito nacional, os dois países possuem divergências intrarregionais. A Turquia é formada por 26 regiões. Istambul e suas áreas vizinhas, onde está sediada a maioria das empresas, geram aproximadamente 35% do pib anual. As regiões localizadas na parte ocidental do país – como Istambul, Ancara e Esmirna – têm a maior renda per capita, e aquelas situadas na parte oriental possuem a renda per capita mais baixa. Ancara (com uma grande quantidade de centros de saúde, universidades e instituições governamentais) e Istambul (o centro financeiro) apresentam melhores indicadores de infraestrutura social e financeira, respectivamente. Istambul é a região mais desenvolvida em matéria de infraestrutura física, seguida de Kocaeli-Sakarya-Düzce, a região ligada à parte anatoliana de Istambul3. De acordo com a ocde, as disparidades regionais em termos de pib per capita se reduziram ligeiramente na Turquia entre 2004 e 2014. Com um crescimento anual do pib per capita de 5,4% nesse intervalo, a Anatólia Oriental tem se aproximado de Istambul, que cresceu 3,6% ao ano no mesmo período. Com relação a emprego, educação e capacitação dos jovens, por exemplo, quatro das cinco regiões com os piores indicadores na ocde estão localizadas nas regiões turcas da Anatólia Oriental e Anatólia Central4. O Brasil possui 27 estados federados e o Distrito Federal, onde se situa Brasília. São Paulo concentra um terço da renda nacional, e as regiões Sul e Sudeste são as duas mais desenvolvidas do país em termos de indicadores econômicos e sociais. A tabela 2 resume as principais desigualdades e diferenças entre as regiões brasileiras, além de comparar o estado federado mais rico (São Paulo) com o mais pobre (Piauí). É interessante notar que, ao contrário do padrão observado na década de 1990 – quando o Estado brasileiro reduziu suas políticas e recursos orientados às regiões menos desenvolvidas –, durante os governos do pt, o Estado ressurgiu como um importante investidor e promotor de crescimento regional. Contudo, essa atuação gerou problemas, principalmente na coordenação federal, cujas ações ainda seguem o padrão de incentivo aos investimentos em setores tradicionais, o mesmo adotado nas décadas de 1960 e 1970 durante o regime militar. Em matéria de desenvolvimento humano, se considerarmos a taxa de analfabetismo, por exemplo, notaremos que a região Sul é a menos afetada, com 3,6% de sua população analfabeta, enquanto as regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste apresentam, respectivamente 5,7%, 8% e 14,5% de analfabetismo em sua população5.As relações entre civis e militares demonstram outro ponto em comum no desenvolvimento político recente do Brasil e da Turquia, já que golpes militares interromperam historicamente esforços de construção democrática ao longo de todo o século xx em ambos os países. O regime militar brasileiro durou de 1964 a 1985, e a Turquia sofreu uma série de golpes perpetrados por militares que se consideram há muito os guardiões da democracia secular turca fundada por Mustafa Kemal Atatürk em 1923. Um primeiro governo militar durou de 1960 a 1965, um segundo golpe ocorreu em 1971, e um terceiro foi perpetrado em 1980. Em 1997, os militares publicaram uma série de «recomendações» ao governo de coalizão liderado pelo islâmico Partido do Bem-Estar (Refah), que obteve vitórias consideráveis nas eleições de 1995. O governo não teve alternativa a não ser aceitar essas imposições. O Refah foi fechado em 1998, e alguns de seus membros (entre eles, Erdoğan) criaram o akp anos depois. Nos dois países, as Forças Armadas desempenharam papéis políticos importantes e desenvolveram estreitos vínculos com o pensamento estratégico, escolas e oficiais militares ocidentais. Seus atuais ministros da Defesa são ex-generais: Fernando Azevedo e Silva no Brasil e Hulusi Akar na Turquia. No entanto, as responsabilidades e funções atuais dos militares parecem expressar diferentes expectativas domésticas e ambições internacionais, já que, no caso turco, a Guerra da Síria, a crise de refugiados e a relevância dos curdos como a maior minoria étnica representam ameaças à segurança em uma escala inexistente no Brasil. Desde o final da ditadura, os militares brasileiros mantiveram importantes papéis nas políticas de segurança pública durante eventos internacionais (por exemplo, a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro), na «pacificação» das favelas e na proteção do meio ambiente amazônico6.Finalmente, devido a sua formação histórica e modelos de desenvolvimento socioeconômico, Brasil e Turquia partilham de outra característica de grande relevância para compreender o processo decisório referente à política exterior: ambos possuem cisões profundas em sua elite. De modo sintético, essa cisão no Brasil se refere à oposição entre uma visão de mundo cosmopolita e outra baseada na soberania, ambas presentes nos setores público e privado, e ao alinhamento com o mundo ocidental em contraste com uma busca por autonomia e uma política econômica menos hegemônica e mais multipolar7. Com o presidente Jair Bolsonaro, as cisões intensificaram a polarização política, inclusive nos domínios cultural, social e ambiental, que tendiam a fazer parte de um denominador comum desde a Constituição de 1988, assim como a promoção dos direitos humanos, cotas raciais, políticas de gênero, direitos indígenas e a proteção da Amazônia e das reservas naturais. Na Turquia, existe hoje uma divisão entre a burguesia «secular» de Istambul e outra religiosa (muçulmana) em rápida expansão na região da Anatólia; entre quem apoia a democracia e um retorno turco ao parlamentarismo em contraste com os apoiadores do controle cada vez mais antidemocrático do presidente Erdoğan sobre as instituições políticas, pesquisadores independentes, organizações da sociedade civil e a mídia opositora; e, finalmente, entre aqueles que defendem modelos liberais de desenvolvimento econômico e outros mais voltados ao paradigma centrado no Estado.

