Tema central
NUSO Nº Junho 2017

Por que perduram os regimes autoritários

Por que perduram os regimes autoritários

As novas ditaduras

Quando Hannah Arendt escreveu Origens do totalitarismo, em 1951, seu livro ainda estava impregnado pelo horror do extinto regime nacional-socialista e pelo apogeu do stalinismo. Uma ideologia de dominação diferenciada e o terrorismo tornaram-se as características distintivas do tipo de regime totalitário que marcou de maneira decisiva a história de domínio e de guerras do curto século xx. Assim como Carl Joachim Friedrich (seu colega da Universidade de Harvard), Arendt estabelecia uma precisa distinção entre regimes autoritários e totalitários. Segundo a pensadora alemã, o autoritarismo restringia a liberdade, enquanto o totalitarismo a suprimia. O núcleo do totalitarismo como conceito radicava no fato de que os dominados ficavam sob o arbítrio absoluto de quem exercia o mando. Nem sequer o Estado era visto como o principal detentor do poder. Arendt considerava que eram, mais propriamente, o partido (dotado de uma concepção do mundo) e o seu líder, que buscavam legitimar a dominação com uma grande narrativa ideológica vinculada a uma «sociedade sem classes», por um lado, ou a uma «superioridade da própria raça e do próprio povo», por outro.

Desde o início, o conceito e a teoria do totalitarismo exibiram inconsistências e analogias apressadas. A equiparação implícita entre a ideia prometeica de um «reino da liberdade» (Karl Marx) e a tenebrosa ideologia nazista de aniquilação foi problemática. Embora na prática os regimes nazista e stalinista mostrassem um terror paralelo, com seu Leviatã destruidor de liberdades e o assassinato em massa dos judeus ou dos inimigos de classe, as diferenças continuavam existindo. Durante a Guerra Fria, o conceito de totalitarismo se tornou ainda mais difuso do ponto de vista analítico, já que começou a englobar, precipitadamente, todos os regimes comunistas e cada vez mais ditaduras de outro tipo. Muitas vezes, o termo degenerou em um conceito utilizado como instrumento na confrontação política. No entanto, no século xx foram poucos os regimes verdadeiramente totalitários, apesar da existência de exemplos claros, como a União Soviética de 1929 a 1956, a Alemanha nazista de 1934-1938 a 1945, parte dos satélites da Europa Oriental durante os anos 1950, a China desde o começo dessa década até a morte de Mão Tsé-Tung, em 1976, o regime genocida de Pol Pot no Camboja e o sistema totalitário norte-coreano da dinastia Kim. No início do século xxi, só restava a República Popular Democrática da Coreia. Os regimes teocráticos islâmicos no Irã e na Arábia Saudita, assim como o talibã no Afeganistão, mantiveram-se como totalitarismos incompletos. As doutrinas fundamentalistas, cujos postulados controlam profundamente a vida dos fiéis, carecem de uma estrutura desenvolvida do Estado capaz de traduzir sua reivindicação total em uma realidade totalitária.

