Conjuntura
NUSO Nº Junho 2017

«Trumponomics»: neoliberalismo neoconservador disfarçado de circo antiglobalização

«Trumponomics»: neoliberalismo neoconservador disfarçado de circo antiglobalização

Um elemento-chave do sucesso político de Trump tem sido seu disfarce de pró-trabalhador, o que inclui posar de antiglobalização. No entanto, seus verdadeiros interesses econômicos são exatamente opostos. Isso cria um conflito entre os seus interesses políticos e econômicos. Compreender a equação desse conflito é fundamental para entender e prever a política econômica de Trump, em especial sua política econômica internacional.

Como parte de seu disfarce de pró-trabalhador, Trump montará um circo antiglobalização, mas suas ameaças não serão tão graves porque a globalização neoliberal aumentou os lucros das empresas, o que está em conformidade com seus interesses econômicos. Ele também alimentará a política racista de imigração de sua base política, desde que isso não acarrete um impacto adverso sobre a lucratividade empresarial.

Por fim, Trump expressa tendências unilateralistas neoconservadoras que «pegam bem» com boa parte do eleitorado norte-americano. Seu unilateralismo neoconservador não é uma aberração política temporária e pontual. Na verdade, reflete características intrínsecas e duradouras da política de governo (polity) dos Estados Unidos. Isso tem profundas implicações para a ordem das relações internacionais e é algo que os governos de outros países podem ainda não ter compreendido.

Como Trump obteve sucesso

O sucesso político de Trump foi baseado em um ataque em dois flancos do establishment. Primeiro, ele intensificou a agenda de valores culturais «iliberais» republicanos existente até degradá-la em um nacionalismo autoritário racista. Em seguida, capturou a crítica progressista contra a economia neoliberal, em especial a crítica à globalização.

Essa exacerbação da agenda dos valores culturais iliberais permitiu a Trump alijar o establishment republicano. Seu extremismo o fez saltar para o começo da fila republicana, algo fundamental durante o processo das primárias, já que estas envolvem os eleitores mais extremados. Contudo, seu nacionalismo racista tem um apelo político ainda mais amplo porque o racismo vai muito além da base republicana, ao passo que o nacionalismo tem apoio do establishment bipartidário.

O outro lado do êxito de Trump foi sua captura da crítica progressista contra a economia neoliberal. Há quatro décadas a economia americana vem enganando o eleitorado da classe trabalhadora via estagnação salarial e perda de empregos industriais. Isso criou descontentamento e frustrou expectativas. Trump tirou proveito dessa situação disfarçando-se de crítico da economia neoliberal e prometendo fazer a economia funcionar para a classe trabalhadora dos eua.

Nesse tocante, sua captura do debate em torno da globalização e da desin-dustrialização é particularmente importante. Isso se deve a que a globalização e a desindustrialização são a face mais pública da economia neoliberal, onde o impacto nos salários e empregos tem sido mais visível e tangível. Ao se apropriar de maneira convincente da crítica da globalização – através de críticas contra o offshoring [exportação de postos de trabalho], a China e tratados comerciais como Acordo de Livre Comércio da América do Norte (nafta, na sigla em inglês) e a Parceria Transpacífico (tpp) –, Trump ganhou credibilidade para sua alegação de estar do lado das famílias trabalhadoras.Democratas do establishment deram a Trump a abertura para capturar o debate da globalização ao insistir na tpp, apesar da oposição generalizada dos eleitores. E a culpa por esse fato recai, em especial, sobre o ex-presidente Barack Obama. Essa captura permitiu a Trump criar uma narrativa nova e retorcida sobre a globalização neoliberal, que culpa «estrangeiros e imigrantes».

O relato de Trump é o de que os eua são uma vítima. O país teria supostamente negociado acordos comerciais fracos, e os estrangeiros teriam agido desonestamente e se aproveitado desses acordos. Ao mesmo tempo, imigrantes ilegais inundavam o país, tomavam os empregos dos norte-americanos e faziam os salários cair. Mas a realidade é que a globalização foi Made in usa pelas empresas e em benefício das empresas, que trabalharam em conjunto com o Congresso e sucessivos governos.

A nova narrativa de Trump sobre a globalização centrada em «ponha a culpa nos estrangeiros e imigrantes» complementa e nutre sua agenda de valores culturais racistas e nacionalistas. A suposta culpa dos estrangeiros e imigrantes pelas dificuldades econômicas dos trabalhadores norte-americanos fornece a lógica de suas políticas xenófobas.

