Tema central
NUSO Nº Junho 2017

Os populismos refundadores Promessas democratizadoras, práticas autoritárias

O ciclo político aberto por Hugo Chávez no final da década de 1990 se sustentou em promessas de refundação nacional em um contexto de crise das instituições de representação política e de mobilizações populares contra o neoliberalismo. Suas políticas se basearam no combate à pobreza, ampliaram os gastos sociais, redistribuíram os excedentes da receita obtida com os recursos naturais e mobilizaram os setores populares contra as elites. Mas tudo isso foi realizado aprofundando o caráter extrativista da economia e os movimentos autoritários próprios da política fundamentada na lógica amigo/inimigo.

Os populismos refundadores  Promessas democratizadoras, práticas autoritárias

Hugo Chávez inaugurou um ciclo populista que também levou ao poder Evo Morales e Rafael Correa. Esses líderes prometeram nada menos que a refundação de suas respectivas nações. Os três rejeitaram o neoliberalismo, promoveram a integração e a unidade latino-americana sem intervenções imperialistas e buscaram estabelecer modelos superiores de democracia baseados na participação popular e na igualdade. Chegaram ao poder com promessas revolucionárias em um contexto de crise de todas as instituições de representação política e de insurreições populares contra o neoliberalismo, inovando as estratégias de mudança revolucionária: em lugar de armas, utilizaram os votos e convocaram assembleias constituintes participativas, as quais redigiram novas Constituições que ampliaram os direitos dos cidadãos. Muitos acadêmicos e cidadãos viram nesses regimes a promessa de instaurar sociedades pós-neoliberais baseadas na igualdade e em modelos de democracia capazes de transcender os déficits de participação e representação das democracias liberais.

Mas a realidade, após esses líderes terem dominado a cena política de seus países por mais de uma década, é muito mais sombria. Chávez e seu sucessor Nicolás Maduro, da mesma forma que Morales e Correa, concentraram o poder no Executivo e subordinaram os demais poderes, utilizaram o Estado para colonizar a esfera pública regulando o conteúdo do que os meios de comunicação poderiam publicar e, nos casos equatoriano e venezuelano, tornando o Estado o maior comunicador. Eles enfrentaram movimentos sociais e organizações de esquerda que questionaram suas políticas extrativistas e resistiram ao afã estatal de controlar a sociedade civil criminalizando os protestos. Apesar de terem redistribuído a riqueza quando os preços do petróleo e dos minerais estavam em alta, esses governos aumentaram a dependência de seus países da extração de hidrocarbonetos.

Para explicar o que saiu errado, acadêmicos e ativistas desenvolveram argumentos estruturalistas baseados na dependência da extração de recursos naturais; explicações institucionalistas sobre por que o populismo, no contexto de instituições frágeis, conduz ao autoritarismo competitivo; e argumentos que se concentram em como a lógica populista descaracteriza a democracia e pode evoluir para formas de autoritarismo.

Dependência da extração de recursos naturais

Chávez, Correa e Morales prometeram não só pôr fim ao neoliberalismo, mas também substituir o modelo extrativista com visões alternativas de desenvolvimento e de relacionamento entre natureza e sociedade, baseadas nas noções andinas de suma qamaña e sumak kawsay (viver bem ou bem viver). Alguns acadêmicos chegaram a escrever textos que celebravam o fim do desenvolvimento, do extrativismo e do colonialismo. Já outros foram menos otimistas – ou mais realistas – e viram esses governos como uma continuidade do modelo rentista. No momento de maior popularidade do chavismo, Kurt Weyland1 argumentou que «em lugar de estabelecer um novo modelo de desenvolvimento [o socialismo do século xxi], o governo de Chávez está revivendo o modelo rentista». O aumento descomunal da riqueza proveniente dos hidrocarbonetos permitiu que esses governos populistas recusassem o neoliberalismo, ampliassem o tamanho e o gasto do Estado e fundassem organizações supranacionais como a Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (alba) para fazer frente às políticas de integração neoliberais dos Estados Unidos.