Ditaduras no século xxi

A terceira e longa onda de democratização, que culminou no final do século xx com o colapso do império soviético, modificou as condições nacionais e internacionais de dominação política. Com a exceção dos movimentos islâmicos, que em alguns lugares se radicalizam, as grandes narrativas ideológicas de dominação desapareceram. A globalização econômica e comunicacional fez com que o fechamento hermético e autocrático dos espaços de dominação política se transformasse, aos poucos, em uma ficção anacrônica. A supremacia exigia cada vez mais formas de legitimação que tivessem em conta a liberdade, a proteção dos direitos humanos e a participação política. Surgiram novos modos de domínio autocrático, considerados pelo âmbito acadêmico como autoritarismos eleitorais (ou seja, autocracias com eleições). Tais eleições se diferenciam claramente daquelas realizadas no bloco socialista da Europa Oriental: em grande medida, aquelas votações com participação de 99% do eleitorado, em que comunistas no poder e seus partidos aliados obtinham 99% dos votos, pertencem ao passado. Eleições nos regimes autoritários da África e da Ásia não são hoje tão programáveis quanto as do bloco soviético. Elas são manipuladas, orquestradas e fraudadas, mas também oferecem à oposição uma boa oportunidade de se mobilizar, formar alianças e estabelecer uma imagem pública tanto nacional como internacional. No século xxi, o novo desejo autoritário de gerar esquemas de democracia formal com uma aura de legitimidade interna e externa traz consigo riscos para os que detêm o poder. Os limites entre os protótipos de ditadura e democracia são cada vez menos claros. Para além da polêmica que envolve, quem pode definir exatamente se a Rússia de Vladimir Putin (ou de Boris Yeltsin), a Turquia de Recep Tayyip Erdoğan e os casos atuais da Ucrânia, Venezuela, Filipinas e Cingapura já são autocracias ou ainda são democracias defeituosas? Do ponto de vista das ciências sociais, agora o tema é tratado com maior cuidado, evitando-se as tipologias categóricas e tentando situar os regimes existentes sobre um eixo métrico entre o ideal da democracia baseada no Estado de Direito e a ditadura «perfeita». Muitos sistemas políticos ficam, assim, em um espaço intermediário e são catalogados pelo âmbito acadêmico como «regimes da zona cinzenta», que, por sua vez, dividem-se em sistemas híbridos (Rússia), «democraduras» (Venezuela) e democracias defeituosas (Hungria). Sua estabilidade é maior do que se supõe, já que, ao longo do tempo, não caminham rumo a ditaduras fechadas ou a democracias abertas, tendo há anos encontrado o seu próprio equilíbrio, sensível ao contexto histórico e político. O fato de que hoje Putin, Erdoğan e Viktor Orbán gozem de maior demos e maior aprovação popular que a chanceler da Alemanha (uma democracia com Estado de direito) e que o atual presidente da Quinta República Francesa se explica como parte do quebra-cabeça pós-moderno relacionado com as formas de dominação diferenciadas em escala global.

Quão estáveis são as novas ditaduras?

Se os sistemas políticos fossem divididos em três classes, como autocracias, regimes híbridos e democracias, hoje poderiam ser identificadas aproximadamente 65 democracias e 45 autocracias abertas entre os cerca de 200 países do mundo. A maioria dos restantes são regimes híbridos em suas diferentes formas. Qual é, de fato, a estabilidade dos sistemas políticos? Qual é a permanência das ditaduras? Na prática, do ponto de vista estatístico, as democracias foram o sistema mais estável nos últimos 60 anos, seguidas pelas ditaduras e depois pelas variantes híbridas. Em que se baseia essa relativa estabilidade dos regimes ditatoriais? Em um recente projeto realizado no Centro de Pesquisa de Ciências Sociais de Berlim (wzb, na sigla em alemão), chegamos à conclusão de que nas ditaduras – e também nas modalidades híbridas – a dominação se apoia sobre três pilares: a legitimação, a repressão e a cooptação. A legitimação se nutre sempre de duas fontes: uma vinculada ao âmbito normativo-ideológico e outra relacionada com os resultados. O antiliberalismo, o antiparlamentarismo, o racismo, o nacionalismo e os anacrônicos preceitos redentores de caráter religioso, mas também as visões marxistas do futuro, podem conseguir a adesão dos dominados (pelo menos temporariamente) às normas propostas. No início do século xxi, as ideologias fascistas e comunistas perderam, em grande medida, sua capacidade de persuasão. Talvez hoje caberia indicar as variantes de um islamismo político fundamentalista, que são capazes de criar um forte compromisso ideológico entre os fiéis. Entretanto, dado que essas vertentes também restringem direitos humanos fundamentais a fim de alcançarem suas pretensões de poder, suas fontes de legitimação apoiadas na promessa de salvação ameaçam se esgotar, no longo prazo, na realidade repressiva. Devido a essa autodeterioração normativa, os regimes ditatoriais dependem, em particular, de seu equilíbrio em matéria econômica, de segurança e de ordem, ainda que uma modernização econômica e social rápida demais também implique um risco para as autocracias. Isso porque, com essa evolução, surgem setores médios, os trabalhadores se organizam, o nível de educação aumenta, a sociedade civil se desenvolve e aparecem discursos que reivindicam a participação política. Sem dúvida, essa dinâmica não necessariamente desembocará em processos bem-sucedidos de democratização, como proclama com otimismo a teoria da modernização. Basta ver o que ocorre em diversos países, como Cingapura, República Popular da China e as petroditaduras do Golfo. Estas últimas se limitam a contratar semiescravos do Sudeste Asiático, evitando assim o desafio de formar uma classe trabalhadora local conscientizada.