Agitação doméstica, crise econômica e implicações na política exterior

Após anos de taxas de crescimento econômico sustentado (e relativamente alto) e esforços de desenvolvimento democrático, Brasil e Turquia enfrentam hoje crise econômica e o ressurgimento de líderes autoritários. Erdoğan e Bolsonaro foram eleitos pelo voto direto, mas ambos desafiam constantemente as instituições políticas que têm como função salvaguardar o Estado de direito, a democracia e os direitos humanos. O menosprezo pela pluralidade política, pela diversidade social e pelos conhecimentos científicos é o que parece unir os dois presidentes no contexto de seus respectivos países. No entanto, eles têm implementado até agora abordagens opostas no tocante à política externa. Após algumas convergências passadas no campo internacional, como o plano Davutoğlu-Amorim de 2010 para solucionar o problema nuclear iraniano, essas duas potências diplomáticas adotam hoje estratégias de política exterior completamente diferentes (tabela 3).

Depois de uma aliança pessoal entre Donald Trump e Bolsonaro que implicou a submissão e a docilidade do Brasil perante os interesses de Washington, o país que chegou a ser um líder sul-americano e construtor de pontes entre Norte e Sul está prestes a se tornar um pária internacional em importantes negociações regionais e multilaterais. No caso da Turquia, passados anos de negociações frustradas com Bruxelas para integrar a ue, e apesar de sua associação à otan, Ancara direciona seu olhar ao Oriente e pode acabar se tornando um importante aliado no eixo sino-russo de segurança e desenvolvimento8.O ponto de inflexão em ambos os casos está associado a fatores domésticos e sistêmicos. No Brasil, escândalos de corrupção envolvendo representantes do governo e o setor privado, um crescente e difuso sentimento anti-pt que desencadeou protestos nas ruas entre 2013 e 2016, baixas taxas de crescimento econômico desde 2014, entre outros fatores, provocaram drásticas mudanças políticas que culminaram no impeachment de Dilma Rousseff e no governo de transição de Michel Temer, seu vice-presidente. Como resultado de uma crescente polarização social e política, o extremista de direita Bolsonaro foi eleito presidente em novembro de 20189.Na Turquia, duas importantes mudanças externas estão ligadas à consolidação do poder político do akp: a crise econômica mundial de 2009, que desafiou a hegemonia estadunidense mundial e regionalmente, e a Primavera Árabe de 2011. Com a decisão de se retirar do Iraque, Washington passou a se concentrar menos na política do Oriente Médio, e a Primavera Árabe afetou diretamente as escolhas da Turquia em matéria de segurança nacional e política exterior. Essas duas mudanças coincidiram internamente com uma maior capacidade do akp de consolidar seu poder político e satisfazer a interesses religiosos e econômicos de seu principal eleitorado. O akp substituiu progressivamente valores liberais por uma identidade islâmica como seu principal arcabouço político, afetando de maneira profunda as decisões de política exterior da Turquia, particularmente com relação aos países ocidentais e debates multilaterais sobre direitos humanos e gênero. Ao mesmo tempo, as relações exteriores entre a Turquia e a ue são fundamentais para compreender essas mudanças. O primeiro-ministro de centro-direita Turgut Özal reativou o processo de associação turca solicitando-a formalmente em 1987. Tansu Çiller (a primeira e única mulher primeira-ministra da Turquia até este momento e que ocupou o cargo entre 1993 e 1996) assinou o acordo de União Aduaneira em 1995. O centro-esquerdista Mustafa Bülent Ecevit conquistou a condição de candidato a membro da ue para o país em 1999. Portanto, independentemente de seu espectro político, diferentes governos solicitaram a associação à ue, mas foi durante a gestão do akp que a Turquia cumpriu os critérios de Copenhague e que, em 2004, a União concordou em iniciar as negociações10. Como lembram Ziya Öniş e Mustafa Kutlay, transformações ocorridas na economia política global, o declinante apelo da ue em sua periferia, dinâmicas internas da integração europeia e suas diversas crises, mas também o apelo de versões iliberais de capitalismo estratégico, entre outros fatores, podem explicar por que as elites turcas mudaram suas prioridades geográficas na resolução de dilemas relacionados com o nexo regional-global11.

