Artículo
NUSO Nº Setembro 2013

O Sul chega ao Norte? Comércio internacional, regulação e seus desafios atuais

O sistema econômico internacional tem passado por importantes transformações na última década. A Organização Mundial do Comércio (OMC), foco de tensões desde a sua criação, passou de um espaço de dominação para um espaço de questionamento por países em desenvolvimento e de consolidação de suas agendas. Como essa organização se redefine atualmente, em um cenário de turbulências, e os desafios que o seu novo diretor-geral encontra são objeto de análise e contextualização neste artigo.

O Sul chega ao Norte? Comércio internacional, regulação e seus desafios atuais

Introdução

Alguns acontecimentos da última década inverteram a lógica do pós-Segunda Guerra Mundial no sistema econômico internacional: em 2001, os BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China)1 foram identificados como as economias emergentes cuja economia conjunta superaria a dos países desenvolvidos em 2050; neste mesmo ano, a Organização Mundial do Comércio (OMC) lançou em Doha a Rodada do Desenvolvimento; em 2009, o G-7 cedeu espaço ao G-20 como fórum para coordenação dos assuntos financeiros em âmbito global. Esses três momentos, selecionados propositadamente, evidenciam que novos países passaram a integrar o núcleo – até então quase intacto – de decisões do sistema econômico internacional. O Brasil faz parte deste novo seleto grupo, e a recente eleição do embaixador brasileiro ao cargo de diretor-geral da OMC, o mais alto posto desta organização, é uma evidência deste processo. Esse cenário, contudo, torna-se obscuro quando contextualizado no âmbito da aguda crise por que passam o sistema financeiro e o comércio mundial2. Uma crise que afetou as economias centrais mais fortemente, deslegitimando em grande medida padrões de condução de suas políticas econômicas e sua estrutura regulatória, mas ainda ameaça e aterroriza economias como as do Brasil e da América do Sul.

Governança no sistema de comércio internacional: o legado e sua reinvenção

A OMC é, hoje, a única organização multilateral com estrutura institucional para desenvolver sua governança no sistema de comércio internacional. Contudo, a organização sofre de um estigma histórico do «clube dos ricos» da era GATT – o Acordo Geral de Tarifas e Comércio3. Foram os interesses mútuos e as necessidades econômicas de Estados Unidos, França e Inglaterra que levaram à negociação do GATT, em 1947, e sustentaram a sua dinâmica nas cinco décadas seguintes.

Por sua vez, os países em desenvolvimento trabalharam em agendas paralelas e com vistas a marginalmente influenciar a regulamentação multilateral: seja com o reconhecimento de suas assimetrias e a incorporação de regras de tratamento especial e diferenciado4, seja com a Cláusula de Habilitação5 para favorecer a integração de seus mercados. Estas foram conquistas das décadas de 1960 e 1970, que gradualmente perderam sua força no sistema de comércio internacional.

A criação da OMC, em 1994, deu-se num contexto de disseminação de políticas neoliberais e do fortalecimento de um discurso institucionalista que apontavam para o potencial transformador das organizações internacionais, o que favoreceu a exponencial expansão do número de membros do sistema multilateral de comércio. Isso significou, naturalmente, a inclusão de outras economias do Sul, fossem elas egressas do regime comunista ou ex-colônias que ainda estavam à margem do sistema multilateral: enquanto na época de criação do GATT eram apenas 23 países participando nas negociações, na Rodada Uruguai, de 1986 a 1994, este número tinha se elevado para 123; e, agora em 2013, a OMC soma 159 membros. Isso fez com que a geometria política do sistema multilateral do comércio fosse modificada aos poucos.

No entanto, a criação da OMC trouxe também a expansão dos temas regulados, que passaram a incluir questões de interesse dos países centrais não exclusivamente ligadas ao comércio. A expansão foi interpretada pelos países em desenvolvimento como captura da OMC pela agenda dos países centrais do sistema econômico internacional. Fenômeno esse que parecia ser reforçado, nos anos seguintes à criação da organização, com a propositura da negociação dos chamados novos temas: padrões trabalhistas, compras governamentais, investimentos, meio ambiente, facilitação ao comércio e concorrência.

A resistência concertada entre os países em desenvolvimento, no âmbito da OMC, porém, esvaziou a agenda dos novos temas e levou à formulação da Rodada de Negociações de Doha em torno do objetivo central do desenvolvimento. Ao mesmo tempo, os países em desenvolvimento, especialmente as grandes economias emergentes, passaram a utilizar o recém-criado Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da OMC para obter importantes vitórias e influenciar a modificação de determinadas políticas comerciais dos países centrais danosas a seus interesses6. Finalmente, a pressão pela participação de representantes da sociedade civil na OMC levou à modificação de algumas práticas institucionais, combatendo parte do déficit democrático identificado na OMC – isso se refletiu na criação de fóruns permanentes, como o fórum público, na abertura das audiências dos mecanismos de solução de controvérsias e na instauração de vários canais que favorecem a transparência dos documentos e registros da OMC.

