Tema central
NUSO Nº Junho 2017

A renda cidadã em debate Repensar o bem-estar no século XXI

Nos últimos anos, paralelamente às críticas aos programas direcionados e condicionados, especialmente em algumas partes da Europa, começaram a ser discutidas a conveniência e a viabilidade de uma «renda cidadã» que possa satisfazer as necessidades básicas da população. Trata-se de uma discussão que coloca em seu cerne a questão da cidadania, mas também a necessidade de sistemas tributários progressivos como base para um bom funcionamento da renda universal. Na América Latina, no entanto, o debate está longe de avançar.

A renda cidadã em debate  Repensar o bem-estar no século XXI

O que se entende por «renda cidadã»?

Na bibliografia e na experiência internacional, é possível identificar diversas expressões comparáveis1. A mais difundida delas é a «renda básica» (basic income), mas também são utilizadas as expressões «subsídio universal» (universal grant, allocation universelle), «dividendo social» (social dividend, Sozialdividende), «salário cidadão» (citizen’s wage, Bürgergehalt) e «renda social» (social income, revenu social), entre outras.

Todas essas noções se referem a um arranjo institucional cujo objetivo é garantir às pessoas certa forma de renda incondicional, isto é, uma renda acessível sem a exigência da contrapartida de trabalhar em um emprego mercantil (como é o caso de um salário), ser declarado incapaz (pensão por invalidez), ter contribuído com um plano de seguridade (aposentadoria, pensão comum ou seguro de saúde), demonstrar estar desocupado (seguro-desemprego) ou ser pobre (programas assistenciais). Em poucas palavras, a renda cidadã é uma receita suficiente para garantir níveis básicos de consumo, paga pelo Estado a cada membro de pleno direito ou residente da sociedade, inclusive se o beneficiário não quiser trabalhar de forma remunerada e sem levar em consideração as demais fontes de renda possíveis ou seu patrimônio.

As justificativas para essa política variam, mas todas giram em torno da instabilidade e precariedade do emprego remunerado, além da distribuição desigual da renda e da riqueza. Diante dessa situação, sustenta-se a necessidade de construir uma rede de segurança da renda das pessoas que seja preventiva para garantir que ninguém caia de determinado nível; tal nível não deveria ser um teto, mas um piso a partir do qual as pessoas possam acumular mais receitas. A universalidade da proposta exige que não haja discriminação entre características pessoais ou familiares, e que o benefício seja incorporado como crédito fiscal no imposto de renda pessoal, garantindo um impacto progressivo. Essa última característica implica a combinação de, ao menos, duas regras que asseguram que aqueles com renda elevada «devolvam» parte ou todo o benefício recebido: a) que o benefício pago seja incluído no cálculo do imposto de renda da pessoa física em uma escala progressiva em relação à receita obtida; e b) que as deduções permitidas na declaração desse tributo sejam unificadas, levando em consideração o crédito fiscal que a renda cidadã representa2.

Dessa forma, a proposta da renda cidadã é apresentada como uma alternativa diferente das políticas de transferência de renda às pessoas e famílias em vigor. Os atuais programas de pagamento de renda não são universais; estão condicionados ao cumprimento de determinados requisitos devidamente certificados pela autoridade competente e não estão integrados ao sistema tributário.

Os requisitos de universalidade, incondicionalidade e integração fiscal progressiva da renda cidadã a tornam um potente instrumento para aumentar a autonomia econômica das pessoas e, portanto, a autonomia para exercerem suas liberdades políticas3. Em outras palavras, o mecanismo permitiria gerar condições para alcançar o ideal republicano de «liberdade como não dominação» ao reduzir a interferência do poder político e econômico sobre as opções de vida das pessoas4. Os defensores dessa proposta estão organizados há bastante tempo para promover sua difusão5. Ultimamente, também se observa um crescimento do debate político e público em diferentes países onde a proposta atrai o interesse de cidadãos descontentes com os resultados da política econômica e social.

