Artículo
NUSO Nº Outubro 2007

O passo seguinte. Do apoio aos pobres à inclusâo produtiva

Tradicionalmente, a desigualdade foi vista como um problema de distribuição injusta. Hoje, vemos com mais clareza que se trata de um processo mais amplo de organização econômica. Na realidade, vivemos numa impressionante economia do desperdício, de mão-de-obra, das nossas poupanças desviadas para atividades especulativas, do conhecimento tecnológico. Avançamos muito na organização do andar de cima, da política para as classes alta e média, da participação do mundo empresarial, da estabilização da macroeconomia. Mas nenhum país se estabiliza quando deixa de lado uma imensa massa de pobres e dilapida os seus recursos.

O passo seguinte. Do apoio aos pobres à inclusâo produtiva

Qualquer subestimação das políticas sociais do governo Lula se choca com fatos, hoje bastante claros e comprovados. O carro-chefe é sem dúvida o Bolsa-Família, que permite que 11 milhões de famílias, cerca de 50 milhões de pessoas, recebam pela primeira vez um apoio significativo. Este apoio, de R$ 72 em média e de R$ 112 no máximo, pode parecer pequeno. No entanto, para quem tem pouquíssimo representa uma diferença gigantesca, freqüentemente a diferença entre crianças que passam ou não passam fome. Mas também houve um fortíssimo avanço no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que passou de R$ 2 bilhões para R$ 12 bilhões de recursos, favorecendo cerca de 3 milhões de famílias. Outra contribuição fundamental foi o avanço do salário mínimo, cuja capacidade real de compra durante a primeira gestão do governo Lula aumentou em cerca de 45%. Isto abrange uma imensa massa de trabalhadores, tanto os que recebem o salário mínimo como os que têm salários próximos e que se viram reajustados. Como o salário mínimo reajusta as aposentadorias do sistema público, milhões de aposentados passaram a receber uma quantia um pouco mais digna. Podemos acrescentar o fato de que foram criados cerca de 11 milhões de empregos formais, muitos deles consistindo na formalização de empregos informais, mas ainda assim gerando uma dinâmica de renda para os segmentos menos privilegiados da sociedade.

Não é o caso aqui de fazer um balanço das políticas sociais do presente governo, mas qualquer discussão das políticas que temos pela frente deve partir desse imenso avanço que representa a ruptura de séculos de inércia, neste país que tem a desigualdade como sua marca maior. Interessa-nos aqui o desafio da inclusão produtiva, o «passo seguinte» do processo, cuja necessidade é claramente apresentada no próprio programa do governo.

A economia do desperdício

As notas que se seguem referem-se a alguns aspectos deste desafio da inclusão produtiva. Tradicionalmente, a desigualdade foi vista como um problema de distribuição injusta. Hoje, vemos com mais clareza que se trata de um processo mais amplo de organização econômica. No conjunto, não se trata apenas de um problema ético de acesso aos bens, e sim da imensa oportunidade perdida ao se excluir dezenas de milhões de pessoas de uma contribuição produtiva real. Na realidade, vivemos numa impressionante economia do desperdício.

O desperdício da capacidade de trabalho. A mão-de-obra constitui um primeiro fator óbvio de desperdício. Tomando o ano de 2004 como referência, temos 180 milhões de habitantes. Destes, 121 milhões estão em idade ativa, entre 15 e 64 anos de idade, pelo critério internacional. Na população economicamente ativa (PEA), temos 93 milhões de pessoas, o que já aponta para uma subutilização significativa. As estatísticas do emprego, por sua vez, mostram que temos neste ano apenas 27 milhões de pessoas formalmente empregadas no setor privado, com carteira assinada. Podemos acrescentar os 7 milhões de funcionários públicos do país, e chegamos a 34 milhões. Ainda assim, estamos longe da conta. O que fazem os outros? Temos empresários, sem dúvida, bem como uma massa classificada como «autônomos», cerca de 15 milhões de desempregados, e uma ampla massa classificada no conceito vago de «informais», avaliados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 51% da PEA. O estudo sublinha que «a existência dessa parcela de trabalhadores à margem do sistema não pode em nenhuma hipótese ser encarada como uma solução para o mercado» (IPEA, p. 346). Essa «parcela» representa a metade do país.

