Artículo
NUSO Nº Junho 2012

Trabalho e gênero: um velho tema, novos olhares?

Apesar dos avanços nas novas constituições e de algumas reformas jurídicas, os enfoques de gênero continuam ausentes na legislação trabalhista. As mulheres continuam em desvantagem em todos os indicadores laborais e enfrentam discriminações abertas ou ocultas, como os chamados «tetos de cristal» ao ascender a empregos hierárquicos. Um caso paradigmático é o do trabalho doméstico em casas particulares, em que às carências de caráter legal soma-se a dificuldade para fazer cumprir as normativas aprovadas. Até onde houve avanços? Quais são as dívidas ainda pendentes? O caso uruguaio traz novas perspectivas sobre esta faceta do trabalho feminino que concentra múltiplas discriminações.

Trabalho e gênero: um velho tema, novos olhares?

Introdução

Os mercados de trabalho na América Latina apresentam alguns traços de caráter estrutural, tais como a alta proporção de trabalhadores atingidos pela informalidade, a precariedade e o subemprego. Essas características mantêm uma estreita relação com o fenômeno da pobreza e a desigualdade própria da região em várias dimensões. A participação de homens e mulheres no emprego é diferente em vários aspectos. Essa diferença acarreta possibilidades desiguais de escolher, o que, por sua vez, incide nos resultados obtidos em termos de bem-estar e autonomia pessoal. Isto diz respeito ao trabalho no mercado laboral tradicional, assim como a outros tipos de trabalho – como o desenvolvido nos lares – que, embora fiquem à margem da economia em seu sentido convencional, contribuem para o bem-estar das pessoas e à reprodução social. Tradicionalmente, o trabalho doméstico é tido como uma responsabilidade das mulheres, o que nos leva a perguntar até que ponto a sociedade como um todo garante a reprodução social e, ao mesmo tempo, respeita o direito de escolha das pessoas.

O objetivo deste artigo é considerar o que há de novo na política trabalhista da região, o que mudou com os chamados «governos de esquerda» e de que forma as desigualdades entre mulheres e homens são consideradas com relação ao trabalho. Nesse sentido, procura-se responder se, a partir de uma perspectiva de gênero com relação ao trabalho e ao emprego, houve modificações importantes, e, por conseguinte, se foram tomadas medidas para conciliar ambos os tipos de trabalho, tanto para os homens como para as mulheres, de forma a proporcionar um maior equilíbrio entre as responsabilidades familiares e o trabalho no mercado.

Trabalho e emprego a partir de uma perspectiva de gênero

Do ponto de vista de uma perspectiva de gênero, os conceitos de trabalho e emprego requerem uma distinção especial, pelo menos por três razões: em primeiro lugar, porque a interação de ambos os tipos de atividade condiciona a vida de homens e mulheres de maneira diferente; em segundo lugar, porque esta diferença ajuda a identificar a contribuição econômica global das pessoas e, particularmente, das mulheres; e, por último, porque para analisar a problemática do emprego feminino é indispensável estabelecer as relações entre os dois conceitos.

O conceito de trabalho na economia laboral geralmente está ligado às atividades remuneradas e consideradas produtivas no campo do mercado. Nesse sentido, as análises econômicas costumam se referir ao trabalho assalariado (setor público e privado), por conta própria, formal e informal e em vários setores da atividade econômica, mas sempre remunerado. Assim sendo, trata-se de emprego, ou seja, de trabalho que se permuta no mercado. Esta generalização conceitual foi historicamente influenciada pelo processo de industrialização, que contribuiu para a identificação entre trabalho e emprego (ou auto-emprego) e, mais que isso, entre trabalho e emprego assalariado. A teoria do valor trabalho originalmente exposta por Adam Smith e desenvolvida posteriormente por David Ricardo e Karl Marx levou à associação simbólica entre trabalho e trabalho assalariado (uma categoria mais recente do ponto de vista histórico). Este último é minoritário no que se refere ao tempo que ocupa com relação a outros trabalhos, especialmente para as mulheres, inclusive as latino-americanas.