A renda cidadã no atual cenário político europeu

No caso da Europa, destacam-se as novidades na Suíça. Em 2013, foi aprovada no país uma iniciativa popular assinada por 125.000 pessoas sem filiação política definida, a partir da qual se convocou um referendo sobre uma proposta que pretende garantir uma renda incondicional a quem tenha cidadania no país. O valor da renda não foi fixado, mas seus promotores sugerem como referência 2.500 francos suíços (cerca de 2.260 euros).

Segundo a Constituição da Suíça, todas as iniciativas dos cidadãos que obtiverem mais de 100.000 assinaturas possuem direito a um referendo, realizado somente após uma série de debates oficiais, que devem ocorrer em ambas as câmaras legislativas. Se o Poder Legislativo aceitar os termos da iniciativa, não há a necessidade de convocar o referendo. Mas não foi esse o caso porque, em 23 de setembro de 2015, a Câmara Baixa da Assembleia Legislativa votou com ampla maioria pela rejeição à iniciativa popular. Portanto, e contra a opinião da classe política profissional, o referendo foi convocado para 5 de junho de 2016, colocando o tema nas manchetes dos meios de comunicação locais e internacionais.

No referendo, que contou com 42% de participação, quase 77% dos eleitores recusaram a proposta. Isso é interpretado como uma vitória pela maioria da classe política, que vê a ideia como perigosa para o atual ordenamento fiscal do país e a centralidade do emprego na ordem econômica e fiscal. Já os propositores da medida entendem que, por ser a primeira vez que se convoca a votar sobre uma iniciativa que implica uma mudança total de paradigma, os resultados são animadores. Para os defensores da renda cidadã, atingiu-se o objetivo de promover o debate sobre os problemas do emprego e da incapacidade do sistema atual para fazer frente aos novos cenários de precariedade do trabalho e insuficiência de renda6, bem como as transformações dos mercados de trabalho que colocam em questão as possibilidades do pleno emprego. «No século xxi, não podemos ficar presos a um sistema de proteção social baseado no estado do capitalismo de 1945», resumiu a deputada e ex-ministra socialista Delphine Batho para o caso da França7.

Outra experiência que tem feito crescer o debate é a da Finlândia. Lá, o governo que assumiu após as eleições gerais de abril de 2015 formando uma coalizão de centro-direita (com o Partido Verde e o Partido da Coalizão Nacional) incorporou em seu programa o compromisso de realizar um amplo experimento de renda cidadã8. Conforme aponta um estudo recente, cerca de 70% dos pesquisados na Finlândia são favoráveis à ideia de uma renda básica universal, e a maioria pensa que ela deve ser fixada em valores próximos a 1.000 euros por mês. Aparentemente, o maior apoio vem dos eleitores do Partido Verde e da aliança de esquerda, enquanto os democratas-cristãos e os produtores rurais são os que menos defendem a proposta.

O experimento será levado adiante pela Kela, a agência governamental a cargo dos benefícios sociais da Finlândia, juntamente com diversas universidades e centros de pesquisa. O objetivo dos estudos é fazer frente à deterioração do sistema de seguridade social, causado em grande medida pelas mudanças no mercado de trabalho e pelo avanço do emprego precário. Nesse contexto, a renda básica é vista como uma política que permitiria promover incentivos para o emprego, evitar as armadilhas da pobreza e reduzir os custos burocráticos dos atuais programas assistenciais.O que se deve entender por «armadilha da pobreza» (poverty trap)? Explicado de maneira simples, se o recebimento do benefício estiver condicionado à verificação de insuficiência de renda proveniente de outras fontes, haverá então uma faixa dentro da qual as pessoas analisarão racionalmente a conveniência ou não de realizar trabalho remunerado. Isso é lógico porque, se sua receita aumentar, a consequência imediata para o beneficiário será a redução do subsídio, que pode até mesmo ser cessado totalmente. Denomina-se «armadilha da pobreza» a faixa de renda dentro da qual não convém aos beneficiários desses subsídios destinados à pobreza aumentar suas receitas de outras fontes. Outro resultado provável é o incentivo ao emprego informal, por meio do qual eles poderiam ampliar sua renda mantendo o benefício assistencial9.