O fato essencial para nós é que o modelo atual subutiliza a meta das capacidades produtivas do país. E imaginar que o crescimento centrado em empresas transnacionais, grandes extensões de soja (200 hectares, para gerar um emprego), ou ainda numa hipotética expansão do emprego público permitirá absorver esta mão-de-obra não é realista. Evoluir para formas alternativas de organização torna-se simplesmente necessário.

Assim, o drama da desigualdade que vimos acima não constitui apenas um problema de distribuição mais justo da renda e da riqueza: envolve a inclusão produtiva decente da maioria da população desempregada, subempregada ou encurralada nos diversos tipos de atividades informais.

O desperdício de recursos financeiros. Muitos dizem que não há recursos para empregar esta gente. Tomando um exemplo prático, as estimativas tanto da Organização Mundial da Saúde (OMS) como do Sistema Único de Saúde (SUS) indicam que R$ 1 gasto em saneamento básico permite reduzir os gastos em algo entre R$ 4 e R$ 5. Ou seja, são atividades que não absorvem recursos. Pelo contrário, os liberam e multiplicam. Dizer que não há dinheiro para ações que economizam dinheiro é real, mas absurdo. A ponte entre os dois momentos se faz através de crédito, mobilizando de forma produtiva as poupanças dos que têm excedentes em proveito de quem tem iniciativas a financiar.

As taxas de juros não são coisas de especialista. Basta comparar o quanto as instituições de intermediação financeira remuneram as nossas poupanças, e o quanto elas cobram quando precisamos de um crédito. Isso é realizado periodicamente por um estudo da Associação Nacional de Executivos em Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac). Trata-se, portanto, de pessoas comedidas. Mas os dados não são nada comedidos. A taxa de juros média geral para pessoa física em fevereiro de 2007 é de 7,38% ao mês, ou seja 135,1% ao ano. A taxa de juros média geral para pessoa jurídica no mesmo período é de 4,19% ao mês, ou seja 63,65% ao ano. O estudo lembra que a taxa básica de juros Selic foi reduzida de 19,75% em setembro de 2005 para 13,00% em fevereiro de 2007. No mesmo período, a taxa de juros média para pessoa física foi reduzida em 6,11 pontos percentuais (de 141,12% ao ano em setembro de 2005 para 135,01% ao ano em fevereiro de 2007). Para pessoa jurídica, a redução foi de 4,58% (de 68,23% ao ano em setembro de 2005 para 63,65% ao ano em fevereiro de 2007) (Anefac).

O documento da Anefac é elaborado com cuidado, apresentando em detalhe a metodologia, os diversos tipos de juros, os tipos de instituições de intermediação financeira, o tipo de tomador, e assim por diante. No conjunto, o fato é que houve uma queda muito significativa da taxa básica fixada pelo governo, mas as variações nos juros para tomadores finais são ridículas. Ainda assim, o volume de crédito está se expandindo, mas com custos absolutamente indecentes para os tomadores.

O estudo lembra ainda: «As taxas de juros são livres e as mesmas são estipuladas pela própria instituição financeira, não existindo assim qualquer controle de preços ou tetos pelos valores cobrados» (Anefac, p. 13). O estudo recomenda que os tomadores pesquisem a taxa de juros e «demais acréscimos», pois haveria «expressivas variações» entre as diversas instituições financeiras. Na realidade, as «expressivas variações» referem-se a diferenças ridículas quando consideramos os números e os comparamos com as taxas praticadas no resto do mundo. Não há como não sentir que, ante a cartelização do setor, não temos escolha. E quando não há escolha, não estamos mais enfrentando intermediários financeiros, e sim atravessadores.

Nas recomendações, a situação real transparece: «Se possível, adie suas compras para juntar o dinheiro e comprar o mesmo à vista, evitando os juros». O fecho é filosófico e resume o que enfrentamos: «O crédito foi feito para você realizar seus sonhos, não para tirar seu sono». Na realidade, profissionais da área recomendando que não utilizemos o crédito constitui uma ironia, pois os intermediários financeiros trabalham com dinheiro que é do público e, por isso, precisam de uma carta patente do Banco Central para funcionar. A generalização da figura do pedágio financeiro reduz drasticamente a capacidade de todos os outros agentes de dinamizar atividades econômicas, gerando outra área de imensa subutilização de fatores.