Em vez de se libertarem do extrativismo, os três governos reforçaram sua dependência dos hidrocarbonetos. As exportações de petróleo venezuelanas passaram de 68,7% do total exportado em 1998 para 96% em 20152. Na Bolívia, entre 2001 e 2011, as exportações de minerais e hidrocarbonetos cresceram de 41,8% para 58%3. No Equador, a venda de petróleo no comércio internacional passou de 41% para 58% entre 2002 e 2011, e o governo de Correa concedeu 2,8 milhões de hectares a empresas mineradoras, sendo a metade dessa área destinada à extração de metais4.

A riqueza obtida foi utilizada para fortalecer o Estado e financiar programas sociais destinados ao combate à pobreza. De acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), a pobreza foi reduzida de 48,6% em 2002 para 29,5% em 2011 na Venezuela; de 62,4% em 2002 para 42,4% em 2010 na Bolívia; e de 49% em 2002 a 32,4% em 2011 no Equador5. No entanto, a redistribuição perdurou somente enquanto os preços se mantiveram elevados e, conforme havia antecipado Weyland, o modelo rentista se mostrou insustentável no médio prazo. De acordo com a Cepal, de 2012 a 2013, a pobreza aumentou de 24% para 32% na Venezuela. Outro estudo assinala que, em 2015, 75% dos venezuelanos eram pobres se considerada sua renda6.

Esses governos não acabaram com o modelo rentista e extrativista, pois necessitavam desses recursos para vencer as eleições. Seus líderes usaram o processo eleitoral para afastar as elites políticas tradicionais e se consolidar no poder. Os venezuelanos votaram em 16 eleições entre 1999 e 2012; os bolivianos, em nove de 2005 a 2016 (entre eleições gerais e diversos referendos); e os equatorianos compareceram a seis pleitos entre 2006 e 2013. Na Venezuela, os gastos sociais foram ampliados durante os períodos eleitorais. Por exemplo, motivada pela corrida presidencial de 2012, foi lançada a «Gran Misión Vivienda», que construiu edifícios residenciais em frente às colinas de Caracas para que os pobres vissem que, com sorte, poderiam participar desse projeto e ter acesso a um tipo de moradia semelhante à da classe média. Além disso, o governo lançou a «Misión Mi Casa Bien Equipada» para mobiliar e dotar os beneficiários dos projetos habitacionais de eletrodomésticos, inclusive aparelhos de ar-condicionado.

A dependência extrativista levou ao confronto com comunidades indígenas. Ainda que suas Constituições reconheçam o direito à consulta prévia para a exploração de recursos naturais, esses governos expandiram de modo autocrático a exploração de hidrocarbonetos e minerais nos territórios indígenas. Como resultado, semelhante ao ocorrido com o multiculturalismo neoliberal – que separou o «índio permitido» do «índio recalcitrante», realizou uma distribuição cultural simbólica ao primeiro grupo e, ao mesmo tempo, reprimiu o segundo –, a aceitação do extrativismo marcou os limites do reconhecimento dos direitos indígenas7. No Equador, os protestos indígenas foram criminalizados, e o «índio permitido» da Revolução Cidadã de Correa – como assinala a antropóloga Carmen Martínez Novo – é o beneficiário passivo de suas políticas redistributivas. A extração de recursos naturais também determinou os limites dos direitos indígenas na Bolívia. Nas palavras da antropóloga Nancy Postero, «está claro que o Estado vê o controle indígena da extração de recursos naturais como um atentado ao poder estatal»8.

Instituições frágeis e autoritarismo competitivo

Quando políticos populistas chegaram ao poder na Europa, foram obrigados pelos sistemas parlamentares a estabelecer pactos e tiveram suas ações limitadas pelas instituições supranacionais da União Europeia. Em determinados sistemas presidencialistas latino-americanos cujas instituições se encontravam em crise, os populistas concentraram o poder e atacaram as instituições que garantem o pluralismo. No princípio, os ataques sistemáticos ao pluralismo, à divisão de poderes e à liberdade de expressão desfiguram a democracia e, pouco a pouco, levam ao que Guillermo O’Donnell caracterizou como uma morte lenta desse sistema e sua transformação em formas de autoritarismo9.