Após estes quase vinte anos, a OMC se consolidou como instituição e ampliou significativamente o grupo dos agentes que dela participam e por ela se interessam. Nesse aspecto, a criação da OMC passou a ser entendida como um notável exemplo do processo de institucionalização de formas de cooperação e coordenação no âmbito global.

O inimigo que mora ao lado

Nem bem tais avanços institucionais foram celebrados no sistema multilateral de comércio, este começou a ser desafiado logo no início dos anos 1990 com a criação de uma série de tratativas regionais e bilaterais. Alega-se que esse foi o processo alternativo para consolidar a agenda dos «novos temas de comércio» não consensuada na Rodada Uruguai e esvaziada no processo de consolidação da Rodada Doha. Uma série de compromissos mais rígidos ou para além da OMC foram incorporados nestas tratativas, com a justificativa de alcance de maior liberalização do comércio7.

Este processo alternativo ao sistema multilateral tem recebido um número cada vez maior de adeptos. Se antes tinha o seu epicentro nos EUA e na União Europeia, hoje chega em altos números a países em desenvolvimento, do porte do Chile e da Coreia, mas também da China e da Índia. A base da OMC registra 546 notificações de Acordos Regionais de Comércio (ARC), calculando que aproximadamente 354 deles estejam em vigor8. Os ARC passaram a definir o que se consagrou na literatura especializada como hubs regulatórios, ou seja, centros de definição de padrões regulatórios que passam a influenciar outras negociações bilaterais, a própria regulamentação multilateral do comércio na OMC ou até mesmo os sistemas legais e as políticas domésticas de cada país9.

O Brasil – a partir do espaço do Mercosul – tem procurado se afastar desta tendência, focando-se em acordos Sul-Sul. No entanto, seu isolamento nesta estratégia tem sido cada vez maior, inclusive na própria América Latina. Muitos países da região assumiram os ARC como espaços para melhor acesso a mercados em economias centrais ou mesmo economias emergentes e também como forma de aproveitar a medida que lhes restava como poder de barganha10. Exemplos notáveis nesta estratégia são Chile, Colômbia, Peru e Costa Rica.

Este contraponto permite notar que o fortalecimento do discurso de maior autonomia e por mecanismos de correção dos países em desenvolvimento migrou para a OMC, ao passo que o avanço regulatório e as atenções políticas têm-se direcionado para estas outras centenas de iniciativas bilaterais que cada vez mais passam a se plurilateralizar11.

A mudança por dentro é possível?

A eleição do brasileiro Roberto Azevêdo ao cargo de diretor-geral pode ser entendida como o último evento desse processo transformativo. Longe de ser um processo definitivo, no entanto, a eleição ocorre em um dos momentos mais delicados da organização. Azevêdo enfrenta um desafio tríplice: garantir a manutenção da relevância da OMC, ameaçada pelo poder desagregador da multiplicação de ARC; restabelecer o interesse dos países desenvolvidos pelo fórum de negociação multilateral, demonstrando ser efetivamente um representante da OMC e não do Brasil; e responder, ao mesmo tempo, aos anseios dos países em desenvolvimento, maioria do sistema e a base responsável por sua eleição.

A cristalização e o esvaziamento da pauta negociadora em torno das questões do desenvolvimento, assim como a incapacidade dos membros da OMC de chegar a um compromisso, levaram a uma desconexão entre os interesses e as necessidades do comércio internacional e o mandato de Doha. O novo diretor-geral deverá conseguir encontrar uma «solução honrosa» para Doha e incluir na agenda de negociação da OMC os «novos temas» que passaram a ser de interesse não mais apenas de países centrais, mas também de grandes economias emergentes como o Brasil: câmbio, mudanças climáticas, cadeias globais de valor, padrões privados, etc. Não apenas a coordenação sobre estes temas se tornaram prementes no atual cenário econômico, mas a OMC também assumiu o papel de lócus privilegiado pelos países em desenvolvimento, com destaque para o Brasil.

Enquanto diretor-geral proveniente de um país em desenvolvimento, Azevêdo terá o desafio de superar o impasse gerado na última, e única, vez em que um representante de um países em desenvolvimento esteve sozinho à frente da OMC12 e estabelecer uma agenda comum que evite o embate frontal entre interesses do Sul e do Norte que possam levar à inviabilização da organização. O que está em jogo não é apenas a capacidade de um diplomata brasileiro de gerir uma das mais relevantes organizações internacionais, mas também o destino e a orientação futura da OMC e o seu papel na governança do sistema de comércio internacional.