Em outros termos, a desigualdade aqui não é apenas uma herança: trata-se de um processo em curso, em que o sistema de intermediação financeira permite a descapitalização das empresas, das comunidades e das famílias, gerando lucros absolutamente indecentes no restrito clube de intermediários financeiros e de grandes aplicadores, e reforçando os desequilíbrios que temos de corrigir.

O desperdício dos conhecimentos tecnológicos. Um terceiro eixo de subutilização de fatores está ligado às tecnologias. Sabemos que estamos em plena revolução tecnológica, que a economia do conhecimento está despontando e que, portanto, o acesso à informação e à tecnologia tornou-se essencial para o desenvolvimento de qualquer atividade moderna.

Joseph Stiglitz é outro especialista insuspeito de qualquer extremismo. Mas frente à corrida histérica por trancar todo e qualquer conhecimento por meio de patentes, copyrights, regulamentações e proteção de direitos intelectuais, em geral ele constata que estamos dificultando o acesso a informações que são de utilidade geral. A importância da tomada de posição de Stiglitz vem do fato de sua condição de ex-economista chefe do Banco Mundial, de prêmio Nobel de Economia e da visibilidade que o seu posicionamento tem neste debate. Numa era caracterizada pela centralidade do conhecimento nos processos econômicos, existem patentes que imobilizam áreas por 20 anos, copyrights que duram mais de 70 anos e prazos que, dado o ritmo das inovações, constituem autênticos monopólios e geram outro tipo de pedágio. Escreve Stiglitz (2006):

A inovação está no coração do sucesso de uma economia moderna. A questão é como melhor promovê-la. O mundo desenvolvido arquitetou cuidadosamente leis que dão aos inovadores um direito exclusivo às suas inovações e aos lucros que delas fluem. Mas a que preço? Há um sentimento crescente de que algo está errado com o sistema que governa a propriedade intelectual. O receio é que o foco nos lucros para as corporações ricas represente uma sentença de morte para os muito pobres no mundo em desenvolvimento.

Por exemplo, explica Stiglitz, «isto é particularmente verdadeiro quando patentes tomam o que era previamente de domínio público e o ‘privatizam’ – o que os juristas da Propriedade Intelectual têm chamado de novo ‘enclosure movement’. Patentes sobre o arroz Basmati (que os indianos pensavam conhecer havia centenas de anos) ou sobre as propriedades curativas do turmeric (gengibre) constituem bons exemplos». Segundo o autor, «os países em desenvolvimento são mais pobres não só porque têm menos recursos, mas porque há um hiato em conhecimento. Por isso, o acesso ao conhecimento é tão importante» (2006).

É uma tomada de posição importante, nesta época em que é de bom tom respeitar a propriedade intelectual, quando estamos essencialmente respeitando a sua monopolização. Precisamos de regras mais flexíveis e mais inteligentes, e sobretudo reduzir os prazos absurdos de décadas que extrapolam radicalmente o tempo necessário para uma empresa recuperar os seus investimentos sobre novas tecnologias. Quanto a patentear bens naturais de países pobres para em seguida cobrar royalties sobre produções tradicionais, já é simplesmente pirataria. E os piratas, neste caso, são corporações que se pretendem respeitáveis.

O resultado prático é que perdemos a capacidade de aproveitar os imensos avanços do conhecimento que as novas tecnologias permitem, pagando pedágios desnecessários em cascata sobre avanços que em geral são obra de um processo social até que uma grande empresa compre os direitos. Trata-se aqui de mais um fator de concentração de renda e de riqueza, e de reprodução das dinâmicas diretamente ligadas à problemática ambiental: as pessoas esquecem, por exemplo, que por falta de outros recursos quase a metade da população mundial ainda cozinha com lenha. A curto prazo, os pedágios cobrados sobre o conhecimento geram lucros para as grandes empresas. A médio prazo, no entanto, estaremos todos em dificuldades.