Steven Levitsky e James Loxton enfatizam que o populismo faz com que democracias frágeis se transformem em regimes competitivos autoritários por três motivos10. O primeiro deles é que os populistas são outsiders sem nenhuma experiência na política parlamentar de pacto e compromissos. Segundo, eles foram eleitos prometendo refundar todas as instituições políticas e, mais precisamente, o marco institucional das democracias liberais. Por último, os populistas confrontaram-se com o Congresso, o Poder Judiciário e outras instituições controladas pelos partidos. Para ganhar as eleições, esses governos empregaram recursos públicos, silenciaram os meios de comunicação críticos, utilizaram a mídia pública a seu favor, em alguns casos, intimidaram setores da oposição e pressionaram os órgãos eleitorais, o Poder Judiciário e as instituições de controle social e prestação de contas. Embora o momento de votar fosse livre, o processo eleitoral os favorecia explicitamente, transformando a democracia em regimes legitimados pela lógica eleitoral, mas que não garantem que os pleitos sejam realizados com campos equilibrados e instituições imparciais.

Uma vez no poder, Chávez, Maduro, Morales e Correa utilizaram o legalismo discriminatório, entendido como o uso discricionário da autoridade legal formal11. Para que pudessem utilizar as leis à sua vontade, eles controlaram os tribunais e os colocaram nas mãos de seus partidários ou de juízes amedrontados. Chávez se apropriou de todos os poderes do Estado12. Ele teve maioria no Legislativo e colocou o Tribunal Supremo de Justiça sob o controle de juízes leais, e centenas de juízes de cortes menores foram substituídos por figuras da confiança do regime. Além disso, Chávez manipulou o poder eleitoral e todas as instituições de controle social. Correa colocou pessoas de sua confiança a cargo do poder eleitoral e dos órgãos de controle, e «tomou» o Poder Judiciário13.

O controle e a regulação da mídia foram uma das prioridades da luta populista pela hegemonia14. Em 2000, a Lei Orgânica de Telecomunicações permitiu ao governo de Chávez suspender ou revogar as concessões de frequências quando convinha aos interesses do país. A Lei de Responsabilidade Social em Rádio e Televisão de 2004 proibiu a transmissão de material que possa promover o ódio e a violência15. Essas leis são ambíguas e podem ser interpretadas de acordo com os interesses do Estado. O governo Correa aprovou em 2013 a Lei Orgânica de Comunicação, que criou um órgão estatal com a competência de regular o conteúdo que a mídia pode transmitir.

Chávez fechou e estatizou meios de comunicação privados críticos a seu governo e transformou o Estado venezuelano no principal comunicador, ao controlar 64% dos canais de televisão. Na Bolívia, a propriedade dos meios de comunicação está dividida entre o Estado, o setor privado e organizações populares e indígenas16. No Equador, o Estado é proprietário dos dois canais de televisão de maior audiência e possui um grupo de estações de rádio, televisão e imprensa escrita17. Em países sem uma tradição de mídia pública e em mãos de governos que não diferenciam o que é estatal do que é partidário, os meios públicos e, em menor medida, os meios comunitários se colocam a serviço dos governos populistas.

Esses governos criaram normas legais com linguagem ambígua para controlar e regular as organizações não governamentais (ongs). Chávez foi o primeiro a fazer isso e, em 2010, a Lei de Defesa da Soberania Política e Autodeterminação Nacional proibiu as ongs que defendem os direitos políticos ou monitoram os órgãos públicos de receberem ajuda internacional. Três anos mais tarde, Correa aprovou o Decreto 16, que pune ongs que se desviem dos fins para os quais tenham sido criadas ou interfiram nas políticas públicas atentando contra a segurança interna e externa18. Em 2013, Morales também legislou para controlar e regular as ongs assinalando que serão revogadas as permissões de organizações que tiverem atividades distintas daquelas mencionadas em seus respectivos estatutos ou se os representantes das organizações forem sancionados por conduzir atividades que atentem contra a segurança e a ordem pública19.