A presença feminina costuma ser proporcionalmente maior nos postos de trabalho informais e precários, assim como no trabalho sem remuneração destinado à manutenção e reprodução da vida nos lares; ou seja, no trabalho estritamente doméstico e outras atividades vinculadas ao cuidado das pessoas. Essas atividades se encontram – embora não exclusivamente – ligadas às dinâmicas dos lares e à contribuição feminina ao bem-estar e ao funcionamento da economia global. A chamada «divisão sexual do trabalho», ou seja, a distribuição social de obrigações e responsabilidades das atividades do mercado e fora da órbita do mercado, entre indivíduos de um ou outro sexo, determina a participação das mulheres no trabalho remunerado, assim como em outras atividades (políticas, culturais, sociais ou de lazer). O tempo destinado aos vários tipos de trabalho marca uma diferença entre homens e mulheres, que se expressa nas características que assume o emprego para uns e para outros, tanto como no tempo livre (lazer, cuidados pessoais). Daí a importância de conceber o trabalho de forma mais abrangente, tanto para explicar a origem das diferenças da participação das mulheres no mercado laboral em relação aos homens no que tange as oportunidades, os negócios e os resultados, como no que se refere às possibilidades de superá-las.

Embora as atividades domésticas e de cuidados nos lares normalmente sejam valorizadas pelo seu componente afetivo1, e entendidas como parte da natureza feminina, existe uma tendência a ignorá-las do ponto de vista econômico. Os economistas clássicos (Adam Smith, Karl Marx) reconheceram a importância da atividade das mulheres no lar, destinada ao cuidado familiar, particularmente à criação e educação dos filhos, e consideraram-na indispensável para que eles se transformassem em trabalhadores produtivos e contribuíssem, dessa forma, à «riqueza das nações». No entanto, não lhe conferiram valor econômico. Na sua definição ampliada de trabalho produtivo, John Stuart Mill levava em conta o que estava relacionado a vários serviços, incluindo aqueles ligados ao cuidado da vida dos seres humanos. Apesar disso, no âmbito desta última categoria de serviços, Mill excluiu explicitamente o trabalho de cuidados na família. A partir de Alfred Marshall, foram incluídos todos os tipos de serviços entre os trabalhos considerados produtivos, mas o trabalho familiar doméstico ficou definitivamente fora do campo das atividades econômicas, uma vez que se associou o «remunerado» ao «produtivo», e o «não remunerado» ao «não produtivo».

Analisar a problemática das mulheres no mercado laboral e as desigualdades de gênero exige levar em consideração a divisão sexual do trabalho predominante. A contribuição humana ao funcionamento das economias se compõe de trabalho dentro e fora do mercado. O bem-estar da humanidade, o grande objetivo da economia, requer tanto do trabalho doméstico e de cuidados como do trabalho que gera renda na órbita do mercado. A autonomia econômica das mulheres é uma das bases para a igualdade de gênero e, em grande parte, depende de que os tempos de trabalho sejam divididos de forma equitativa entre todos e todas. Tendo em vista a tendência crescente da presença feminina no mercado laboral, além de um ato de justiça, garantir esta divisão pode ser uma contribuição para a eficiência das políticas econômicas e laborais.

Da teoria à realidade: as mulheres e o mercado laboral

Por que se empregam as mulheres? Esta pergunta poderia parecer irrelevante no contexto atual; no entanto, foi uma interrogação válida para a ciência econômica, na medida em que os papéis tradicionais de homens e mulheres dentro e fora dos lares eram considerados como um dado da natureza ou, em todo caso, como resultado das vantagens comparativas dos indivíduos, segundo o sexo, para o trabalho no mercado e fora da órbita do mercado. Por isso, a inclusão da especificidade das mulheres como sujeitos sociais nos estudos econômicos acontece, principalmente, para explicar seu comportamento laboral e sua relação com a dinâmica dos lares. Sempre se supôs (e ainda se supõe) que a receita recebida pelos lares tivesse uma correlação negativa com a oferta laboral das mulheres. Ou seja, o trabalho feminino remunerado vai acontecer somente para complementar uma renda doméstica insuficiente por parte do provedor (homem) ou para substituir a sua ausência. Contudo, vários estudos demonstram que a oferta laboral feminina na região continua aumentando, e que isto se observa em especial com as mulheres casadas2.

Uma série de mudanças de natureza econômica, cultural e social, que aconteceram em âmbito internacional particularmente em meados do século XX, cedeu lugar para uma maior participação laboral das mulheres, que também ampliaram sua presença no campo político e social.