Em suma, Trump obteve êxito em sobrepujar o establishment republicano ao flanqueá-lo com sua agenda de valores culturais nacionalistas e racistas e ao flanquear o establishment democrata com sua retórica econômica antiglobalização. Essas duas manobras constituíram uma estratégia política coerente que permitiu a Trump conectar-se com o eleitorado reacionário, ao mesmo tempo em que fingia estar do lado dos trabalhadores.

Engodo e substituição: antiglobalização como engodo, neoliberalismo como substituto

A representação de Trump de estar do lado dos trabalhadores está em completa contradição com seus próprios interesses de homem de negócios bilionário cuja medida do sucesso é dinheiro e riqueza, e que é destituído de vocação caridosa ou noções de serviço público. A realidade é que ele está empenhado em um habilidoso golpe («engodo e substituição») próprio de um vigarista.

O engodo foi sua crítica contra o establishment econômico e a globalização, além do malefício que ambos causaram aos eleitores da classe trabalhadora. A substituição foi que, em vez de reformar a economia neoliberal, Trump usa o racismo, o nacionalismo e o autoritarismo como substitutos, ao mesmo tempo em que dobra a aposta na política econômica neoliberal.

Dada sua carência de um histórico em cargos de governo, Trump conseguiu de início dar-se bem com seu disfarce pró-trabalhador. Contudo, as realidades das políticas econômicas de Trump agora se mostram claras. Todas as evidências sugerem que ele pretende piorar a propensão da economia neoliberal de entregar estagnação salarial e desigualdade de renda aumentando o poder do empresariado e das finanças e intimidando e dividindo os sindicatos.

A equipe econômica de Trump está dominada por ex-funcionários do Goldman Sachs, entre os quais se incluem o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, e o diretor do Conselho Econômico Nacional, Gary Cohn. O estrategista-chefe de Trump, Stephen Bannon, também é egresso do Goldman Sachs.

A política tributária de Trump busca cortar a alíquota do imposto das empresas e indivíduos abastados; sua política de despesas orçamentárias busca cortar a despesa com o bem-estar social e a provisão de serviços públicos a famílias das classes baixa e média; e todas as formas de regulamentação – consumidor, mercado de trabalho, negócios, finanças e meio ambiente – estão sob intenso ataque.

Outra área sobre a qual o embuste avança é a da política econômica internacional. Isso decorre do fato de que Trump é obrigado a equilibrar necessidades políticas e interesses econômicos. Com relação à política, ele precisa se apresentar como remediando os efeitos negativos da globalização. Entre as famílias trabalhadoras, a globalização é a questão mais visível e a mais bem compreendida economicamente; daí decorre o fato de que a crítica de Trump contra a globalização predomine em seu disfarce pró-trabalhador. Por isso, é politicamente fundamental que ele preserve sua imagem de crítico da globalização.

Com relação à economia, os próprios interesses econômicos de Trump atestam sua identificação com as empresas e o capital. A globalização foi Made in usa para beneficiar as grandes empresas multinacionais norteamericanas, que têm sido as grandes vitoriosas nesse processo. Consequentemente, Trump está inclinado a preservar o sistema, embora aberto a fazer mudanças se estas aumentarem o lucro das empresas.

A implicação disso é que podemos esperar muito circo antiglobalização que atenda às necessidades políticas de Trump, mas ele não perturbará a globalização a menos que algo mais lucrativo seja possível.

O unilateralismo das relações internacionais de Trump: o fator neoconservador

As políticas econômicas internacionais de Trump também apontam para uma transição a uma nova era de unilateralismo dos eua nas relações internacionais. Parte desse novo unilateralismo é pose política de Trump visando convencer sua base de que ele é nacionalista e antiglobalização. Todavia, parte dele pode refletir o triunfo do pensamento neoconservador dentro do país.

O projeto neoconservador decorre da crença de que nunca mais deve haver uma potência, como a antiga União Soviética, capaz de rivalizar com os eua. Esse projeto no início representava o pensamento republicano extremado, mas hoje se tornou o pensamento predominante. Tanto os republicanos como os democratas agora acreditam que os eua têm o direito de intervir em qualquer lugar do mundo, à hora que bem entenderem, e têm o direito de pontilhar o globo com suas bases e pessoal militar – inclusive cercar a Rússia com ambos.

O bipartidarismo é evidente no apoio dos democratas à guerra do Iraque e na aceitação da guerra ao terror como justificativa para intervenções em qualquer lugar. Isso também fica evidente no contínuo investimento do ex-presidente Obama na expansão global de bases militares, na expansão das mobilizações de pessoal militar da Organização do Tratado do Atlântico Norte (otan) para a Europa Central e o Báltico e no apoio à revolução Maidan de 2014 na Ucrânia.