Para compensar o poder de sindicatos, movimentos sociais, professores e estudantes, foram criados movimentos sociais paralelos na Venezuela e no Equador. O protesto foi criminalizado em ambos os países. Alguns líderes sindicais foram acusados de terrorismo, mesmo que no passado tenham apoiado Chávez20, e centenas de dirigentes indígenas e camponeses foram acusados de terrorismo e sabotagem no Equador21. As leis foram aplicadas de modo discricionário para perseguir alguns opositores. O caso mais notório ocorreu no governo de Maduro, que condenou o opositor Leopoldo López por incitar a violência em um julgamento repleto de irregularidades.

A lógica populista: construir o povo e seus inimigos

Ernesto Laclau escreveu que a lógica populista cria sujeitos populares que estão em uma relação de antagonismo com um inimigo22. O autor argumentou que a divisão da sociedade em dois campos antagônicos era necessária para a ruptura de sistemas institucionais excludentes e a criação de uma ordem alternativa. Ainda que para Laclau e seus seguidores o populismo seja o único caminho para dar fim a sistemas excludentes e frear os populismos de direita23, seu argumento – baseado na teoria de Carl Schmitt sobre a política – pode justificar ou promover autoritarismos populistas. Se a política é concebida como a luta entre amigos e inimigos, torna-se difícil imaginar rivais com espaços institucionais ou normativos legítimos. Segundo a lógica de Schmitt, é impossível a existência de populismos light que construam identidades coletivas agonísticas, como propõe Chantal Mouffe. Os populistas, de Juan Domingo Perón a Chávez, fabricaram inimigos no sentido existencial caracterizado por Schmitt: inimigos que deveriam ser destruídos. Perón disse que, quando os adversários políticos se transformam em inimigos da nação, «já não são cavalheiros com os quais se deve lutar segundo as regras, mas serpentes que devem ser mortas de qualquer maneira»24.Os populistas utilizam discursos maniqueístas e polarizadores do povo contra a oligarquia. Chávez não se antagonizou com rivais, mas com a oligarquia, definida como os inimigos do povo, «essas elites egoístas que trabalham contra a pátria»25. Ele desqualificou os políticos tradicionais como imbecis, sujos e «pitiyanquis»26, chamando os donos dos meios de comunicação de «os quatro cavaleiros do Apocalipse»27. Já Correa criou uma longa lista de inimigos de seu governo, do povo e da pátria, que inclui políticos tradicionais, donos dos meios de comunicação, líderes de movimentos sociais críticos ao governo, a esquerda «infantil» e quase todos os que questionaram suas políticas públicas. Morales definiu como inimigos da nação e do povo soberano os eua, o Órgão de Combate às Drogas (dea, por seu acrônimo em inglês) do mesmo país e as multinacionais. Nacionalmente, os inimigos do povo, do indígena e do andino são a oligarquia, os brancos e a cultura ocidental28.

Contudo, ainda que tenham construído inimigos políticos, os populistas jamais os eliminaram fisicamente utilizando o terror indiscriminado e desaparecimentos para criar um povo homogêneo. O momento fundacional do populismo foi e continua sendo a vitória eleitoral, considerada o único canal para expressar a vontade popular29. Enquanto os populistas clássicos lutaram contra a fraude eleitoral e expandiram o número de eleitores, os populistas refundadores utilizaram as eleições para criar novos blocos hegemônicos e afastar os partidos políticos. Eles governaram por meio de campanhas e eleições permanentes, com as quais percorreram seus países renovando suas lideranças carismáticas e confrontando seus inimigos. As eleições foram apresentadas como momentos fundacionais em que estava em jogo o destino de seus países.

O povo, como assinalou Laclau, é uma construção discursiva. Essa categoria pode se constituir como uma população diversa e plural, ou como o «povo como um». Dessa forma, o povo pode enfrentar adversários políticos ou inimigos que devem ser eliminados. Os liberais e social-democratas constroem o povo como uma pluralidade que compartilha espaços institucionais com seus adversários políticos. Por outro lado, os populistas constroem o povo como uma entidade sagrada cuja vontade pode ser encarnada em um redentor. Chávez declarou: «Isto não é sobre Hugo Chávez, mas sobre todo um povo»30. Como sua missão era redimir seu povo, isso lhe permitiu dizer em 2010: «Exijo lealdade absoluta à minha liderança. Não sou um indivíduo; sou um povo». E Chávez, além de ser o povo, é a pátria: «O chavismo já não é Chávez; o chavismo é o patriotismo. Ser chavista é ser patriota. Aqueles que querem a pátria estão com Chávez. Eles não têm outro caminho»31. De forma semelhante, mas sem a grandiloquência do líder venezuelano, Correa manifestou logo após vencer as eleições de 2009: «O Equador votou em si mesmo».