Na América Latina, o aumento da participação laboral feminina de forma sustentada foi notável nas últimas décadas, com um ritmo superior ao da masculina. Por isso, a incorporação das mulheres no mercado laboral explica, em grande parte, o crescimento da força de trabalho. De acordo com os dados da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal)3, entre 1990 e 2008, a taxa de participação laboral4 (urbana) das mulheres em idade ativa5 passou de 42% para 52% (de 44% em Cuba até 62% no Peru), ao passo que a dos homens não registrou aumento e ficou em torno do máximo de 78% (67% em Cuba e 85% na Guatemala). Este indicador apresenta valores diferentes segundo as camadas de renda dos lares de origem das pessoas, sendo bastante inferior entre as mulheres mais pobres e com escolaridade menor, mesmo que entre elas as taxas de participação laboral tenham aumentado de maneira mais acentuada na última década.

Os fatores que contribuíram para estabelecer esta tendência na evolução da participação laboral feminina estão relacionados, em grande parte, com as melhoras registradas na educação feminina, com o número menor de filhos por mulher em idade reprodutiva, o crescimento dos divórcios e os lares chefiados por mulheres. O incremento no número de divórcios incorpora-se ao surgimento de expectativas por parte das mulheres, fomentando a sua entrada no mercado de trabalho para garantir uma renda própria.

O emprego e o desemprego

Qual é a resposta dos mercados laborais a esta atitude das mulheres em relação ao emprego? A proporção de mulheres ocupadas (42,3% da PEA feminina) é menor que a dos homens (68,9%)6, e isto se faz sentir sobre as diferenças no acesso à própria renda. A porcentagem de mulheres sem renda própria, embora tenha se observado uma tendência a diminuir, continua sendo maior que a masculina. Em 2008, quase 44% das mulheres que moravam na zona rural e 32% das que residiam nas cidades não tinham renda própria. No caso dos homens, essas porcentagens chegam a 14% e 10%, respectivamente. Entre os homens, a falta de renda se explica principalmente por causa do desemprego. E, embora as taxas de desemprego na maior parte da região continuem a ser mais altas no caso das mulheres7, a inatividade é a principal explicação desta situação. O fato de não dispor de receita própria incide sobre as possibilidades de autonomia econômica feminina e sobre a vulnerabilidade diante do fenômeno da pobreza. De acordo com dados de 2010 da Cepal, a distância de gênero entre aqueles que não dispõem de renda própria atinge o valor mais alto entre os 25 e 59 anos, período que coincide com a idade reprodutiva feminina.

Embora a PEA feminina tenha aumentado, não contribuiu para reduzir a segregação horizontal de gênero entre os mercados laborais8; a presença feminina predomina no setor de serviços (64% em 2008) e tem uma representação próxima à metade entre os empregados no setor do comércio. Por sua vez, a concentração de mulheres no serviço doméstico remunerado em casas particulares e em atividades vinculadas à educação e outros cuidados é notória no conjunto dos países da região. Os homens se situam de maneira menos concentrada nos diferentes setores e ramos de atividade, e de forma mais destacada na construção civil, na mineração, no transporte, na agricultura e na pesca, bem como nos setores de eletricidade, gás e água. A distribuição de indivíduos em outros setores, como a indústria e os serviços financeiros e imobiliários, é mais equitativa entre os sexos. Isto é, a divisão sexual do trabalho se expressa tanto no âmbito dos lares como no mercado laboral, devido ao tipo de ocupações em que as mulheres prevalecem. Por outro lado, a existência da segregação vertical em virtude do chamado «teto de cristal»9 representa um obstáculo para escalar posições nas hierarquias.

No caso das mulheres, a educação continua sendo um claro fator de estímulo à participação laboral, mas os avanços nesta área não conseguiram eliminar os obstáculos para igualar as condições com relação aos homens. Embora tenham diminuído, as diferenças nas remunerações, por exemplo, tanto em função de uma inserção laboral e hierárquica diferente, como em função da quantidade de horas trabalhadas, ainda são muito importantes: em 2008, a renda do trabalho das mulheres em todas as categorias de ocupação equivalia a 69% da mesma renda referente aos homens. Entre os assalariados, as diferenças são menores, e as mulheres recebem em média 85% do que recebem os homens10.