O trabalho está programado para começar em 2017 e contempla a avaliação de diferentes opções, desde uma renda básica plena (full basic income) até uma parcial que substitua somente os diversos benefícios básicos atualmente existentes, mas que deixe intacto o sistema de seguridade social vigente. Também será debatida a viabilidade de um «imposto de renda negativo» (negative income tax) ou uma «renda de participação» (participation income).

O chamado «imposto de renda negativo» divide com a renda cidadã a pretensão de integrar o sistema tributário e o sistema de transferências fiscais, de modo a estabelecer a situação líquida de renda de cada indivíduo10. A principal diferença é que, no imposto de renda negativo, o que se busca é pagar a diferença entre a receita real das pessoas e o nível mínimo fixado, e somente no encerramento do exercício fiscal. Assim, o mecanismo não garante um piso preventivo a partir do qual seja possível acumular outras receitas; nesse sistema, atua-se ex post fixando um teto que as pessoas alcançam, mas não podem superar. Já a chamada «renda de participação» cumpre os requisitos de universalidade da renda cidadã, mas exige em troca que seus beneficiários se comprometam a desempenhar alguma atividade considerada socialmente útil, não necessariamente um emprego remunerado no mercado, mas que pode estar vinculado a trabalhos de cuidado, comunitários, educativos, etc.11

Essas experiências estão sendo transferidas a outros lugares, como é o caso dos Países Baixos, onde Norbert Klein, do Partido Liberal, anunciou em fevereiro de 2016 uma proposta apresentada na Câmara Baixa que tem como objetivo reproduzir a experiência finlandesa. Tal proposta se apresenta como um resultado lógico de iniciativas regionais e locais que já estão sendo testadas nesse campo, como ocorre nos municípios de Utrecht, Tilburgo, Groninga e Wageningen, que se comprometeram a enviar às autoridades legislativas do país um plano conjunto para o pagamento de uma renda básica.

A Espanha é outro país onde a proposta da renda cidadã – lá chamada de «renda básica» (renta básica) – ocupou um amplo espaço nos debates programáticos dos partidos durante a última campanha eleitoral. Uma renda básica plena foi defendida pelo movimento 15-m e proposta originalmente pela agremiação Podemos. No entanto, o Podemos substituiu essa proposta por um «plano de garantia de renda» (plan de garantía de rentas, pgr) semelhante aos programas direcionados de renda mínima que já funcionam havia muito tempo no país, especialmente na Comunidade Autônoma do País Basco. A Esquerda Unida, por sua vez, rejeita a renda básica e propõe o trabalho garantido pelo Estado (tg). Jordi Arcarons, Daniel Raventós e Lluís Torrens apresentam um panorama desse debate e das fragilidades das propostas alternativas à renda básica, caracterizadas pela excessiva complexidade – o que gera situações de desigualdade e discriminação no tratamento das pessoas –, pela falta de cobertura para o conjunto de situações de pobreza, por serem intrusivas, por estigmatizarem os beneficiários e por serem ineficazes para a prevenção da pobreza infantil, entre outras características12.

O pgr proposto pelo Podemos lembra os escassos resultados de programas semelhantes na Comunidade Autônoma do País Basco. No caso basco, há 25 anos são pagos benefícios de renda mínima, juntamente com um aporte complementar de moradia e auxílios de emergência social. Apesar disso, são observados resultados satisfatórios somente em relação à pobreza mais grave. Outros indicadores de pobreza mostram resultados frustrantes e elevados custos de gestão, cortes e requisitos mais estritos em anos de problemas fiscais, além de um baixo impacto na empregabilidade dos beneficiários. A proposta do Podemos não esclarece como seriam solucionados esses problemas, além de não ser precisa a respeito das fontes de financiamento.

Quanto ao programa de tg da Esquerda Unida, Arcarons, Raventós e Torrens supõem – sem comprovar – que será criada uma quantidade de vagas de emprego muito inferior às necessidades de trabalho de um país onde a taxa de desemprego oscila há anos acima de 15%. Além disso, o valor proposto para o benefício acabaria atraindo grande parte dos atuais empregados de baixa renda. Esses tipos de programa em que o Estado atua como empregador de última instância vêm sendo promovidos em distintos âmbitos, mas, como explicamos em outro trabalho, sua aplicação é muito difícil em países sem moeda soberana e com elevados índices de desemprego, emprego precário e informalidade13.