O nexo regional-global e dilemas da política exterior

Atualmente, apesar de uma recente trajetória comum de turbulências domésticas, da ascensão de um líder autoritário e de outros pontos em que os dois países podem se assemelhar, Brasil e Turquia apresentam importantes diferenças quando são consideradas suas atuais ambições políticas no cenário internacional e a capacidade de liderar em suas respectivas regiões12. A dimensão regional das estratégias de política exterior de países como esses é um aspecto relevante, pois suas escolhas nos níveis regional e global podem gerar dilemas. Como o Brasil equilibra sua associação ao brics com uma prioridade de política exterior na América do Sul e um foco na solidariedade Sul-Sul com países africanos? A lealdade de Bolsonaro ao trumpismo resistirá à próxima administração de Joseph Biden e Kamala Harris? Como a Turquia conciliará seu caráter de ponte geográfica entre dois mundos com uma identidade muçulmana? E quanto à associação da Turquia à otan e à ocde? Não responderemos aqui a todas essas perguntas. Em poucas palavras, os últimos cinco anos mostraram como o nexo regional-global pode produzir sérios dilemas de política exterior em ambos os países. Dilemas se referem a decisões que devem ser tomadas independentemente de incertezas, riscos e custos que uma escolha regional em particular possa implicar em escala mundial e vice-versa. Os níveis (do nacional ao regional e global) se articulam e tornam políticas internas e externas intrinsecamente inter-relacionadas. Além disso, os contextos são dinâmicos (particularmente no Oriente Médio), o que pode adicionar custos extras relacionados com um (excessivo) envolvimento13.No caso turco, a dissolução da antiga União Soviética deu a Ancara mais espaço político não só no Oriente Médio, nos Bálcãs e na Ásia Central, onde a Turquia cultiva laços profundos com os países recém-independentes, mas afetou também o papel geopolítico da Turquia junto a seus aliados ocidentais. Cabe acrescentar que o final da Guerra Fria não significou o encerramento de conflitos na região (mencionamos a invasão iraquiana do Kuwait, a Guerra do Alto Carabaque, a Guerra da Chechênia, a Guerra Civil Iugoslava, os conflitos entre Israel e Palestina e a Guerra da Síria, a questão curda, entre tantos outros conflitos). Isso explica por que o ministro das Relações Exteriores Ahmet Davutoğlu (2009–2014) buscou posicionar a Turquia no centro da política regional e global, transformando-a em um ator fundamental14. Após a Cúpula da Parceria Turquia-África de 2008, que contou com a participação de 49 países africanos, foram organizadas diversas cúpulas como parte de uma visão estratégica de cooperação para o desenvolvimento sob a coordenação da Agência Turca de Cooperação Internacional (tika, no sigla em turco). Desde 2009, a Turquia tem sinalizado gradualmente um movimento rumo ao Oriente, tentando construir e consolidar uma aliança com a Rússia e a China. Se no início da era do akp o governo turco trabalhou para melhorar as relações com a ue e evitar antagonizar-se com Washington, depois de 2009 e particularmente na sequência da tentativa de golpe de Estado em julho de 201615, a política exterior de Erdoğan tem se fundamentado em uma forma conservadora e religiosa de nacionalismo, mas também na