Um avanço importante no sentido de identificar a origem das diferenças de inserção laboral feminina e masculina foi a ênfase no estudo da distribuição do uso do tempo. Esse estudo revela que a carga de trabalho doméstico que recai sobre as mulheres pode se converter em um obstáculo de caráter sistêmico para seu acesso ao emprego de qualidade. A medição do tempo dedicado às várias atividades da vida cotidiana efetuada pelos movimentos de mulheres e agências da Organização das Nações Unidas (ONU) permitiu começar a visualizar a importância do trabalho não remunerado levado a cabo fora do mercado e sua contribuição ao consumo e bem-estar dos lares e da sociedade, e avaliar as necessidades de cuidado de várias populações em determinados momentos de seu ciclo vital e familiar. O instrumento escolhido para conhecer esta situação foram as pesquisas de uso do tempo. Desde o ano 2000 foram realizadas pesquisas deste tipo em 14 países latino-americanos, usando metodologias diferentes e abrangendo várias áreas geográficas: Argentina, em 2005; Bolívia, em 2001; Brasil, em 2001 e 2005; Chile, em 2007; Colômbia, em 2006 e 2008; Costa Rica, em 2004; Cuba, em 2001; Equador, em 2007; El Salvador, em 2005; Guatemala, em 2000; México, em 2002; Panamá, em 2005; Uruguai, em 2003 e 2007; e Venezuela, em 200811.

As diferenças entre períodos e metodologias na elaboração dessas pesquisas trazem dificuldades para uma comparação rigorosa dos resultados, mas mostram coincidências nos padrões de comportamento observados com relação ao uso do tempo de mulheres e homens. Assim, o tempo total de trabalho, ou seja, a jornada de trabalho remunerado e doméstico das mulheres, sempre será maior que a masculina. Por sua vez, a jornada daqueles que trabalham de forma remunerada é sempre maior para os homens.

O que há de novo?

Nos últimos dez anos, foram verificadas mudanças políticas significativas nos países da América Latina sob governos definidos como esquerdistas ou progressistas. Surgem assim propostas alternativas de desenvolvimento diante dos fracassos históricos na região e inclusive – pelo menos no discurso – novos conceitos sobre bem-estar e desenvolvimento, como por exemplo, o Bem Viver no Equador12 ou o Viver Bem na Bolívia. Trata-se de governos que reivindicam a dívida histórica com grupos excluídos e vulneráveis, enfatizando a necessidade de combater as desigualdades. No caso da Bolívia, entre os valores nos quais o Estado se sustenta, a Constituição aponta a igualdade, a inclusão, a igualdade de oportunidades e a equidade social e de gênero. Uruguai e Brasil desenvolveram políticas sociais orientadas à superação da pobreza e a desigualdade com relativo sucesso. Já no Paraguai o princípio de igualdade defendido na Constituição Nacional e na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher foi incorporado no documento «Paraguay para todos y todas: propuesta de política pública para el desarrollo social, 2010-2020».

No âmbito das mudanças e das novas definições de vários governos, do ponto de vista do desenvolvimento e da igualdade, quais são os temas que interessam em função da sua relação com as desigualdades de gênero? O trabalho destinado ao abastecimento da vida e à reprodução social é levado em conta? De quem é a responsabilidade? Como se respeita o direito de escolha das pessoas e, ao mesmo tempo, como são garantidas as condições de reprodução social?

Alguns dos elementos relacionados a essas perguntas ou as possíveis respostas têm a ver com o tempo e seu uso nas atividades do lar e fora do lar, como por exemplo o tempo dedicado à família, a si próprio, ao provimento da vida e à acumulação.

Alguns aspectos importantes foram objeto de reconhecimento, sobretudo na década de 2000, e se concretizaram em modificações na institucionalização de alguns países da América Latina. Sem dúvida, esse reconhecimento obedece à incidência dos grupos de mulheres, assim como à sensibilidade dos governos que buscam mais inclusão social e modelos de desenvolvimento alternativos.

Entre os aspectos que foram objeto de reconhecimento, pode-se mencionar os da Constituição da República Bolivariana da Venezuela (1999), que reconhece o trabalho do lar como atividade econômica que cria valor agregado e produz riqueza e bem-estar social, e o direito de toda pessoa à seguridade social – na qual se inclui especificamente as donas de casa – «como serviço público de caráter não lucrativo, que garanta a saúde e assegure a proteção em caso de maternidade». Além de reconhecer o trabalho não remunerado das mulheres, faz referência à necessidade de quantificá-lo nas contas nacionais. Em 2008, a nova Constituição do Equador afirmou, por um lado, a necessidade de garantir o emprego feminino em igualdade de direitos, oportunidades e resultados, assim como o respeito às condições de emprego e o acesso à seguridade social (art. 36). Da mesma forma, o texto constitucional reconhece o trabalho doméstico não remunerado como «trabalho produtivo» e o leva em consideração para ser compensado em situações especiais. Apesar disso, o Código do Trabalho de 1997 não foi modificado.