Em contraste com esses avanços, a Irlanda é um destacado exemplo de país onde o debate sobre a renda cidadã havia conquistado reconhecimento anos atrás, mas foi interrompido logo depois. Em 2002, com o apoio dos trabalhos empreendidos pelo Partnership 2000 Working Group on Basic Income, o governo irlandês publicou um «Green Paper» no qual conclui que um programa integrado de renda básica e impostos é possível e teria importantes efeitos distributivos14. Contudo, esse trabalho e suas conclusões foram em grande parte ignorados na formulação de políticas; quando integrou a coalizão de governo em 2007, o Partido Verde não promoveu a medida. O maior impacto do «Green Paper» parece ter sido atuar como disparador para que outras análises desafiem suas conclusões.

A proposta de renda cidadã é hoje defendida por muitos movimentos políticos e sociais em diversos países europeus, particularmente no contexto da crise econômica e social vivida na região. Na Alemanha, Itália e Grécia, observa-se um crescente interesse no tema e, mais recentemente, o movimento Nuit Debout da França incorporou a proposta de uma «renda básica universal» (revenu universel de base) em suas plataformas de debate.

Algumas políticas vigentes que avançam na direção da renda cidadã

Nos Estados Unidos, durante as décadas de 1960 e 1970, houve um intenso debate sobre a ideia de um imposto de renda negativo, mas a proposta defendida por importantes acadêmicos e políticos foi bloqueada com a ampliação do programa de crédito fiscal por renda de trabalho (Earned Income Tax Credit, eitc) e outros programas complementares, como o de assistência temporária para famílias carentes (Temporary Assistance for Needy Families, tanf)15. Essas políticas de combate à pobreza conquistaram apoio no contexto de uma concepção liberal e residual das políticas sociais, o que frustrou as tentativas de transformar o eitc em um crédito reembolsável que incluísse também os «pobres não trabalhadores» (non-working poor)16.

Um caso particular é o do estado norte-americano do Alasca, que paga uma renda anual incondicional a cada residente desde 198217. O esquema do Alasca é composto por dois elementos. O Fundo Permanente para o Alasca (Alaska Permanent Fund, apf) é um fundo público de investimento, financiado com 25% da receita do Estado com impostos sobre hidrocarbonetos. Com esse fundo, é pago o Dividendo do Fundo Permanente para o Alasca (Alaska Permanent Fund Dividend, pfd) a cada pessoa que cumpra os requisitos de residência. O esquema tem uma ampla aceitação e legitimidade entre sua população.

No entanto, não são poucos os problemas apontados com relação a essa política. Por um lado, alguns indicam o baixo nível relativo do benefício anual, que em 2014 pagou 1.884 dólares. Historicamente, o valor flutuou entre um mínimo de 1,7% e um máximo de 6,4% da renda pessoal per capita. Entretanto, o valor não é trivial para as famílias de baixa renda, uma vez que é somado o benefício de todos os membros da casa. Mais preocupante é a flutuação do benefício, que depende dos rendimentos do apf, o que não permite estabilizar uma renda básica preventiva.

Também é controversa a fonte de financiamento do fundo do Alasca. Por um lado, ressalta-se que, como os hidrocarbonetos pertencem a todas as gerações, representam uma fonte lógica de financiamento para o pagamento de um benefício universal e incondicional a todas as pessoas. Mas, por outro, são questionados os incentivos perversos à extração de hidrocarbonetos com impactos ambientais negativos e o fato de que, por serem recursos de atividades meramente extrativistas, o custo e o impacto distributivo são ocultados.

O Irã é um caso mais recente de país onde um benefício universal e incondicional é financiado com fundos dos recursos de hidrocarbonetos. Neste país, contudo, não há um fundo de investimento destinado ao pagamento do benefício; os recursos provêm de reformas realizadas no sistema de subsídios aos preços internos dos combustíveis, cuja maior parte beneficia a população urbana de mais alta renda18. A primeira etapa desse programa se iniciou em dezembro de 2010, quando foram removidos os subsídios implícitos e estabelecida uma transferência mensal incondicional para cada residente iraniano (cerca de 45 dólares).