diversificação de parcerias econômicas e estratégicas16. Desde então, o presidente turco vem buscando mais autonomia perante a otan e os modelos de desenvolvimento liderados pelo Ocidente, e assumindo o que parece ser o final da ilusão europeia17.Com Bolsonaro, a política externa do Brasil passou por uma de suas transformações mais dramáticas em décadas, produzindo rupturas no exterior e feridas internas que podem levar anos para serem sanadas pelos próximos presidentes e ministros das Relações Exteriores, e as próximas eleições presidenciais só ocorrerão no final de 2022. Em sua proposta eleitoral, intitulada Projeto Fênix, o então candidato Bolsonaro prometeu um novo Itamaraty a serviço dos valores associados ao que sua equipe denominou «o verdadeiro povo brasileiro». A guinada em sua política exterior foi confirmada com a nomeação de Ernesto Araújo, um diplomata de carreira que nunca havia chefiado uma representação no exterior, para comandar o Ministério das Relações Exteriores. Hoje, após dois anos de governo bolsonarista, inúmeros eventos, posicionamentos e declarações mostraram o que muitos especialistas têm chamado de uma diplomacia casuística e vergonhosa. Minha hipótese é que a administração atual representa o primeiro governo desde 1988 que rompeu os princípios normativos consagrados na Constituição brasileira ao associar a política exterior do país a um projeto de poder personalista e ultraconservador, afastado da diversidade e do pluralismo que fundamentam o pacto pela democratização pós-1988. Desde a redemocratização, os governos nunca foram homogêneos, e isso inclui o de Bolsonaro, mas sua administração foi a primeira a produzir uma ruptura nas narrativas e práticas da política exterior na trajetória contemporânea do país. Diferentemente da Turquia, o Brasil reduziu drasticamente sua ambição regional e global: a saída da Unasul, relações bilaterais conflitantes com o presidente argentino Alberto Fernández, o rebaixamento do Mercado Comum do Sul (Mercosul) nas prioridades da política exterior, as perspectivas antiglobalistas em diversos fóruns das Nações Unidas (sobre direitos humanos, questões de gênero, direitos de povos indígenas e outros temas), o apoio a políticas de obstrução com relação às mudanças climáticas (negação, atraso, uso de fake news) e o fanatismo anti-China são apenas alguns exemplos. Sua administração foi implementando pouco a pouco uma estratégia de Estado pária, isolando o Brasil de esforços diplomáticos multilaterais regionais e globais. O caso recente da exclusão do Brasil da Cúpula da Ambição do Clima 2020 só veio a confirmar essa tendência. Tanto o Brasil como a Turquia são potências regionais, mas o contexto regional no qual o Brasil se situa é muito menos conflitante e muito mais hegemonizado pelos eua. Isso pode ter gerado uma visão estratégica de longo prazo bem mais desenvolvida em Ancara do que em Brasília, ainda que ambos os países tenham sido governados por militares. No caso brasileiro, fatores políticos internos desempenharam um papel importante na redução da ambição geopolítica do país, uma ambição que havia crescido durante os governos do pt, mas que nunca contou com total adesão de elites locais estratégicas. Bolsonaro enterrou de fato essas ambições. Hipóteses para compreender a mudança dessas ambições