Para além dessas constatações, são poucas as respostas que efetivamente aparecem em termos de políticas e medidas. A Constituição da Bolívia, por exemplo, reconhece o valor econômico do trabalho do lar como fonte de riqueza que deverá ser quantificada nas contas públicas13. Na República Dominicana, a nova Constituição Política do Estado (2010) aponta, ao lado do princípio de igualdade, o direito das mulheres a uma vida livre de violência, o reconhecimento do valor produtivo do trabalho doméstico e a igualdade salarial pelo trabalho idêntico, observando-se a linguagem de gênero em todo o texto constitucional.

Na Colômbia, a lei 1413 de 11 de novembro de 2010 regulamenta a inclusão da economia do cuidado – «trabalho não remunerado que se realiza no lar ligado à manutenção da moradia, aos cuidados para com as outras pessoas do lar ou à comunidade e à manutenção da força de trabalho remunerado» – «no sistema de contas nacionais, com o objetivo de medir a contribuição da mulher para o desenvolvimento econômico e social do país e como ferramenta fundamental para a definição e implantação de políticas públicas»14.

Para além dessas constatações, poucas são as respostas que efetivamente aparecem em termos de políticas e medidas concretas. Por exemplo, a oferta de cuidados infantis ou de pessoas dependentes é escassa, e a que existe está, em grande medida, nos serviços oferecidos pelo mercado, reforçando ou reproduzindo desigualdades na medida em que ter acesso a eles depende da disponibilidade da renda das pessoas. No caso das licenças de paternidade, embora tenham sido implantadas em 13 países no caso de um filho recém-nascido ou adotado, os períodos de licença variam, predominando os mais breves (a partir de dois dias na Argentina e no Paraguai, até 15 dias na Costa Rica) e nem sempre para o conjunto de trabalhadores, inclusive assalariados (a Lei de Serviço Civil, no Equador, apóia as responsabilidades familiares com uma licença de oito dias para empregados públicos por «calamidade doméstica», entendendo como tal, entre outras coisas, uma doença grave do cônjuge, do convivente ou de qualquer parente até o segundo grau de consanguinidade)15.

O trabalho doméstico remunerado

Um dos casos paradigmáticos em termos de desigualdade de gênero é o representado pelo trabalho doméstico em casas particulares, uma atividade basicamente feminina tanto pela proporção de mulheres que a ele se dedicam como pelas características do trabalho em si: tarefas domésticas, cuidado de crianças e idosos doentes. Por que paradigmático? Porque um dos aspectos mais discriminatórios dos mercados laborais recaiu sobre as trabalhadoras do serviço doméstico remunerado, atividade que concentra a maior proporção de empregadas em uma determinada ocupação na região. Em geral, elas gozam de uma regulamentação parcial e diferente, e que, em todo caso, é em grande parte discriminatória, frequentemente amparada em cláusulas ou situações de exceção dentro da legislação trabalhista. Essas características são reforçadas em virtude das dificuldades apresentadas pela fiscalização da aplicação efetiva da legislação.

Recentemente, países como Costa Rica e Equador introduziram reformas na regulamentação da jornada de trabalho ou no acesso à previdência social das empregadas no serviço doméstico. Em março de 2010, na Argentina, o Poder Executivo nacional enviou ao Parlamento um projeto de lei para a criação de um «Regime especial de contrato de trabalho para o pessoal auxiliar de casas particulares», com o regime geral estabelecido na Lei de Contrato de Trabalho. O projeto de lei promove a ampliação de direitos relativos ao salário, às horas extras, à duração da jornada de trabalho, descanso semanal, licença-maternidade e aviso prévio, indenização, subsídio por maternidade e outras obrigações familiares.

Vale a pena registrar em especial o caso do Uruguai, em função da mudança radical que a regulamentação teve sobre o serviço doméstico, assim como o fato de que ele foi incluído na negociação coletiva. Em 2006 foi aprovada a Lei 18.065, de Trabalho Doméstico, definido como «o que presta, em relação de dependência, uma pessoa a outra ou outras, ou a uma ou mais famílias, com a finalidade de levar-lhes seus cuidados e seu trabalho no lar, nas tarefas a ele vinculadas, sem que elas possam representar um lucro econômico direto para o empregador». Pela primeira vez, os direitos trabalhistas adquiridos pelos trabalhadores são reconhecidos, como a jornada de oito horas de trabalho diária, o descanso de meia hora para as que não pernoitam na casa do empregador, e de duas horas no caso daquelas que pernoitam. A lei também estabelece um descanso semanal de 36 horas ininterruptas e o repouso noturno para aquelas que moram na casa do empregador. A legislação regulamenta a indenização por demissão, o direito ao auxílio-desemprego e a cobertura da saúde. No artigo 6, estabelece o sistema de fixação de salário do serviço doméstico de forma tripartite.