A categoria «povo» não deve ser imaginada necessariamente como unitária. Evo Morales construiu uma noção de povo plural e multiétnico32. A Constituição de 2009 declarou a Bolívia um Estado plurinacional e comunitário. Mas, às vezes, Morales pretende ser a voz única desse mesmo povo. Quando os indígenas da Amazônia protestaram contra sua política extrativista, ele os acusou de serem manipulados por ongs estrangeiras e não serem indígenas autênticos. Morales tentou impor uma visão hegemônica de indianidade como lealdade a seu governo. No entanto, ao enfrentar movimentos sociais fortes com capacidade de protagonizar ações coletivas perduráveis no tempo, ele não tem sido capaz de impor visões do «povo como um». Os populistas refundadores não se viram como líderes políticos convencionais, eleitos por um ou dois mandatos e que, concluído esse período, se retirariam da política; eles foram construídos e viram a si mesmos como pessoas que liderariam a refundação de suas repúblicas e como herdeiros das missões não concluídas dos pais da pátria. Apenas a doença impediu Chávez de ser presidente quantas vezes quisesse. Correa modificou a Constituição aprovada pela Assembleia Constituinte dominada por seu partido para permitir sua reeleição permanente, com uma cláusula que vedava sua própria participação na disputa de 2017. Uma vez que seu sucessor tenha enfrentado a grave crise econômica, ele poderá, se quiser, retornar como redentor em 2021. Morales saiu derrotado em um referendo que, se aprovado, lhe permitiria se apresentar em outra eleição em 2019, mas prometeu convocar outra consulta ou buscar vias alternativas para se candidatar nesse mesmo ano.

John Keane enfatiza que «a distinção entre estar no poder e deixá-lo é um indicador fundamental para que um governo seja considerado democrático»33. Na democracia, o papel presidencial é despersonalizado e não está encarnado em ninguém. Ocupar o poder temporariamente não é o mesmo que ser o dono do poder. Para os populistas, a presidência é uma posse em que devem permanecer até alcançarem a libertação de seu povo. Mas, por sua vez, sua legitimidade se fundamenta na vitória eleitoral e, portanto, nada lhes garante que permanecerão no poder34. É dessa forma que a legitimidade do populismo se baseia em dois princípios contraditórios: o princípio democrático de eleições limpas e alternância de poder, e o preceito autoritário do poder como uma posse pessoal do libertador do povo.

Conclusões

Os populistas refundadores de esquerda se rebelaram contra a ortodoxia neoliberal e a transformação da economia política em um assunto técnico que deveria estar nas mãos de especialistas. Uma vez no poder, combateram a pobreza, aumentaram os gastos sociais, redistribuíram os excedentes da riqueza obtida com a venda do petróleo e mobilizaram os setores populares, os quais exaltaram como a essência da nação.

O que deu errado nessas experiências e por que o populismo levou ao autoritarismo na Venezuela, no Equador e, em menor grau, na Bolívia? Parte da resposta é estrutural e se vincula às políticas de extração de recursos naturais. Os Estados rentistas utilizam discricionariamente os recursos fiscais gerados com a receita da extração de hidrocarbonetos e minerais para assegurar clientelas políticas. A necessidade de elevar a receita para manter sua base de apoio e, com isso, vencer eleições os levou a enfrentamentos com organizações indígenas e ecologistas, o que marcou os limites de suas políticas de inclusão e reconhecimento.