Em segundo lugar, as autocracias se apoiam na repressão, que pode adotar diferentes formas e intensidades. Ainda que exista uma transição gradual, em nosso projeto de pesquisa («Por que as ditaduras sobrevivem?») diferenciamos entre repressão «suave» e «dura». Enquanto a primeira busca sobretudo restringir os direitos políticos (como a liberdade de reunião, de expressão, de imprensa e de exercício da profissão), a segunda aponta sobretudo contra o núcleo dos direitos humanos (como o direito à vida, à integridade física e à liberdade individual). A experiência empírica mostra que, ante uma ameaça ao status quo, as elites dominantes autoritárias costumam reagir com uma maior repressão, embora seja muito improvável que essa ação, por si só, consiga estabilizar um regime político de forma duradoura. Em tais casos, a perda de legitimidade é alta: o aumento da repressão logra incrementar o poder de intimidação, mas, ao mesmo tempo, diminui a legitimação – e, com ela, a aprovação popular. A repressão dura tem custo alto e solapa, no longo prazo, os fundamentos da dominação política. Se consideramos o período estudado, compreendido entre 1950 e 2008, a variante «suave» demonstrou ser estatisticamente o elemento mais bem-sucedido de estabilização em centenas de ditaduras. O terceiro pilar da dominação é a cooptação, por meio da qual as elites autocráticas conseguem que os atores e grupos influentes situados fora do núcleo do regime se comprometam com a ditadura. Em geral, esses atores estratégicos provêm de setores econômicos, do aparato de segurança e da esfera militar. Em troca de sua lealdade, costumam receber cargos, privilégios políticos, recursos e concessões econômicas. Os instrumentos utilizados nesses casos são a corrupção, o clientelismo e as redes patrimoniais. No entanto, os recursos disponíveis limitam a duração e o grau de colaboração «comprada» que amplos grupos demonstram em relação ao regime. Em nossa análise, mostramos que as fissuras em um dos três pilares de dominação podem ser compensadas temporariamente mediante o reforço dos outros dois pilares. Mas há determinadas situações em que as fendas surgidas em um pilar sobrecarregam os restantes. É então quando se abrem espaços para os protestos, que – caso alcancem grandes proporções – podem provocar a queda de todo o sistema. No entanto, nada garante que isto leve ao Estado de direito e à democracia, como mostram numerosos processos fracassados de transformação na Europa Oriental, na Ásia Central e durante a «primavera árabe». Existe também uma superestimação do efeito estabilizador da cooptação. Conforme o que foi observado, como média estatística, o equilíbrio ideal para a sobrevivência das ditaduras é obtido ao se combinar uma alta legitimação baseada na ideologia e nos resultados com uma minimização da repressão «dura», um desenvolvimento da repressão «suave» e um nível médio de cooptação. A Cingapura é o país que mais se aproxima desse ponto, e a China caminha claramente nessa direção. Mas há inclusive regimes híbridos, como a Rússia de Putin, que não estão tão longe desse equilíbrio. A tese de Francis Fukuyama sobre o triunfo inevitável da democracia (1991) demonstrou ser uma expressão de desejo pouco fundamentada. Por exemplo, a ambiciosa visão associada à exportação ocidental da democracia fracassou estrepitosamente na mudança de regime no Afeganistão, no Iraque e na Líbia. As sociedades livres do Ocidente, do Oriente e do Sul continuarão vivendo com ditaduras e deverão negociar com elas. Não há receitas que assegurem o sucesso. As disputas são inevitáveis, e ainda não foi inventado nenhum polígono mágico que una valores, interesses, direitos humanos, economia, democracia e estabilidade. Portanto, deveremos lidar com as ditaduras nos esforçando para negociar, com a paciência necessária, de modo a atravessar os obstáculos com um pragmatismo baseado em nossos valores.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Junho 2017, ISSN: 0251-3552


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