Esta nova legislação se baseia nas políticas trabalhistas do governo que assumiu em 2005, que retomam aspectos da institucionalização laboral abandonados na década de 1990. Entre as primeiras medidas está a reintrodução da negociação coletiva16, a partir das convocatórias aos Conselhos de Salários (que haviam sido suspensas entre 1968 e 1984, retomadas em 1985 com a volta à democracia e novamente suspensas em 1992). Dessa forma, na Terceira Rodada de Conselhos de Salários, em 2008, foi acrescentado o Grupo 21, referente às trabalhadoras do lar ou serviço doméstico, e indicou-se a Liga das Donas de Casa como representante do setor empregador.

Outra iniciativa importante levada a cabo com a participação da Comissão Tripartite para a Igualdade de Oportunidades e Tratamento no Emprego foi a aprovação da lei 18.561 – Lei de Assédio Sexual – que estabelece normas para a sua prevenção e pena no campo do trabalho e nas relações professor-aluno (setembro de 2009). No artigo 2º, o conceito de assédio sexual é definido da seguinte maneira:

Entende-se por assédio sexual todo comportamento de natureza sexual, realizado por pessoas do mesmo sexo ou de um diferente, não desejado pela pessoa a quem se dirige e cujo repúdio produza ou ameace causar prejuízos na sua situação laboral ou em sua relação docente, ou que crie um ambiente de trabalho intimidador, hostil ou humilhante para quem o recebe.

Diálogo social e negociação coletiva

A negociação coletiva foi estabelecida como uma ferramenta estratégica para se obter a igualdade de oportunidades, de tratamento e de resultado no emprego, e poderia ser um mecanismo para conciliar a vida familiar e o emprego tanto para os homens como para as mulheres. Apesar disso, são poucos os avanços na negociação coletiva da região em termos de ação positiva para o emprego feminino; sob a perspectiva das trabalhadoras e dos trabalhadores em seus papéis no mercado e na família, os progressos são ainda menores. A incorporação das reivindicações de gênero nas cláusulas da negociação coletiva ainda é incipiente. Entre outros fatores, isto se deve ao enfraquecimento da negociação coletiva na região na década de 1990, aos problemas em torno da aplicação da legislação trabalhista, à menor representação das mulheres nos processos de negociação, em virtude de elas estarem sobre-representadas nos segmentos mais precários e desregulamentados e à escassa presença feminina nas direções sindicais e instâncias de negociação17.

Uma experiência de grande interesse é a iniciativa levada adiante no Uruguai para fomentar a incorporação de cláusulas de gênero nos convênios coletivos do setor privado. A importância dessas cláusulas, mesmo nos casos em que a legislação vigente é simplesmente confirmada, consiste em generalizar o conhecimento sobre a sua existência entre os assalariados e assalariadas do setor privado, amparados nas convenções, na possibilidade de promover a discussão entre as partes, e assumir concretamente os compromissos com a equidade de gênero por parte dos atores sociais envolvidos. Na Terceira Rodada de Negociação dos Conselhos de Salários, em 2008, a proposta da Comissão Tripartite para a Igualdade de Oportunidades e Tratamento no Emprego incentivou a Cláusula para a Igualdade de Gênero, amparada na normativa em vigor – a lei 16.045 – que proíbe toda discriminação que viole o princípio de igualdade de tratamento e de oportunidades para ambos os sexos, em qualquer setor ou ramo de atividade laboral, a lei 17.514 sobre violência doméstica, a lei 17.817 sobre xenofobia, racismo e toda forma de discriminação: as Convenções Internacionais de Trabalho (CIT) ratificados na lei 16.063 sobre igualdade (Nº 100, 111 e 156); o CTI Nº 103. Para sua implantação, foram propostas algumas condições básicas que atendam às particularidades de cada ramo de atividade: princípio de remuneração igual para trabalho de valor igual; igualdade de oportunidades de acesso entre mulheres e homens para os postos de trabalho melhores e mais qualificados, assim como de acesso à capacitação; eliminação de elementos discriminatórios nos processos de seleção e promoção; garantia e proteção jurídica à maternidade e a outros mecanismos que promovam um maior equilíbrio entre o exercício da maternidade e a paternidade; prevenção e sanção de assédio moral e sexual18.