Em primeiro lugar, Brasil e Turquia ilustram a atual guinada autoritária que ocorre mundialmente nas políticas domésticas em estreita relação com mudanças de poder internacional, tanto global como regionalmente. Erdoğan e Bolsonaro são exemplos claros de líderes que, apesar de terem sido legalmente eleitos, levantam bandeiras divisionistas, conservadoras e religiosas em sociedades complexas atravessadas por diversidade étnica e racial, além de projetos contraditórios de modernidade social. Os dois presidentes culpam os valores políticos liberais, subestimam as instituições democráticas e o multilateralismo, satisfazem a seus próprios círculos políticos e deixam de lado grupos sociais progressistas para justificarem seus respectivos projetos e ampliarem seu apoio popular. Muitas de suas decisões no campo da política exterior buscam conquistar os corações das audiências nacionais, ainda que algumas delas gerem efeitos negativos sobre o desenvolvimento econômico, social e ambiental do país. A comparação entre as trajetórias domésticas de ambos os países mostra semelhanças em vários aspectos, mas pelo menos uma diferença é clara: no Brasil, a trajetória do Estado de direito democrático e da gestão pluralista rumo a um modelo de governo que ameaça o demos e ignora organizações da sociedade civil ocorreu sob o comando de um novo líder; no caso turco, Erdoğan demonstrou uma flexibilidade oportunista ao se ajustar continuamente a um modelo de liderança autoritária que foi capaz de marginalizar os componentes liberais da coalizão de apoio e do processo decisório do governo.Em segundo lugar, no campo internacional, ambos os líderes adotam políticas nacionalistas economicamente orientadas para o exterior, mas suas concepções do papel do Estado no desenvolvimento e interpretações da ordem mundial são bem diferentes. O presidente brasileiro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, parecem não ter aprendido as lições da crise financeira global de 2008 e, mesmo no contexto da atual pandemia, promovem uma visão neoliberal das relações entre Estado e mercado. Além disso, a visão de mundo de Bolsonaro é quase exclusivamente inspirada na hegemonia liderada pelos eua, arraigada na defesa do cristianismo e no que Araújo classifica como os verdadeiros valores das sociedades ocidentais. Erdoğan, ao contrário, implementa políticas regulatórias e de desenvolvimento mais condizentes com um modelo de capitalismo de Estado. Como afirma Mustafa Kutlay, a «economia política turca da última década parece adotar um novo paradigma com implicações na configuração das instituições domésticas»18. Isso pode representar uma mudança profunda na trajetória da Turquia, já que as ideias liberais dominaram até muito recentemente o pensamento político e econômico do país. Embora os governos tenham praticado alguma dose de intervencionismo nas décadas de 1960 e 1970, o Consenso de Washington exerceu forte influência nas políticas turcas entre os anos 1980 e a primeira década do século xxi.Do ponto de vista comercial, no entanto, a Turquia mantém uma relação estreita com a Europa. Ainda que China e Rússia tenham fortalecido suas parcerias econômicas com a Turquia, em termos de stocks, os Países Baixos detêm a liderança com 19,9% do total dos investimentos estrangeiros, seguidos pelo Reino Unido com 14,9%. O Azerbaijão foi o responsável pelo maior investimento na Turquia entre janeiro e março de 2019, uma novidade para a história do país. Isso se deveu sobretudo ao lançamento da refinaria de petróleo star, operada pela estatal azerbaijana Socar. A entrada de investimentos estrangeiros diretos (ied) em 2019 foi de 8,4 bilhões de dólares, uma queda considerável em comparação com os 13 bilhões de 2018 (-35%). As ações de ied em 2019 foram de 165 bilhões de dólares, inferiores aos 