Os desperdícios por má-gestão. Outro nível de subutilização dos fatores manifesta-se sob a forma de desperdício organizacional. O Fundo Monetário Internacional (FMI) publica um estudo no sentido de se «cair na real» sobre o financiamento da saúde, que constitui um bom exemplo para o nosso argumento. Às vezes é bastante útil acompanhar publicações do FMI, pois são insuspeitas de qualquer visão progressista (Schieber/Fleisher/Gottret).

Os dados são duros. Primeiro, o artigo lembra que já passamos de 25 milhões de mortes provocadas pela AIDS. Essas mortes não aparecem em nenhuma manchete, mas as perdas de capacidade de trabalho, por simples redução da população ativa, e os custos de tratamentos e hospitalizações são imensos. Assim, o desequilíbrio entre os avanços da produção comercial e os atrasos nas políticas sociais gera altos custos para a sociedade como um todo.

O artigo lembra que «globalmente, morrem 5.000 pessoas por dia de tuberculose, apesar de ser ela passível de tratamento e prevenção (...) A realidade é que os países em desenvolvimento continuam a fazer face a 90% da carga global das doenças, mas contam com apenas 12% do gasto global com saúde». Isto traduzido em gastos por pessoa nos dá o seguinte: «O gasto total per capita é de US$ 22 em países de baixa renda, e acima de US$ 3.000 nos países de alta renda». O quadro é impressionante: Alguns comentários: para já, os US$ 5.989 de bens e serviços produzidos por pessoa no mundo seriam amplamente suficientes para uma vida confortável e digna para todos. Alguns claramente são mais dignos que os outros. A distribuição mundial que aparece na primeira coluna é patética. Na segunda coluna, vemos que há uma correlação inversa rigorosa entre quem mais precisa de apoio de saúde, pois é mais atingido, e quem com ela mais gasta. A terceira coluna mostra o peso impressionante que a saúde atingiu (trata-se aqui dos gastos totais com saúde, privados e públicos): 6% no âmbito mundial, e quase 11% do PIB dos países ricos. Na última coluna, uma visão particularmente interessante: quanto mais ricos os países, maior a participação do setor público nos gastos totais de saúde. A progressão acompanha rigorosamente a renda. A recomendação que resulta é prática: «Countries should also build up their ability to raise money through taxes» [Os países deveriam incrementar a sua capacidade de levantar dinheiro por meio de impostos]. Coloquei no original porque não é todo dia que lemos isto em fontes do FMI. A visão é correta: é preciso, sim, desenvolver o setor público e lutar por maior eficiência nos gastos, modernizando e democratizando a gestão.

A tabela abaixo é igualmente interessante, pois mostra justamente que quanto mais pobre o país, mais fraca é a base financeira pública: nos países de renda baixa, a parte do PIB que cabe ao governo central é de 17,7% , elevando-se numa progressão regular à medida que chegamos aos países de alta renda. Os países ricos também falam mal do governo, mas não são bobos (note-se que se trata dos gastos do governo central apenas pois os gastos públicos totais são bem mais amplos).

O estudo lembra ainda dois pontos importantes. Primeiro, o gasto direto com saúde, ou seja, a forma mais privada em que o cidadão paga diretamente os gastos no sistema out-of-pocket (tirando do bolso) constitui «uma das mais regressivas e ineficientes fontes de financiamento do setor da saúde para os pobres, pois lhes nega os benefícios de redistribuição de renda, repartição de riscos e proteção financeira». No entanto, nos países de baixa renda, 60% dos gastos totais com saúde se dão nesta forma, contra apenas 20% nos países ricos. Segundo, os diversos planos privados empresariais são ineficientes em países onde a massa de trabalhadores informais é grande.

As áreas sociais, e não só a saúde, precisam de mecanismos públicos para funcionar, acrescentando-se forte controle e participação da comunidade. Fazer dinheiro com saúde, na realidade, equivale ao que conhecemos como «indústria da doença», e não é eficiente em lugar nenhum, a não ser para minorias de alta renda. Fazer dinheiro com educação, na linha da «indústria do diploma», tampouco resolve. Nas áreas sociais precisamos recuperar a capacidade de desenvolver políticas públicas competentes, com forte apoio das organizações da sociedade civil. Como as políticas sociais com fins lucrativos só funcionam para quem tem capacidade de compra, o resultado é um imenso desperdício de recursos e o aprofundamento das desigualdades.