Algumas cláusulas mais específicas visam a facilitar a capacitação dos trabalhadores com encargos familiares (dentro do horário de trabalho, em cujo caso terão preferência para escolher por este horário, em primeiro lugar, aqueles trabalhadores e trabalhadoras com encargos familiares devidamente justificados: menores sob sua responsabilidade, inválidos, etc.). Na maioria dos casos, os avanços no setor privado buscam equiparar os benefícios que existem no setor público, a saber, a ampliação da licença-maternidade para 13 semanas, a redução da jornada pela metade nos casos em que a mulher está amamentando, entre outras medidas.

Resumindo, enquanto um conjunto de cláusulas sobre a legislação nacional avança, outras pretendem fortalecê-la. As cláusulas para a melhor conciliação entre a vida laboral e familiar vão além da ratificação de leis preexistentes, com medidas como as licenças por paternidade, as compensações parentais, a capacitação de trabalhadores com encargo familiar, entre outras.No setor público, pode-se observar que vários organismos começaram a participar do Programa Modelo de Qualidade com Equidade, promovido pelo Instituto Nacional das Mulheres do Uruguai. Este programa levou a cabo várias medidas, como o efetivo acesso às creches, a criação de salas para a amamentação, a melhora das bases de informação sobre os encargos familiares dos trabalhadores e trabalhadoras, campanhas de capacitação e sensibilização.

O que ainda falta

Ao levar em conta o trabalho de maneira global – remunerado e não remunerado – e ao reconhecer a importância de ambos para o bem-estar da sociedade e o funcionamento da economia como um todo, o novo contexto político na região promoveu avanços. Sem dúvida, isto contribui para dar mais visibilidade à contribuição econômica das mulheres. Essas medidas podem ser consideradas um avanço nas estratégias de equidade de gênero, que não podem ser construídas à margem do reconhecimento das várias formas de trabalho e das limitações provocadas por se atribuir a reprodução social quase exclusivamente às mulheres.

Apesar de se ter conferido reconhecimento às várias formas de trabalho, tal como já apontado, ainda existe um déficit de medidas concretas que, além de dar visibilidade à importância do trabalho não remunerado nos lares – o que sem dúvida é relevante –, prevejam mecanismos para que a vida familiar e o emprego no mercado de trabalho regular possam ser parte das escolhas de homens e mulheres. O estímulo ao emprego feminino – o emprego é a principal fonte de renda das pessoas e dos lares na região e uma base importante da autonomia econômica feminina – requer políticas orientadas aos indivíduos de ambos os sexos, que contribuam para um modelo de organização social que contemple os desafios enfrentados pela igualdade de gênero, e ao mesmo tempo busquem uma maior responsabilidade social em relação ao trabalho e cuidados domésticos. As políticas para socializar o custo da reprodução requerem a colaboração do Estado e de todos os atores sociais, em um enfoque integrado de políticas públicas. Este tipo de propostas supõe processos de discussão e consensos entre os atores e um diálogo social.

O papel dos Estados tem uma importância crucial no que diz respeito às decisões de investimento social (educação, saúde e a oferta, por parte do Estado, de cuidados de caráter universal para as crianças). Além de contribuir para a criação de empregos, em boa parte, femininos, este tipo de investimento pode reduzir o déficit e a desigualdade na prestação e recepção dos cuidados e da educação. A oferta de cuidados para crianças e dependentes (idosos e pessoas com deficiências crônicas) pode assumir várias formas e ser ampliada por meio de subsídios estatais aos serviços particulares. Em resumo, a vontade política com o compromisso da equidade de gênero deve se expressar em normas e regulamentações, concretizar-se e viabilizar-ser na destinação ou na redistribuição dos recursos econômicos.