Os populistas prometeram destruir todas as instituições do poder constituído das democracias em seus países e substituí-las por uma nova institucionalidade. Utilizaram discricionariamente as leis e o legalismo discriminatório para punir seus críticos, premiar os apoiadores incondicionais, ocupar todas as instituições do Estado, bem como submeter e regular a sociedade civil e a esfera pública. A lógica schmittiana do populismo fabricou e lutou contra diversos inimigos, tais como partidos políticos, meios de comunicação, ongs e movimentos sociais independentes. Sua linguagem de amor ao povo e ódio aos inimigos do povo criou identidades políticas fortes e efetivas para a luta contra os inimigos, mas tais identidades não reconheceram no outro o direito de discordar.

Os populistas tentaram ocupar o espaço vazio da democracia até liberar seu povo, mas, ao contrário dos fascismos, não ocuparam todos os espaços da sociedade civil nem aboliram as eleições. Criaram regimes híbridos fundamentados na lógica democrática eleitoral e regularam – sem silenciar totalmente – a oposição, que utilizou os espaços institucionais existentes para resistir à implementação da fantasia populista do «povo como um».

Os resultados autocráticos das experiências refundadoras não deveriam nos levar a ver o liberalismo como a única alternativa ao autoritarismo populista. Embora Laclau estivesse correto ao afirmar que o liberalismo foi utilizado para defender os privilégios, não podemos nos esquecer que também é indispensável resistir ao despotismo35. O constitucionalismo, a separação de poderes, a liberdade de expressão e de organização são elementos necessários para a política da democracia participativa. Essas instituições liberais fortalecem a esfera pública e permitem que os movimentos sociais expressem e articulem suas demandas autônomas.

A experiência histórica demonstra que os projetos de transformação baseados na fantasia do «povo como um» terminam no autoritarismo. O mito do redentor populista cativou e terminou devorando a esquerda. Creio que já é chegado o momento de abandonar a ideia de um povo homogêneo encarnado na figura de um líder e de imaginar as rupturas populistas como a única resposta à administração neoliberal e arma exclusiva para frear os populismos de direita. Como destaca Andreas Kalyvas, em lugar de invocar um povo mítico que surge das profundezas históricas da pátria, «é preciso partir de uma pluralidade de movimentos sociais e associações políticas como a base para reconstruir a soberania popular»36.

  • 1.

    K. Weyland: «The Rise of Latin America’s Two Lefts: Insights from Rentier State Theory» em Comparative Politics vol. 41 No 2, 2009, p. 146.

  • 2.

    Gabriel Hetland: «Chavismo in Crisis» em nacla vol. 48 No 1, 2016, p. 9.

  • 3.

    Almut Schilling-Vacaflor e David Vollrath: «Indigenous and Peasant Participation in Resource Governance in Bolivia and Peru» em Barry Cannon e Peadar Kirby: Civil Society and the State in Left-Led Latin America, Zed Books, Londres, 2012, p. 128.

  • 4.

    Carmen Martínez Novo: «Managing Diversity in Postneoliberal Ecuador» em The Journal of Latin American and Caribbean Anthropology vol. 19 No 1, 2014, p. 118.

  • 5.

    Cepal: Panorama social da América Latina 2012, Nações Unidas, Santiago do Chile, 2013.

  • 6.

    Nelly Arenas: «El chavismo sin Chávez: la deriva de un populismo sin carisma» em Nueva Sociedad No 261, 1-2/2016, p. 9, disponível em www.nuso.org.

  • 7.

    C. Martínez Novo: ob. cit., p. 121.

  • 8.

    N. Postero: «‘El Pueblo Boliviano de Composición Plural’: A Look at Plurinational Bolivia» em C. de la Torre: The Promise and Perils of Populism: Global Perspectives, The University Press of Kentucky, Lexington, 2015, p. 412.

  • 9.

    G. O’Donnell: «Nuevas reflexiones acerca de la democracia delegativa» em G. O’Donnell, Osvaldo Iazzetta e Hugo Quiroga (eds.): Democracia delegativa, Prometeo, Buenos Aires, 2011.

  • 10.

    S. Levitsky e J. Loxton: «Populism and Competitive Authoritarianism in the Andes» em Democratization vol. 20 No 1, 2013.

  • 11.