Enfocamos neste ponto quatro formas de desperdício social: as bobagens simplificadoras que reduziram a inovação social a um Estado mínimo e a uma economia baseada no vale-tudo, que chamamos educadamente de «mercado», não chegam perto do sistema racional de tomada de decisão que um desenvolvimento sustentável e equilibrado exige. Precisamos ir além.

Os processos de decisão: rumos da racionalidade

Felizmente, há cada vez menos gente que acredita em simplificações, sejam elas acadêmicas ou ideológicas. Há uma forte orientação para se buscar valores, bom senso e um pragmatismo voltado para resultados efetivos em termos de qualidade de vida das pessoas e sustentabilidade do processo. E há um valor relativamente novo, que está gradualmente ocupando espaço: a compreensão de que o avanço de uns em detrimento dos outros não resolve grande coisa. A maré tem de levantar todos os barcos. Estamos evoluindo do paradigma da competição para o paradigma da colaboração, da guerra burra de todos contra todos para políticas inteligentes. Não há como não lembrar que a fase mais próspera do capitalismo foi durante os trinta «anos de ouro» após a Segunda Guerra Mundial, quando se seguiram políticas redistributivas de renda e de apoio social generalizado às populações. O bem-estar econômico e social de todos deixa a todos melhor, e não só os pobres. Dos ricos, o que se está exigindo cada vez mais não é bondade: é inteligência.

O que vimos na primeira parte deste pequeno estudo é que se generalizam claramente dois grandes dramas planetários, que são a degradação do meio-ambiente e a desigualdade. Na segunda parte, identificamos os gigantescos desperdícios de recursos que apontam para os imensos ganhos que podemos gerar com formas mais inteligentes e mais colaborativas de gestão. Nesta terceira parte, apontamos algumas alternativas. Trata-se de mobilizar os recursos subutilizados em função dos dois objetivos principais: o ambiental e o social.

Medir os resultados reais. Voltando ao estudo acima citado do FMI, é interessante constatar a que ponto os avanços dependem muito mais de formas de organização do que propriamente de grandes investimentos: «O mundo em desenvolvimento teve reduções significativas de mortalidade infantil nos últimos 50 anos. Estes ganhos se devem essencialmente à melhor nutrição, intervenções de saúde pública ligadas à água e ao saneamento e avanços médicos, tais como o uso de vacinas e antibióticos» (Schieber/Fleisher/Gottret). Os grandes avanços constatados nesta área resultam, portanto, essencialmente de intervenções preventivas de baixo custo, como acesso aos cuidados primários de saúde, alimentação equilibrada, água limpa e vacinas. Com exceção talvez dos antibióticos, não é nada que envolva grandes inovações tecnológicas complexas ou equipamentos sofisticados, mas que exige maior densidade organizacional na base da sociedade.

Transformado em cálculo econômico, na linha da metodologia tradicional de avaliação do PIB, este tipo de medicina preventiva é péssimo: evitar doenças de forma barata não aumenta o PIB. Se temos muitos doentes, intervenções cirúrgicas e compra de muitos medicamentos, aí sim aumenta o PIB, que é calculado sobre o valor comercial dos produtos vendidos. Para uma empresa privada de prestação de serviços de saúde, privá-la de doentes significa, afinal, privá-la de clientes.

Isto significa simplesmente que, na forma como avaliamos o sucesso dos nossos esforços econômicos, contabilizamos o valor dos meios despendidos, e chamamos isto de «produto». Na realidade, o produto que nos interessa não é gastar mais com medicamentos e hospitais, e sim não ficarmos doentes. Em outros termos, guiamo-nos pelos meios, e não pelos fins. Estamos calculando o valor comercial de bens e serviços (output), e não os resultados em termos de qualidade de vida (outcome).