O objetivo declarado do programa é promover um uso mais efetivo da energia; o benefício é pago ao «chefe de família» de maneira uniforme e independente de qualquer análise de recursos. O pagamento ao chefe de família é justificado na presunção de que se trata da pessoa responsável pelos gastos da casa e, portanto, condiz com a ideia de compensar a alta dos preços do petróleo e seu impacto no sistema geral de preços. Originalmente, o governo pretendia restringir a transferência a 70% da população com menos recursos e, para isso, apelou à recusa voluntária dos benefícios por parte daqueles com mais recursos. No entanto, a demanda foi crescendo até representar 96% da população. O aumento da cobertura e dos custos, além do caráter compensatório do benefício diante de uma reforma destinada a eliminar subsídios, torna o futuro do programa incerto.

E a América Latina?

A América Latina mostra um cenário de certa forma paradoxal. O Brasil é o único país do mundo que possui aprovada uma lei de renda cidadã básica – a Lei 10.835 de 2004 –, e alguns acreditaram que isso marcaria um caminho rumo à consolidação da proposta na região. Mas essa lei nunca foi implementada, pois, quase ao mesmo tempo, sua aplicação foi bloqueada na prática pelo lançamento do programa Bolsa Família19. Algo parecido ocorreu na Argentina quando o projeto legislativo de «renda cidadã para a infância» (ingreso ciudadano para la niñez) e outros semelhantes foram encapsulados pelo decreto que estabeleceu o subsídio universal por filho (Asignación Universal por Hijo, auh)20.

O que se expandiu na região são programas de transferências de renda a famílias que possuem crianças como dependentes, condicionados ao cumprimento de determinadas obrigações por parte dos beneficiários21; a origem costuma se situar no Programa de Educação, Saúde e Alimentação (Progresa), implementado no México em 1997 e posteriormente transformado no Programa Oportunidades22. Paralelamente, foram difundidos na região programas não contributivos de transferência de renda para idosos inativos e que não possuem cobertura dos sistemas de previdência social23. Para alguns, esses programas podem significar um primeiro passo rumo à renda cidadã, mas, na prática, parecem mais um freio a esses sistemas24.

Na verdade, esses programas de transferências condicionadas de renda às famílias têm princípios de organização que condizem com as visões ortodoxas sobre o tema. Assim, o Banco Mundial os defende porque, supostamente, possuem dois méritos conjuntos: atuar como instrumentos eficazes para reduzir a pobreza por renda no curto prazo e aumentar a formação de «capital humano» no longo prazo como mecanismo para romper o caráter hereditário da pobreza25. Esses não são os objetivos da renda cidadã.

Para sintetizar, é muito difícil que programas focalizados, condicionados e que operem com baixo nível de gasto assistencial sejam um primeiro passo para uma política que se pretenda universal, incondicional e integrada de forma progressiva com o sistema tributário. Além disso, a confusão entre ambas as alternativas não favorece a proposta da renda cidadã, que a região continua vendo como uma mera política de assistência à pobreza, em vez de considerá-la uma mudança radical nos tipos de política vigentes. Pior ainda: dado que as políticas de transferência de renda às famílias têm sido uma marca distintiva de governos próprios de um ciclo considerado como «guinada à esquerda», não há espaço para muito otimismo em um contexto em que tal ciclo parece estar se esgotando.

O contexto atual na América Latina mostra a consolidação das políticas fragmentadas, condicionadas e que classificam as pessoas segundo seu nível de renda e sua maior ou menor predisposição a cumprir os requisitos impostos pelo Estado. Embora a cobertura de tais políticas tenha sido ampliada nos últimos anos, elas seguem impondo rígidos limites à autonomia dos beneficiários e, ao mesmo tempo, controlando e limitando suas oportunidades de vida. Como essa expansão ocorreu em um contexto de crescimento da economia e do gasto social, não podemos esperar grandes mudanças em um cenário de maior austeridade que vem se apresentando como o mais provável.