Embora os democratas em geral sejam mais soft do que os republicanos sobre a questão da potência sem rival, reforçam a lógica pró-intervenção neoconservadora com o argumento de que os eua têm o direito de intervir em nome da proteção da democracia. Esse direito decorre da «excepcionalidade dos eua», segundo a qual o país tem uma missão especial de transformar o mundo pela promoção da democracia, o que realimenta a crença bipartidária no unilateralismo.

Originalmente, o projeto neoconservador preocupava-se com supremacia militar e tinha a Rússia como alvo. No entanto, esse projeto diz respeito ao poder dos eua em geral, o que significa que potencialmente tem implicações para todos os países e todas as dimensões da política internacional. Outra distinção é que o unilateralismo neoconservador pode ser exercido tanto contra rivais como contra aliados.

O unilateralismo neoconservador pode estar agora se espalhando para as relações econômicas internacionais. Como única superpotência global, os eua inevitavelmente sentem-se cada vez menos refreados em todas as áreas. O unilateralismo econômico também é coerente politicamente com o sentimento hipernacionalista popular que tem sido incentivado de modo bipartidário, encaixando-se na narrativa construída por Trump de que «estrangeiros e imigrantes» são os responsáveis pelos males econômicos da nação.

A importância do fator neoconservador é que ele altera significativamente a interpretação de Trump para seu discurso sobre a política econômica internacional unilateralista. Em vez de ser mera vociferação de Trump, esse relato é coerente com a construção neoconservadora das relações internacionais. Essa construção serve de arcabouço maior para a política externa dos eua e, desse modo, a política econômica internacional tem que se enquadrar a ela. Isso explica por que as censuras de Trump em relação à otan geraram tão pouca reação dentro de Washington e por que o establishment foi tão rápido em implementar a proposta de uma taxa de ajuste fiscal de fronteira (border adjusted tax, bat) apesar de sua natureza unilateral e da inconsistência com a Organização Mundial do Comércio (omc). Trump adotou esse pensamento porque se coaduna com sua estratégia política nacionalista interna, mas anteriormente já havia uma tendência a tal pensamento dentro do establishment.

Conclusão: os prováveis contornos da política econômica internacional de Trump

Considerando as necessidades políticas e os interesses econômicos de Trump, quais são os prováveis contornos de sua política econômica internacional?

Primeiro, espere muita conversa circense em forma de crítica à globalização, mas será muito barulho por nada porque a globalização neoliberal beneficiou a lucratividade empresarial. Em segundo lugar, espere muito mais conversa unilateralista porque isso «pega bem» com a base eleitoral de Trump e é coerente com a doutrina neoconservadora.

Em terceiro lugar, espere uma movimentação no sentido de negociações bilaterais. Donos da maior economia, os eua se beneficiam de uma abordagem que lhes dá maior poder sobre países menores. O corolário é que os demais países se saem melhor diante dos eua quando negociam como grupo, em vez de um a um. Por exemplo, a União Europeia se sai melhor como grupo do que como uma coleção de países individuais, o mesmo valendo para a América Latina.

Em quarto lugar, no tocante a aspectos específicos, as normas trabalhistas e ambientais não terão vez porque são vistas como ruins para os lucros. Porém, a agenda de expansão e imposição de direitos de propriedade intelectual prosseguirá, já que é boa para os lucros, assim como seguirá havendo apoio aos dispositivos de resolução de disputas entre investidores e Estados.

Em quinto lugar, a imigração tornou-se um componente central da narrativa de Trump sobre a globalização. Espere um rigoroso controle policial da imigração dentro dos eua, cujo alvo serão trabalhadores vulneráveis, visando agradar sua base eleitoral, bem como um aprimoramento do programa de visto h-1b, cuja obtenção continuará fácil, já que dá às empresas acesso a mão de obra barata e as poupa de terem que investir em seus trabalhadores.

Por fim, os governos da Europa ocidental precisarão compreender as implicações do unilateralismo neoconservador de Trump para as relações internacionais, unilateralismo esse que não é uma aberração política temporária e pontual. Antes, reflete características já bastante duradouras do atual sistema político norte-americano, que entrou em uma era neoconservadora cujo objetivo é a supremacia global tácita dos eua e o unilateralismo, a nova norma.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Junho 2017, ISSN: 0251-3552


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