Artículo
NUSO Nº Dezembro 2009

O Mercosul na época de Lula e Kirchner: um balanço, seis anos depois

A chegada ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva e Néstor Kirchner, em 2003, implicou um relançamento do Mercosul. Esse relançamento teve uma dupla dimensão. Por um lado, foi proposto um aprofundamento da agenda da integração além dos aspectos comerciais previstos no Tratado de Assun¸ão. Por outro, foi traçada uma ampliação do bloco a outros países da região. Este artigo elabora um balanço a partir da premissa de que é necessária uma visão multidimensional, que não se limite à dimensão comercial e considere também outras áreas, particularmente as sociais e produtivas. A conclusão é um processo que mostra alguns avanços, mas também retrocessos.

O Mercosul na época de Lula e Kirchner: um balanço, seis anos depois

Introdução

Durante os primeiros anos da década dos 90, o Mercado Comum do Sul (Mercosul) foi considerado o processo de integração mais bem-sucedido da América Latina. Enraizado em uma crescente interdependência econômica e uma cooperação política cuja origem remonta-se aos acordos de integração aprovados pela Argentina e o Brasil na metade dos anos 80, o Mercosul logrou rápidos avanços em matéria comercial e se tornou um espaço de referência nas relações internacionais do Cone Sul. Apesar disso, os primeiros conflitos começaram a surgir a partir de 1996 e se aprofundaram com a crise econômica brasileira de 1998 e a depreciação do real. Esses fatores contribuíram para uma grande crise que revelou as deficiências do modelo adotado no Tratado de Assunção, assim como os problemas institucionais e as assimetrias existentes. A crise argentina de 2001 aprofundou as dificuldades do Mercosul e inclusive gerou retrocessos na integração regional1.

Apesar disso, com a chegada ao ao poder de Luiz Inácio Lula da Silva e de Néstor Kirchner, iniciou-se uma fase de relançamento do processo de integração regional. Ambos os líderes representavam uma transição para um modelo econômico menos comprometido com as propostas neoliberais que imperavam nos anos 90. Isto se manifestou numa série de iniciativas promovidas desde 2003 para relançar o Mercosul, procurando cumprir os objetivos ainda não atingidos. Mas também se somaram ideias para que o bloco regional superasse os déficits em temas sociais e de produção que de alguma forma eram vistos como responsáveis pela crise.

O processo de relançamento teve uma dupla dimensão. Por um lado, traçava um aprofundamento na agenda de integração regional apara avançar além das metas comerciais previstas no Tratado de Assunção. Por outro, propunha ampliar o espaço de integração, incluindo todos os países como membros associados ao bloco regional, e articular o Mercosul com um projeto mais amplo de integração na América do Sul. Este processo havia sido iniciado em 1993 com a proposta do então presidente brasileiro, Itamar Franco, de negociar um Acordo de Livre Comércio de América do Sul (ALCSA) e teve continuidade no governo de Fernando Henrique Cardoso, que convocou em 2000 a primeira Cúpula de Chefes de Estado e de Governo da América do Sul, o que levou à criação da Comunidade Sul-Americana de Nações (CSN), em 2004.

Após cinco anos do lançamento desta série de iniciativas, as avaliações são contraditórias2. Neste artigo, partimos da premissa de que a complexidade deste processo requer uma visão multidimensional. Essa complexidade é evidente quando observamos que foram realizados alguns avanços em matéria social, produtiva ou institucional, ao mesmo tempo em que existem objetivos da agenda comercial que ainda não se cumpriram. Como conseqüência, os estudos que avaliam sob uma perspectiva unidimensional o estado atual do Mercosul – e o processo de relançamento que começou em 2003 – não permitem obter uma visão abrangente da complexidade que o tema exige.

Lula, Kirchner e o relançamento do Mercosul

A aproximação entre a Argentina e o Brasil para relançar o Mercosul iniciou-se inclusive antes da chegada de Kirchner à presidência. Em janeiro de 2003, Lula reuniu-se com o então presidente argentino, Eduardo Duhalde, para discutir diversos temas de interesse bilateral. No comunicado à imprensa, estabeleceu-se uma série de princípios sobre a relação argentino-brasileira, especialmente sua ampliação temática. O documento também enfatizava que esse relacionamento seria a base para relançar o Mercosul e incluir o resto dos países sul-americanos no processo.