    K. Weyland: «Latin America’s Authoritarian Drift: The Threat from the Populist Left» em Journal of Democracy vol. 24 No 3, 7/2013, p. 23.

  • 12.

    Kirk Hawkins: «Responding to Radical Populism: Chavism in Venezuela» em Democratization vol. 23 No 2, 2016.

  • 13.

    C. de la Torre e Andrés Ortiz Lemos: «Populist Polarization and the Slow Death of Democracy in Ecuador» em Democratization vol. 23 No 2, 2016.

  • 14.

    Silvio Waisbord: Vox populista. Medios, periodismo, democracia, Gedisa, Buenos Aires, 2013, p. 44.

  • 15.

    Javier Corrales: «Autocratic Legalism in Venezuela» em Journal of Democracy vol. 26 No 2, 2015, p. 39.

  • 16.

    S. Waisbord: ob. cit., p. 121.

  • 17.

    C. de la Torre e A. Ortiz Lemos: ob. cit., p. 231.

  • 18.

    Ibid., pp. 229-230.

  • 19.

    Human Rights Watch: World Report 2015: Bolivia: Events of 2014, www.hrw.org/world-report/2015/country-chapters/Bolivia.

  • 20.

    Consuelo Iranzo: «Chávez y la política laboral en Venezuela 1999-2010» em Trabajo vol. 5 No 8, 2011.

  • 21.

    C. Martínez Novo: ob. cit.

  • 22.

    E. Laclau: La razón populista, fce, Buenos Aires, 2005.

  • 23.

    Íñigo Errejón e Chantal Mouffe: Construir pueblo. Hegemonía y radicalización de la democracia, Icaria, Madri, 2015.

  • 24.

    Cit. em Federico Finchelstein: The Ideological Origins of the Dirty War, Oxford University Press, Oxford, 2014.

  • 25.

    José Pedro Zúquete: «The Missionary Politics of Hugo Chávez» em Latin American Politics and Society vol. 50 No 1, 2008.

  • 26.

    Termo depreciativo cunhado em Porto Rico na década de 1950 para se referir àqueles que admiram de forma submissa os eua [n. do t.].

  • 27.

    Margarita López Maya e Alexandra Panzarelli: «Populism, Rentierism, and Socialism in the Twenty-First Century» em C. de la Torre e Cynthia Arnson (eds.): Latin American Populism in the Twenty-First Century, Johns Hopkins University Press / Woodrow Wilson Center Press, Baltimore-Washington, 2013, p. 248.

  • 28.

    N. Postero: «Morales’s mas Government: Building Indigenous Popular Hegemony in Bolivia» em Latin American Perspectives vol. 37 No 3, 2010, p. 29.

  • 29.

    Enrique Peruzzotti: «Populism in Democratic Times: Populism, Representative Democracy, and the Debate on Democratic Deepening» em C. de la Torre e C. Arnson: ob. cit.

  • 30.

    J.P. Zúquete: ob. cit., p. 100.

  • 31.

    Luis Gómez Calcaño e Nelly Arenas: «El populismo chavista: autoritarismo electoral para amigos y enemigos» em Cuadernos del Cendes No 82, 2013, p. 20.

  • 32.

    Raúl Madrid: «Ethnopopulism in Bolivia» em World Politics vol. 60 No 3, 2008.

  • 33.

    J. Keane: «Life after Political Death: The Fate of Leaders after Leaving High Office» em J. Keane, Haig Patapan e Paul ’t Hart (eds.): Dispersed Democratic Leadership, Oxford University Press, Oxford, 2009, p. 285.

  • 34.

    Isidoro Cheresky: El nuevo rostro de la democracia, fce, Buenos Aires, 2015.

  • 35.

    Richard Wolin: «The Disoriented Left: A Critique of Left Schmittianism» em R. Wolin: The Frankfurt School Revisited, Routledge, Nova York-Londres, 2006, p. 251.

  • 36.

    A. Kalyvas: Democracy and the Politics of the Extraordinary: Max Weber, Carl Schmitt, and Hannah Arendt, Cambridge University Press, Cambridge, 2008, p. 299.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Junho 2017, ISSN: 0251-3552


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