O absurdo desta forma de contabilidade é cada vez mais patente, e se estende a outras áreas. Liquidar a vida nos mares (o chamado overfishing, ou sobrepesca) aparece como aumento do PIB, quando só contabiliza o que se extrai e não contabiliza a descapitalização planetária que resulta. Cortamos as nossas florestas, destruímos a camada orgânica do solo, liquidamos as reservas de petróleo, esgotamos os lençóis freáticos de água, e nada disto é contabilizado, a não ser como valor positivo no produto vendido, sem desconto dos custos ambientais. Em termos contábeis, o PIB é calculado de forma errada. Nenhuma empresa ou administração pública teria as suas contas aprovadas se não levasse em conta a redução de estoques. Viveret (2006) apresenta como simbólico o caso paradoxal do naufrágio do petroleiro Erika, que gerou imensos esforços de despoluição, contribuindo para o PIB. Uma praia limpa não contribui para o PIB, inclusive porque o lazer gratuito é considerado sem valor em termos econômicos, enquanto uma praia poluída gera grandes contratos e, portanto, preciosos pontos percentuais no PIB, que o político vai explorar devidamente como sucesso da sua gestão.

Como podemos avançar, se a nossa bússola, que orienta e avalia para onde vamos, aponta para uma direção errada? Hoje o bom-senso começa a ocupar algum espaço, com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das Nações Unidas, os indicadores de vida Calvert-Henderson e a própria mudança de orientação do Banco Mundial (BM), que antes contabilizava a exploração de petróleo como produto, e hoje a contabiliza como descapitalização.

O PIB não mede o bem-estar. Esta constatação de Jean Gadrey e de Jany-Catrice, autores de um excelente estudo sobre o estado da arte dos indicadores de riqueza (2006), é hoje de suma importância. Na realidade, o PIB mede o valor dos bens e serviços comerciais produzidos durante um ano. Nada diz sobre a riqueza acumulada numa sociedade, nem se o PIB elevado está sendo atingido à custa da venda do capital natural (o petróleo dos países produtores, por exemplo), nem sobre a queixa da dona de casa que constata que quem plantou e colheu um pé de alface contribuiu para o PIB do país, enquanto ela que comprou, lavou, picou e serviu a salada não contribuiu com nada. O PIB se interessa apenas pelo equivalente monetário de um grupo restrito de atividades.

O problema não consiste necessariamente em refutar os conceitos adotados nos cálculos do PIB (existe imensa bibliografia a respeito), e sim, uma vez constatado o grupo limitado de atividades que esta metodologia contabiliza, buscar metodologias mais adequadas e completas. Gadrey e Jany-Catrice (2006) realizam um excelente trabalho de revisão das diferentes metodologias disponíveis, dos tipos de indicadores, do potencial que hoje se apresenta para quem quer saber não apenas se o PIB cresceu, mas se estamos vivendo melhor. Encontramos aqui bem ordenados os indicadores objetivos e os subjetivos, os balanços detalhados e os indicadores sintéticos, as avaliações traduzidas em valores monetários e as que se expressam em volumes físicos, os indicadores de produção (outputs) e de resultados (outcomes), a diferenciação de números que apresentam «o que» cresceu na economia, e os que indicam «quem» se beneficiou do processo.

Retrospectivamente, as mudanças são extremamente fortes. Nos anos 1980, com Ronald Reagan nos Estados Unidos e Margaret Thatcher na Inglaterra, o social saiu do mapa, tudo foi concentrado nos resultados econômicos e financeiros. Na década de 1990, com o IDH do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), assistimos a uma reviravolta, com a visão de que a economia deve servir ao bem-estar humano, e não o contrário. A partir daí, desenvolvem-se metodologias que avaliam o trabalho voluntário, o trabalho não remunerado doméstico, a destruição ou proteção do meio ambiente, o sentimento de insegurança gerado nos processos produtivos e a dilapidação dos recursos não renováveis. O leque de metodologias, a sua sofisticação e confiabilidade estão se tornando bastante impressionantes. Pela primeira vez, começamos a ter instrumentos que podem ser disponibilizados e que deverão permitir ao cidadão saber se o que está sendo feito corresponde às suas opções econômicas, sociais e ambientais. Vemos claramente como as medidas de utilidade empresarial (PIB) evoluem para medidas que avaliam os resultados práticos em termos de bem-estar das populações. Ou seja, pela primeira vez, estamos realmente medindo a utilidade social das nossas atividades. Uma sociedade onde a economia vai bem, mas o povo vai mal e o planeta é dilapidado, é evidentemente uma sociedade sem rumos.