  • 1. O trabalho de reprodução social e, em particular, o trabalho de cuidado das pessoas, cujo objetivo prioritário é o bem-estar em termos de qualidade de vida, mas que utiliza bens, mercadorias, serviços públicos e de mercado, e participa das redes de solidariedade social, consiste em «um processo material e simbólico que se apóia na confiança, nos sentimentos de afeto e amizade, e no sentido de responsabilidade com relação aos resultados». Antonella Picchio: «Um enfoque macroeconômico ‘ampliado’ das condições de vida», em Cristina Carrasco (ed.): Tiempos, trabajos y gênero, Ediciones ub, Barcelona, 2001.
  • 2. Alma Espino, Martín Leites e Alina Machado: «El aumento em la oferta laboral de las mujeres casadas en Uruguay» em Desarrollo y Sociedad No 64, 9/2009.
  • 3. Cepal: «Qué Estado para qué igualdad», xi Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e o Caribe, Brasília, 13 a 16 de julho de 2010, Cepal, Santiago do Chile, 2010, disponível em www.eclac.org/publicaciones/xml/6/40116/Que_Estado_para_que_igualdad.pdf.
  • 4. População economicamente ativa (pea): pessoas em idade de trabalhar que estão à procura de emprego ou trabalham de forma remunerada; taxa de atividade ou de participação laboral: proporção da pea com relação à população em idade de trabalhar (pit).
  • 5. Média simples entre 14 países: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Estado Plurinacional da Bolívia, Honduras, México, Panamá, Paraguai, Uruguai, Peru e República Dominicana.
  • 6. Cepal e Organização Internacional do Trabalho (oit): Boletín Cepal oit: Desempleo en América Latina y el Caribe baja por efectos de recuperación económica, Santiago do Chile, 2010.
  • 7. As taxas mais baixas, tanto para homens como para mulheres, são registradas na Guatemala (respectivamente 2,4% e 3,1%), e as mais altas, na Argentina (16% e 11%); em seguida estão a Costa Rica (13,4% e 8,2%), Brasil (10,5% e 5,9%) e Uruguai (10,4% e 5,7%). Cepal: «Qué Estado para qué igualdad», cit.
  • 8. A segregação horizontal refere-se à concentração de mulheres (ou homens) nos diferentes setores ou ocupações, enquanto a distribuição por níveis hierárquicos dentro de uma ocupação se conhece como segregação vertical.
  • 9. Entende-se por esta expressão a existência de uma superfície superior invisível na carreira das mulheres, difícil de superar. Seu caráter de invisibilidade se dá pelo fato de não existirem leis nem mecanismos sociais estabelecidos, nem códigos visíveis que imponham esta limitação às mulheres, mas porque ela se constrói sobre outras bases que, por sua invisibilidade, são difíceis de detectar: normas não escritas ou cultura empresarial.
  • 10. Cepal: Objetivos de Desarrollo del Milenio 2010, Cepal, Santiago do Chile, 2010.
  • 11. oit e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (pnud): “Trabajo y familia: Hacia nuevas formas de conciliación con corresponsabilidad social”, oit / pnud, Santiago do Chile, 2009.
  • 12. Com relação a isso, v. Secretaría Nacional de Planificación y Desarrollo: «Plan Nacional para el Buen Vivir 2009-2013», http://plan.senplades.gov.ec/inicio.
  • 13. Constituição da Bolívia, artigo 338, disponível em www.presidencia.gob.bo/download/constitucion.pdf.
  • 14. Disponível em www.uimunicipalistas.org/redes/redgenero/?p=765.
  • 15. Cepal: «Examen y evaluación de la Declaración y la Plataforma de Acción de Beijing y el documento final del vigésimo tercer período extraordinario de sesiones de la Asamblea General (2000) en países de América Latina y el Caribe», Cepal, Santiago do Chile, 2009.
  • 16. A origem da negociação coletiva no Uruguai encontra-se na aprovação da lei 10.449, de 1943, a partir da qual são criados os Conselhos de Salários, órgãos tripartites com o compromisso de fixar o valor salarial mínimo por categoria para os empregados ou trabalhadores do setor privado. Esses conselhos funcionam como órgãos de conciliação e mediação de conflitos coletivos. O Poder Executivo, representado pelo Ministério do Trabalho e Seguridade Social (mtss), convoca a formação dos Conselhos dos Salários, uma vez que tenham sido classificadas as várias atividades em grupos. O setor dos trabalhadores está representado por uma única central, a pit-cnt (Plenário Intersindical dos Trabalhadores [pit] e Convenção Nacional de Trabalhadores [cnt]. As organizações representativas do setor empresarial são a Câmara de Indústrias do Uruguai (ciu) e a Câmara Nacional de Comércio e Serviços (cncs).
  • 17. oit e pnud: «Trabajo y familia: hacia nuevas formas de conciliación con corresponsabilidad social», cit.
  • 18. Alma Espino e Gabriela Pedetti: «Diálogo Social y la igualdad de género en Uruguay», documento de trabalho No 15, Departamento de Relações de Trabalho e Emprego, oit, Genebra, dezembro de 2010.
Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Junho 2012, ISSN: 0251-3552


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