As políticas sociais continuam sendo um forte instrumento de controle social na região e, em muitos casos, vinculam-se à consolidação de redes clientelistas26. A experiência indica que, mesmo onde foram obtidos avanços legislativos – como é o caso do Brasil ou, mais parcialmente, da Argentina –, a proposta da renda cidadã acaba sendo bloqueada por políticas assistenciais que buscam sustentar os velhos paradigmas da proteção social segmentada por situação de emprego e renda. Não estão claras quais são as maneiras mais eficazes de abrir uma janela de oportunidade para a proposta porque, até o momento, diferentes vias percorridas acabaram encontrando um freio27. Cabe esperar o que pode ocorrer com o eventual «efeito demonstração» de avanços em países mais ricos. Nestes, a proposta de renda cidadã ganha espaço como um instrumento que recebe atenção em um contexto de deterioração do mercado de trabalho e do bem-estar geral de uma população acostumada a ter proteção social e que percebe estar perdendo sistematicamente, ainda mais quando cresce o debate sobre o futuro do emprego diante das novas tecnologias de produção e da segmentação da demanda por trabalho.

O certo é que na Europa – e no contexto de uma crise econômica e do mercado de emprego cuja reversão não parece possível –, há anos são observadas novas tendências que aumentam a desigualdade28. As mudanças no mercado de emprego, em especial uma tendência à precariedade do trabalho, indicam que as instituições tradicionais de proteção social não resolvem problemas sociais; em muitos casos, elas os potencializam. O número de contratos de trabalho atípicos cresce sistematicamente e, com isso, cresce também a quantidade de trabalhadores pobres (working poor), a ponto de observarmos um tipo de «dualização» no mercado de trabalho e no sistema de proteção social29.

Nesse cenário, a proposta de renda cidadã parece ter alcançado maior visibilidade em países com regimes de bem-estar mais desenvolvidos, onde grande parte dos cidadãos sente a perda de seus direitos adquiridos. Além disso, a renda cidadã vem se tornando uma demanda de movimentos sociais, que incorporam a proposta em suas plataformas questionadoras da ordem política, econômica e social vigente. O que parece claro é que, mesmo que a ideia não chegue a ser implementada, ela já é um elemento inevitável dos debates que estão em busca de alternativas mais eficazes para organizar a distribuição dos recursos em sociedades cada vez mais desiguais.

  • 1.

    Rubén Lo Vuolo: é diretor acadêmico do Centro Interdisciplinar para o Estudo de Políticas Públicas (Ciepp), Buenos Aires. Correio eletrônico: .Palavras-chave: igualdade, pobreza, política social, renda cidadã, América Latina, Europa.Nota: a versão original deste artigo em espanhol foi publicada em Nueva Sociedad No 264, 7-8/2016, disponível em www.nuso.org. Tradução de Luiz Barucke.. Para uma história do conceito, v. Walter Van Trier: «Every One a King», tese de doutorado, Universidade Católica de Lovaina, 1995.

  • 2.

    Para uma explicação sobre o funcionamento integrado do benefício da renda cidadã e do imposto de renda da pessoa física, v. Alberto Barbeito: «La integración de los sistemas de transferencias fiscales como instrumento de integración social» em R. Lo Vuolo (org.): Contra la exclusión. La propuesta del ingreso ciudadano, Miño e Dávila / Centro Interdisciplinario para el Estudio de Políticas Públicas, Buenos Aires, 1995. O fato de que a renda cidadã atue como crédito fiscal no imposto de renda não significa que seja financiada com recursos desse tributo, e sim que possa tomar recursos de outros impostos diretos e progressivos.

  • 3.

    Ver Roberto Gargarella: «Citizen’s Income and the Material Basis of the Constitution» em R. Lo Vuolo (org.): Citizen’s Income and Welfare Regimes in Latin America: From Cash Transfers to Rights, Palgrave Macmillan, Nova York, 2013.

  • 4.

    Ver Daniel Raventós: Las condiciones materiales de la libertad, El Viejo Topo, Barcelona, 2007.