Na realidade, gerar instrumentos que permitam à população avaliar o «progresso genuíno» e a sua qualidade de vida, o que Gadrey chama de «performance societal», tende a reequilibrar os critérios de decisão na sociedade. Uma população informada pode se tornar cidadã. A população desinformada, ou mal informada, como a que hoje temos, tende a ficar apenas angustiada.

Portanto, criar instrumentos de medida que nos permitam saber para onde vamos já constitui um passo importante, de certa forma é a luz que ilumina o processo decisório, pois define os objetivos. Em outro nível, no entanto, vale à pena dar uma olhada na discussão sobre as formas de organização.

Democratizar o governo. Adotar medidas que nos permitam acompanhar o progresso real da sociedade e do planeta é necessário, mas não suficiente. Temos de assegurar que a sociedade tenha mais possibilidade de cobrar os resultados. As críticas ao tamanho do setor público constituem no geral uma solene bobagem. Nas palavras de um diretor da École Nationale d’Administration, a famosa ENA, melhorar a produtividade do setor público constitui a melhor maneira de melhorar a produtividade sistêmica de toda a sociedade. O Relatório Mundial sobre o Setor Público de 2005 das Nações Unidas mostra a evolução que houve a partir da visão tradicional da administração pública, baseada em obediência, controles rígidos e conceito de «autoridades», transitando por uma fase em que se buscou uma gestão mais empresarial, na linha do new public management, que nos deu, por exemplo, o conceito de «gestor da cidade» no lugar do prefeito, e desembocando agora na visão mais moderna que o relatório chama de «responsive governance».

O conceito é difícil de traduzir. A «governança» já foi incorporada ao nosso vocabulário, implicando que, no espaço público, a boa gestão se consegue por meio da articulação inteligente e equilibrada do conjunto dos atores interessados no desenvolvimento, os chamados stakeholders. O adjetivo responsive já é mais complicado, pois implica de maneira ampla uma gestão sensível e que sabe «responder», ou «corresponder» aos interesses que diferentes grupos manifestam, e supõe sistemas amplamente participativos, e em todo caso mais democráticos. É uma gestão onde o prefeito não dita o seu programa para a cidade, mas ajuda os cidadãos a desenvolver os programas que eles desejam. Podemos chamar isto de «governança participativa».

A evolução mais recente para o responsive governance está baseada numa visão mais pública, onde as chefias escutam melhor o cidadão, e onde a participação cidadã, através de processos mais democráticos, é a que assegura que os administradores serão mais eficientes, pois mais afinados com o que deles se deseja. É a diferença entre a eficiência autoritária por cima, e a eficiência democrática pela base. A eficiência é medida não só no resultado, mas no processo.

O novo modelo que emerge está essencialmente centrado numa visão mais democrática, com participação direta dos atores interessados, maior transparência, com forte abertura para as novas tecnologias da informação e comunicação, e soluções organizacionais para assegurar a interatividade entre governo e cidadania. A visão envolve sistemas de gestão do conhecimento mais sofisticados, com um papel importante do aproveitamento das novas tecnologias de informação e comunicação.

Para a nossa discussão no Brasil, estes pontos são muito importantes. Têm a virtude de ultrapassar visões saudosistas autoritárias e também a pseudo-modernização que colocava um «manager» onde antes tínhamos um político, resultando numa mudança cosmética por cima. É uma evolução que busca a construção de uma capacidade real de resolução de problemas através das pactuações necessárias com a sociedade realmente existente. Esta sistematização de tendências mundiais vem dar maior credibilidade aos que lutam pela reapropriação das políticas pela cidadania, na base da sociedade, em vez da troca de uma solução autoritária por outra.