  • 1. Michelle Ratton Sanchez Badin: professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Direito fgv).Daniel Ramos: advogado, é doutorando em co-tutela pela Universidade de São Paulo e Université Paris i Panthéon-Sorbonne.Palavras-chave: sistema multilateral, acordos regionais de comércio (arc), países em desenvolvimento, Organização Mundial do Comércio (omc), Brasil.. Em 2010, a África do Sul foi integrada ao agrupamento, formando o brics.
  • 2. A crise financeira global de 2008 causou uma recessão de cerca de 2% do pib mundial, reduzindo drasticamente a liquidez dos mercados financeiros (-40% entre 2008 e 2009) e levando um adicional de 30 milhões de pessoas ao desemprego. Esses efeitos macroeconômicos levaram à maior queda do fluxo de comércio global (-15% entre 2008 e 2009) dos últimos 80 anos e à imposição de barreiras tarifárias e não-tarifárias por muitos países que buscaram proteger seus mercados domésticos fragilizados. Considera-se, no entanto, que a estrutura da omc foi um dos importantes instrumentos para se evitar «guerras comerciais» nos moldes do que ocorreu na Grande Recessão da década de 1930. V. unctad: International Trade After the Economic Crisis: Challenges and New Opportunities, Organização das Nações Unidas, Genebra, 2010.
  • 3. O gatt derivou da negociação para a Organização Internacional do Comércio (oic), concebida como a organização responsável por regular o comércio no pós-guerra, formando, ao lado das organizações de Bretton Woods (Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional), a estrutura de governança econômica global.
  • 4. Alguns dispositivos do gatt estabelecem prerrogativas diferenciadas aos países em desenvolvimento, incluindo a previsão de que os países centrais não exigiriam concessões similares nas negociações multilaterais, o direito de países em desenvolvimento de restringirem a importação para manter sua indústria doméstica ou auxiliar no equilíbrio de seu balanço de pagamentos e a necessidade de adoção de medidas para diversificar a produção e exportação de países em desenvolvimento dependentes em demasia de commodities básicas.
  • 5. A Cláusula de Habilitação, estabelecida em 1979 durante a Rodada de Tóquio, é uma derrogação do princípio da nação mais favorecida em favor de países em desenvolvimento, permitindo, de um lado, que países desenvolvidos fornecessem preferências tarifárias unilaterais a países em desenvolvimento e, de outro lado, que países em desenvolvimento estabelecessem arranjos preferenciais entre si, sem se submeter aos requisitos do artigo xxiv do gatt.
  • 6. O Brasil é um dos grandes expoentes dessa conquista por parte dos países em desenvolvimento na omc, tendo obtido importantes vitórias em disputas envolvendo políticas de subsídios no setor agrícola e de aviação, abuso na aplicação de direitos antidumping e outras práticas protecionistas.
  • 7. omc: World Trade Report 2011: The wto and Preferential Trade Agreements: From Co-Existence to Coherence, omc, 2011, disponível em www.wto.org/english/res_e/reser_e/wtr_e.htm, acessado em 30/6/2013.
  • 8. «Regional Trade Agreements» em World Trade Organization, www.wto.org/english/tratop_e/region_e/region_e.htm, acessado em 30/6/2013.
  • 9. Para análises de alguns destes hubs e suas tendências regulatórias, assim como influências em negociações posteriores, v. Ivan Thiago Machado Oliveira e M.R. Sanchez Badin (orgs.): Tendências regulatórias nos acordos preferenciais de comércio no século xxi: os casos de eua, União Europeia, China e Índia, ipea, Brasília, 2013.
  • 10. Petros C. Mavroidis: «If I Don’t Do It, Somebody Else Will (Or Won’t)» em Journal of World Trade vol. 40 No 1, 2006, pp. 187-214.
  • 11. Exemplos importantes são as iniciativas do Transpacific Partnership (tpp) e do Transatlantic Trade and Investment Partnership (ttip), acordos conhecidos como megaregionals que pretendem criar, respectivamente, marcos regulatórios abrangentes para o comércio entre eua e países do Pacífico e eua e União Europeia.
  • 12. A eleição para diretor-geral em 1999 foi marcada pelo profundo impasse entre países centrais e periféricos, levando ao mandato repartido entre Supachai Panitchpakdi da Tailândia e Michael Moore, da Nova Zelândia.
Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Setembro 2013, ISSN: 0251-3552


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