  • 5.

    Particularmente a partir da rede Basic Income Earth Network (bien), que conta com representações nacionais em vários países de todo o mundo e difunde as novidades relevantes. Site: www.basicincome.org/.

  • 6.

    V., por exemplo, Gabriel Sassoon: «Le revenu de base inconditionnel n’aura pas fait rêver les Suisses» em Tribune de Gèneve, 5/6/216; «Les Suisses rejettent l’instauration d’un ‘revenu de base inconditionnel’» em Le Monde, 5/6/2016.

  • 7.

    Louis Hausalter: «Pourquoi le revenu universel n’est pas pour demain en France» em Marianne, 14/1/2016.

  • 8.

    Foram realizados pilotos na África e, mais recentemente, na Índia. Sarath Davala, Renana Jhabvala, Guy Standing e Soumya Kapoor Mehta: Basic Income: A Transformative Policy for India, Bloomsbury, Londres, 2014.

  • 9.

    Pelo mesmo motivo, a «armadilha do desemprego» (unemployment trap) é verificada nas modalidades convencionais de seguro-desemprego. Como o benefício é pago desde que a pessoa não realize outra atividade remunerada, ela perde o estímulo para buscar emprego cuja remuneração (ou esforço) não compense o que já recebe como benefício social.

  • 10.

    Ver R. Lo Vuolo: «A modo de presentación: los contenidos de la propuesta del ingreso ciudadano» em R. Lo Vuolo (org.): Contra la exclusión. La propuesta del ingreso ciudadano, cit.; Philippe Van Parijs, Laurence Jacquet e Claudio Caesar Salinas: «El ingreso básico y sus parientes: El ingreso básico parcial versus el Earned Income Tax Credit (eitc) y la reducción de los aportes a la seguridad social, como formas alternativas de enfrentar la nueva cuestión social» em Robert van der Veen, Loek Groot e R. Lo Vuolo (orgs.): La renta básica en la agenda. Objetivos y posibilidades del ingreso ciudadano, Miño e Dávila / Centro Interdisciplinario para el Estudio de Políticas Públicas, Buenos Aires, 2002.

  • 11.

    Anthony Atkinson: «The Case of Participation Income» em The Political Quarterly vol. 67 No 1, 1996.

  • 12.

    J. Arcarons, D. Raventós e L. Torrens: «El ‘trabajo garantizado’ de Izquierda Unida y el ‘plan de garantía de rentas’ de Podemos contra la pobreza: unas propuestas muy pobres» em Sin Permiso, 1/11/2015.

  • 13.

    Alan Cibils e R. Lo Vuolo: «El Estado como empleador de última instancia» em Documentos de Trabajo No 40, Ciepp, Buenos Aires, 2004.

  • 14.

    Sean Healy e Brigid Reynolds: «De la idea al Libro Verde: la introducción del ingreso básico en la agenda política irlandesa» em R. van der Veen, L. Groot e R. Lo Vuolo (orgs.): op. cit.

  • 15.

    Para uma discussão sobre a história dessas políticas nos eua, v. Richard Caputo: «United States of America: gai Almost in the 1970s but Downhill Thereafter» em R. Caputo (org.): Basic Income Guarantee and Politics: International Experiences and Perspectives on the Viability of Income Guarantees, Palgrave Macmillan, Nova York, 2012; Karl Widerquist e Allan Sheahen: «The Basic Income Guarantee in the United States: Past Experience, Current Proposals» em Matthew C. Murray e Carole Pateman (orgs.): Basic Income Worldwide: Horizons of Reform, Palgrave Macmillan, Nova York, 2012.

  • 16.

    Algo semelhante ocorre com o Universal Credit do Reino Unido. A preeminência da divisão entre merecedores e não merecedores como base do sistema britânico de política social dificulta o avanço em direção a uma renda universal e incondicional. Daniel Clegg: «The Demise of Tax Credits» em The Political Quarterly vol. 4 No 86, 2015; Bill Jordan: «The Low Road to Basic Income? Tax-Benefit Integration in the uk» em Journal of Social Policy vol. 1 No 41, 2012.