188 bilhões de 2010. Entre os setores turcos que atraem as maiores parcelas de ied, incluem-se os de finanças, comércio atacadista e varejista, e indústria19.No Brasil, o comércio internacional é mais diversificado. Além disso, o Brasil é hoje o nono maior receptor mundial de ied em termos de renda (era o sétimo em 2018) e o primeiro da alc. Os stocks de ied atingiram 640 bilhões de dólares no final de 2019, quando os investidores foram atraídos especialmente pelos setores de extração de petróleo e gás, e elétrico. A China aumentou sua capacidade de investimento no Brasil durante o boom de ied entre 2009 e 2011. De 2005 a 2019, empresas chinesas investiram 131,1 bilhões de dólares na América Latina e Caribe, montante que representou aproximadamente 10,7% de todo o ied realizado pelo país asiático no mundo. Nesse mesmo período, o Brasil recebeu 60,4 bilhões desse total, praticamente a metade de todo o ied chinês na região20.Em terceiro lugar, quanto a aspectos geopolíticos, a aposta turca em uma alternativa ao mundo ocidental parece estar associada às mudanças em seu modelo político e econômico. A aposta do Brasil em uma mudança rumo à diversificação, particularmente durante as administrações do pt, não prosperou. A criação de uma alternativa de segurança ao mundo ocidental era impossível durante e após a Guerra Fria, principalmente porque o Brasil se situa na área de influência direta dos eua, mas também devido à oposição interna dos principais membros da elite estratégica, que sempre consideraram o país «outro Ocidente», ao mesmo tempo diferente e parte do mundo ocidental. Quando os governos pensaram em alternativas de política exterior – nas décadas 1960, 1970 e, mais recentemente, durante as administrações do pt –, elas estiveram associadas a desenvolvimento econômico, oportunidades e negociações comerciais, e diversificação de alianças com outras potências do Sul. É verdade que os momentos históricos desses dois modelos de política exterior são diferentes: o Brasil apostou na graduação autônoma em um momento histórico no qual a economia política internacional e a dispersão de poder facilitavam estratégias emergentes sem muitos riscos à segurança, ao passo que a Turquia implementa suas atuais decisões de política exterior em um contexto regional em que a geopolítica tem muito mais relevância e em uma conjuntura na qual a concentração de poder é muito maior que sua dispersão. A Turquia parece contar com mais coesão interna entre sua elite estratégica, ainda que tal coesão se fundamente em estruturas de governo mais autoritárias e menos democráticas. No passado, as considerações sobre o desenvolvimento haviam exercido menos influência sobre a política exterior turca. Durante a Guerra Fria, especialmente por ter se aliado ao bloco ocidental e desempenhado um papel estratégico para conter as pressões da União Soviética na região, as questões relacionadas com o desenvolvimento social pareciam pesar menos na política exterior turca. Hoje, isso não aparenta mais ser assim.Atualmente, a elaboração de uma estratégia de diversificação econômica também possui claras implicações estratégicas e geopolíticas. A definição de padrões tecnológicos está estreitamente ligada a disputas geopolíticas, como no caso da tecnologia de internet 5g. A Turquia parece trilhar hoje um caminho geopolítico mais próximo da China que dos eua. O Brasil simplesmente não tem rumo. Considerando o cenário atual, é possível especular se a presença do Brasil no grupo dos brics é sustentável e se a Turquia poderia ou não ser uma boa substituta geopolítica do gigante sul-americano. Em termos regionais, uma eventual saída do Brasil implicaria não somente a perda do status político de «gigante» para este país, mas também um abandono da América Latina deste grupo geopolítico de poder.