Democratizar as corporações. Mas as transformações, evidentemente, não se limitam ao setor público. Está gradualmente se enraizando a idéia geral de que nenhuma corporação pode se limitar a maximizar os lucros, de que toda iniciativa que tem impacto social e ambiental tem de responder de certa forma aos interesses da sociedade em geral. Ou seja, as dimensões sociais e ambientais da atividade empresarial deixam de ser consideradas externalidades que a sociedade vai custear através dos impostos e do setor público, para se tornar um fator intrínseco da atividade econômica. Temos notáveis avanços nesta área a partir das metodologias do Instituto Ethos de Responsabilidade Empresarial. Não entraremos aqui no detalhe destas mudanças, sobre as quais está se desenvolvendo uma literatura impressionante. Para nós aqui, o essencial é constatar que não basta uma empresa desenvolver algumas atividades sociais para melhorar a imagem: é o próprio «negócio» da empresa que deve ser desenvolvido de maneira responsável. E tornou-se hoje essencial, com o peso político de que dispõem hoje as corporações, que elas contribuam para a construção de um arcabouço jurídico que facilite a gestão da sociedade em geral, indo além dos sistemas de lobbies que buscam torcer as regras do jogo a favor de interesses setoriais.

Podemos duvidar a que ponto interesses setoriais poderiam se interessar pelos objetivos mais amplos da sociedade. No entanto, a tendência nos parece inevitável, pois os ganhos sistêmicos são grandes, e as políticas atuais não se sustentam. Em termos práticos, temos de evoluir para a avaliação da produtividade sistêmica do território, em cada município ou por micro-regiões. Esta outra contabilidade incompleta, que permite que a empresa contabilize os seus lucros mas se desresponsabilize dos custos ambientais e sociais gerados pela mesma atividade, também precisa ser ultrapassada, e a visão sistêmica por território permite uma avaliação racional.

Assim, buscamos uma sociedade mais informada, para que possa participar, e com metodologias mais atualizadas e desagregadas do que as simples estatísticas do PIB. Mas também temos de trabalhar por instituições de Estado mais descentralizadas e transparentes, abertas para mecanismos participativos da sociedade civil. E o mundo empresarial tem de trazer o seu quinhão, contribuindo de maneira equilibrada para o econômico, o social e o ambiental, indo além da «cosmética» da marca, avançando para um comportamento efetivamente responsável.Reforçar a sociedade civil. No Brasil temos a sociedade civil de cima, a que se organiza, apóia ONG, protesta, escreve cartas aos jornais, e assim por diante. Enfim, participa, ainda que freqüentemente a ausência de sistemas racionais de informação leve a uma participação desencontrada. Estamos avançando rapidamente neste plano, o que nos abre caminho para processos mais democráticos. Mas também temos um andar de baixo na sociedade civil, onde estão os que formam os 51% de «economia informal» vistos acima, as vítimas da concentração de renda, os perdidos na noite das imensas periferias urbanas, os acampados nas beiras das estradas, os sem-terra, os sem-teto, sem internet, sem participação efetiva.

Eles estão abrindo caminhos, sem dúvida, e quem acompanha a sua realidade fica impressionado com a forma como conseguem tirar leite de pedra. Para esta massa, que podemos considerar no Brasil como formando a base de cerca de 100 milhões de pessoas, muito pouco se faz. Houve avanços indiscutíveis, com o Bolsa-Familia, elevação do salário mínimo, disseminação do micro-crédito, abertura de universidades e outras iniciativas extremamente importantes para um país que na realidade nunca olhou para baixo. Mas temos de ir além. Este é um desafio onde hoje existem numerosas propostas e insuficientes realizações. A realidade é que avançamos muito na organização do andar de cima, da política para as classes alta e média, da participação do mundo empresarial, da estabilização da macroeconomia. Mas nenhum país se estabiliza quando deixa de lado uma imensa massa de pobres e dilapida os seus recursos. Este é o desafio do momento. Apontamos brevemente aqui alguns rumos da mudança organizacional. Um outro mundo é sem dúvida possível, pois o que aprontamos até agora não é recomendável. É tempo de mostrarmos que outra gestão é viável.

Referências bibliográficas

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Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Outubro 2007, ISSN: 0251-3552


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