  • 17.

    Para uma discussão sobre o programa do Alasca, v. os trabalhos incluídos em K. Widerquist e Michael W. Howard (orgs.): Alaska’s Permanent Fund Dividend: Examining Its Suitability as a Model, Palgrave Macmillan, Nova York, 2012.

  • 18.

    Para uma discussão sobre a experiência no Irã, v. Hamid Tabatabai: «From Price Subsidies to Basic Income: The Iran Model and its Lessons» em K. Widerquist e M.W. Howard (ors.): Adapting the Permanent Fund Dividend for Reform Around the World, Palgrave Macmillan, Nova York, 2012.

  • 19.

    Para uma discussão sobre o caso do Brasil, v. Lena Lavinas: «Brazil: The Lost Road to Citizen’s Income» em R. Lo Vuolo (org.): Citizen’s Income and Welfare Regimes in Latin America: From Cash Transfers to Rights, Palgrave Macmillan, Nova York, 2013.

  • 20.

    R. Lo Vuolo: «The Argentine ‘Universal Child Allowance’: Not the Poor but the Unemployed and the Informal Workers» em R. Lo Vuolo (org.): Citizen’s Income and Welfare Regimes in Latin America, cit.; R.M. Lo Vuolo: «Asignación por hijo», Análisis de Coyuntura No 21, Ciepp, Buenos Aires, 2009.

  • 21.

    Para uma análise desses programas, v. por exemplo Camila Arza e Florencia Chahbenderian: «Programas de transferencias monetarias a las familias. Las experiencias de Argentina, Bolivia, Brasil y Chile», Documento de Trabalho No 90, Ciepp, Buenos Aires, 2014; Simone Cechini e Aldo Madariaga: Programas de transferencias condicionadas. Balance de la experiencia reciente en América Latina y el Caribe, Cepal / Asdi, Santiago do Chile, 2011.

  • 22.

    V. Pablo Yanes: «Targeting and Conditionalities in Mexico: The End of a Cash Transfer Model?» em R. Lo Vuolo (org.): Citizen’s Income and Welfare Regimes in Latin America, cit.

  • 23.

    C. Arza: «Basic Pensions in Latin America: Toward a Rights-Based Policy?» em R. Lo Vuolo (org.): Citizen’s Income and Welfare Regimes in Latin America, cit. Uma experiência citada frequentemente é a Pensão Alimentícia Universal da Cidade do México; v. a respeito P. Yanes: op. cit.

  • 24.

    Ver R. Lo Vuolo: «Introduction» em R. Lo Vuolo (org.): Citizen’s Income and Welfare Regimes in Latin America, cit., e «Las perspectivas de ingreso ciudadano en América Latina. Un análisis en base al ‘Programa Bolsa Familia’ de Brasil y a la ‘Asignación Universal por Hijo para Protección Social’ de Argentina», Documento de Trabalho No 76, Ciepp, Buenos Aires, 2010.

  • 25.

    Ariel Fiszbein e Norbert Schady: Conditional Cash Transfers: Reducing Present and Future Poverty, Banco Mundial, Washington, dc, 2009.

  • 26.

    Julio Leonidas Aguirre: «Redes clientelares. Una perspectiva teórica desde el análisis de redes sociales», Documento de Trabalho No 83, Ciepp, Buenos Aires, 2012.

  • 27.

    Pode-se consultar uma excelente síntese das perspectivas políticas da proposta em Jurgen De Wispelaere: «Basic Income in Our Time: Improving Political Prospects Through Policy Learning?» em Journal of Social Policy, 2016.

  • 28.

    Bruno Palier: «The Long Conservative Corporatist Road to Welfare Reforms» em B. Palier (org.): A Long Goodbye to Bismarck? The Politics of Welfare Reforms in Continental Europe, Amsterdam University Press, Amsterdã, 2010.

  • 29.

    B. Palier e Kathleen Thelen: «Institutionalizing Dualism: Complementarities and Change in France and Germany» em Politics & Society vol. 38 No 1, 2010.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Junho 2017, ISSN: 0251-3552


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