  • 1.

    Banco Mundial, Grupo de Pesquisas para o Desenvolvimento. As estimativas do índice de Gini se baseiam em dados de censos familiares primários obtidos de agências de estatística governamentais e divisões do Banco Mundial de cada país. Dados disponíveis em http://iresearch.worldbank.org/PovcalNet/home.aspx.

  • 2.

    Transparency International: «Corruption Perceptions Index» en www.transparency.org/en/cpi/2019/results.

  • 3.

    Hülya Saygili e K. Azim Özdemir: «Regional Economic Growth in Turkey: The Effects of Physical, Social and Financial Infrastructure Invesments», documento de trabalho Nc 17/16, Banco Central da República da Turquia, 2017, pp. 1-32.

  • 4.

    OCDE: OECD Regions and Cities at a Glance 2020, OCDE Publishing, Paris, 2020, disponível em www.oecd.org/governance/oecd-regions-and-cities-at-a-glance-26173212.htm.

  • 5.

    Aristides Monteiro Neto: «Desigualdades regionais no Brasil: características e tendências recentes» em Boletim Regional, Urbano e Ambiental Nc 9, ipea, 2014.

  • 6.

    Alexandre P. Spohr e André L. Reis da Silva: «Foreign Policy’s Role in Promoting Development: The Brazilian and Turkish Cases» em Contexto Internacional vol. 39 Nc 1, 2017, pp. 157-178.

  • 7.

    C.R.S. Milani e Tiago Nery: «The Sketch of Brazil’s Grand Strategy under the Workers’ Party (2003-2016): Domestic and International Constraints» em South African Journal of International Affairs vol. 26 Nc 1, 2019, pp. 73-92.

  • 8.

    Ahmet Insel: La nouvelle Turquie d’Erdoğan. Du rêve démocratique à la derive autoritaire, La Découverte, Paris, 2017.

  • 9.

    Duas análises do bolsonarismo podem ser encontradas em Adalberto Cardoso: À beira do abismo: uma sociologia política do bolsonarismo, edição do autor, 2020, www.researchgate.net/publication/344794093_A_beira_do_Abismo_uma_sociologia_politica_do_bolsonarismo; e Jairo Nicolau: O Brasil dobrou à direita: uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018, Zahar, Rio de Janeiro, 2020.

  • 10.

    Mehmet Sahin: «Theorizing the Change: A Neoclassical Realist Approach to Turkish Foreign Policy» em Contemporary Review of the Middle East vol. 7 Nc 4, 2020, pp. 483-500.

  • 11.

    Z. Öniş e M. Kutlay: «Global Shifts and the Limits of the eu’s Transformative Power in the European Periphery: Comparative Perspectives from Hungary and Turkey» em Government & Opposition: An International Journal of Comparative Politics vol. 54 Nc 2, 2019, pp. 226-253.

  • 12.

    As regiões não estão definidas aqui apenas por sua geografia, mas também por suas dimensões políticas, sociais, culturais e econômicas, o que torna a definição de uma região brasileira ou turca uma tarefa muito complexa. No caso brasileiro, sua região é a América Latina ou a América do Sul? E quanto ao Caribe? O Brasil é uma nação ocidental? No caso da Turquia, o país pertence ao Oriente Médio? Está nos Bálcãs europeus? Na ue? A Turquia é uma nação mediterrânea? Ela pertence à Irmandade Muçulmana? Cabe lembrar que, em uma reunião no Salão Oval em 2011, Barack Obama cumprimentou Erdoğan em árabe com «Salam un aleykum», situando a Turquia no mundo islâmico. Para uma comparação de suas respectivas estratégias regionais, v. Ekrem Eddy Güzeldere: Brazil-Turkey: Two Emerging Powers Intensify Relations, FUNAG, Brasília, 2018, p. 71.

  • 13.

    Para um debate sobre dilemas de política exterior em casos como o brasileiro ou turco, v. C.R.S. Milani, Leticia Pinheiro e Maria Regina Soares de Lima: «Brazil’s Foreign Policy and the Graduation Dilemma» em International Affairs vol. 93 Nc 3, 2017, pp. 585-605.

  • 14.

    Mesut Özcan: Harmonizing Foreign Policy, Turkey, the EU and the Middle East, Ashgate, Aldershot, 2008.

  • 15.

    A mídia e o governo colocaram sob suspeita Fethullah Gülen, um pregador e empresário turco radicado nos EUA desde 1999. Houve também alegações por parte de Ancara de que as redes de inteligência de Washington teriam se envolvido na tentativa de golpe.

  • 16.

    Z. Öniş: «Turkey and the Arab Revolutions: Boundaries of Regional Power Influence in a Turbulent Middle East» em Mediterranean Politics vol. 19 Nc 2, 2014, pp. 203-219.

  • 17.

    Jana J. Jarbour: La Turquie. L’invention d’une diplomatie émergente, La Découverte, Paris, 2017.

  • 18.

    M. Kutlay: «Politics of New Developmentalism: Turkey, brics and beyond» em Emre Ersen e Seckin Kostem (eds.): Turkey’s Pivot to Eurasia, Routledge, Londres, 2019.

  • 19.

    UNCTAD: World Investment Report 2020, disponível em https://unctad.org/system/files/official-document/wir2020_en.pdf.

  • 20.

    Ibid.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad 2021, Agosto - Setembro 2021, ISSN: 0251-3552


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