Posteriormente, em junho de 2003, Lula e Kirchner se encontraram Brasília, desta vez a fim de estabelecer mecanismos para esse relançamento. O resultado da reunião é o Documento de Brasília, no qual se reitera que a aliança estratégica entre as duas nações é fundamental para dar prosseguimento ao processo de integração. Nesse documento, considera-se essencial melhorar a qualidade da integração por meio de reformas nos âmbitos comercial e institucional, além do relacionamento externo do bloco, as dimensões social e produtiva e o melhoramento da infra-estrutura regional3. No encontro, os dois presidentes destacaram a convergência de valores e objetivos que impeliam seus governos e ressaltar que o Mercosul e a integração sul-americana deviam ter como meta associar crescimento, justiça social e dignidade dos cidadãos4.

Na cúpula do Mercosul realizada em Assunção em junho de 2003, foi aprovado o «Programa para a Consolidação da União Aduaneira e o Lançamento do Mercado Comum, Agenda 2006», que marcou formalmente o começo do processo de aprofundamento. Este programa tinha quatro eixos que iam além dos temas previstos no Tratado de Assunção: a) um programa político, social e cultural; b) um programa para a União Aduaneira; c) um programa de base pró mercado comum; e d) um programa para a nova integração5.

Essa aliança estratégica para relançar o Mercosul continuou com a assinatura do Consenso de Buenos Aires em outubro de 2003. Naquela ocasião, Lula e Kirchner comprometeram-se com uma série de temas, entre eles o incremento de acordos de cooperação política, a consolidação da união aduaneira e do mercado comum, o fortalecimento da coordenação das negociações internacionais, a promoção da cooperação para garantir um espaço de segurança comum e a vigilância dos delitos na região.

Finalmente, em dezembro de 2003, o Conselho do Mercado Comum adotou o Programa de Trabalho 2004-2006 (PT 2004-2006), que abriu caminho para completar a liberalização do intercâmbio comercial e o desenvolvimento de uma «nova agenda da integração». Deste modo, decidiu-se ordenar mecanismos para ajudar a resolver o problema das assimetrias, uma queixa apresentada pelo governo do Paraguai. Por último, deram-se os primeiros passos para criar um espaço de integração social e produtiva.

A ampliação do processo de integração ao resto da região se desenvolveu de forma dinâmica e, em grande medida, graças ao impulso da Argentina e do Brasil.

Em 2004, todos os países sul-americanos (exceto Guiana e Suriname) haviam se tornado membros associados do Mercosul. Por outro lado, a criação da CSN – processo que, pelo menos sob a óptica brasileira, sempre esteve vinculado à ampliação do Mercosul – e a crescente articulação com a Comunidade Andina (CAN) são amostras dessa vontade de ampliar a integração.

Mas o fato mais emblemático deste processo de ampliação foi a aceitação da Venezuela como membro pleno do Mercosul. Esse processo começou em outubro de 2005, quando o presidente Hugo Chávez anunciou a decisão. O início formal do processo de adesão ocorreu em dezembro daquele ano, na Cúpula de Presidentes do Mercosul, e a partir daí começou um período de negociação para estabelecer o texto legal no qual se marcariam as condições de ingresso. A negociação se estendeu até maio de 2006. Dois meses depois, os presidentes do Mercosul se reuniram em Caracas, admitindo a Venezuela como membro pleno. No entanto, esse processo ainda não foi concluído devido a uma série de fatores que analisaremos a seguir.

Luzes e sombras da nova agenda de aprofundamento do Mercosul

O PT 2004-2006 organizou o trabalho conjunto durante aquele período. Esse programa, como dizíamos no ponto anterior, continha entre os seus objetivos a realização de uma série de promessas que até então não haviam sido cumpridas, além de novos temas adicionados à agenda do bloco.

Na primeira parte do documento, encontram-se as medidas destinadas ao aperfeiçoamento da zona de livre comércio e da união aduaneira (supressão da dupla cobrança de tarifa externa comum e dos regimes especiais de importação nacionais, etc.) Ao mesmo tempo, foram feitas as seguintes propostas: integração produtiva, diminuição progressiva dos incentivos que geram distorções na alocação de recursos e as condições para competitividade, melhoria da competitividade dos sócios menores e das regiões menos desenvolvidas e aperfeiçoamento da coordenação nas negociações externas conjuntas. A segunda parte anuncia, dentre outras coisas, a decisão de estimular a participação da sociedade civil no processo de integração, dar visibilidade à dimensão cultural desse processo e estabelecer medidas que sejam a favor da livre circulação de pessoas. Na terceira parte, propõe-se a criação do Parlamento do Mercosul, a regulamentação do Protocolo de Olivos para a solução de controvérsias, a transformação da Secretaria do Mercosul em Secretaria Técnica e a implementação de um instrumento que estabeleça um procedimento para a vigência imediata da normativa do bloco que não requeira aprovação parlamentar. Finalmente, na nova agenda da integração destacam-se a cooperação em matéria de ciência e tecnologia e a integração física e energética.

Recuperando o ponto de partida a respeito da complexidade do processo de integração e da impossibilidade de fazer uma análise unidimensional, tomaremos alguns aspectos desse amplo programa de trabalho para avaliar o seu crescimento nos últimos anos.No que se refere aos temas da primeira parte do PT 2004-2006, ou seja, o aperfeiçoamento do livre comércio e da união aduaneira, é interessante destacar o estabelecimento de medidas para a eliminação da dupla cobrança da tarifa externa comum a partir de um programa em etapas; a criação de um Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM) e os diversos projetos de integração produtiva em discussão, principalmente durante o segundo semestre de 2006. No entanto, a consolidação da união aduaneira tem se estancado em virtude das dificuldades para a adoção de um código aduaneiro comum, atualmente em fase de negociação, e de encontrar mecanismos conjuntos para a distribuição da renda aduaneira. Os projetos de integração produtiva são modestos, ainda mais se considerarmos as grandes assimetrias entre os Estados membros, particularmente no que se refere aos recursos destinados e ao alcance dos programas nacionais de competitividade. Vamos ver então com mais detalhes o que acontece com o FOCEM e a forma pela qual o bloco aborda essas diferenças.

Um tratamento rigoroso das assimetrias estruturais e das assimetrias de política em um processo de integração como o Mercosul é um passo fundamental para avançar em um esquema de integração profunda que tenha como objetivos a equitativa distribuição de custos e benefícios, o desenvolvimento da região e a legitimidade política e social do processo. Embora o tema tenha sido parte da agenda do Mercosul desde a firma do Tratado de Assunção, os avanços realizados são ainda limitados6.

A mudança conceitual no gerenciamento do delicado tema das assimetrias produziu-se a partir de 2003 e ficou refletida na decisão No 23/03 do CMC, «Fundos Estruturais», que levou à criação do FOCEM. Na posterior decisão No 45/04, estabeleceu-se que tal fundo estaria destinado a «apoiar programas para promover a convergência estrutural, desenvolver a competitividade e a coesão social, particularmente das economias menores e das regiões menos desenvolvidas; dar apoio ao funcionamento da estrutura institucional e ao fortalecimento do processo de integração»7. Esta ferramenta foi planejada com um sentido compensatório e de redistribuição: 70% do financiamento provem do Brasil, 27% da Argentina, 2% do Uruguai e 1% do Paraguai, ao passo que os fundos são destinados de acordo com o seguinte critério: 48% para o Paraguai, 32% para o Uruguai, 10% para a Argentina e 10% para o Brasil. Mesmo assim, embora esses avanços sejam importantes do ponto de vista da concepção do modelo de integração, o seu impacto real se mostra limitado não só pela pequena quantidade de fundos, mas também pelas características dos projetos aprovados.

No que diz respeito à segunda parte do PT 2004-2006, e com referência especificamente à ampliação da participação das organizações da sociedade civil, o caminho transitado tem sido complicado, embora cheio de inovações. As formas institucionalizadas após 1994 para fomentar a participação da sociedade civil no processo de integração contam com importantes déficits que não têm sido superados nos últimos anos. Não obstante, como temos dito em outros trabalhos8, no marco das mudanças políticas regionais que ocorreram desde 2003, o tema da participação da sociedade civil atravessou o discurso do bloco e deixou espaço para ações de nova índole. Entre elas, a mais destacada é a Iniciativa Somos Mercosul, apresentada pela presidência pro tempore do Uruguai em dezembro de 2005, que, sob o lema de «encher o Mercosul de cidadania» conseguiu desenvolver propostas para ampliar e fortalecer espaços de participação da cidadania no bloco. Sob a presidência argentina, já em 2006, e como ponto de culminância de um processo interno de fortalecimento e mudança de rumo do Conselho Consultivo da Sociedade Civil do Ministério de Relações Exteriores desse país, a iniciativa se transformou no Programa Regional Somos Mercosul. Nesse sentido, foi inaugurada a série de Cúpulas Sociais do Mercosul, que continuam até hoje. Porém, todas essas importantes mudanças não conseguiram, de fato, modificar a estrutura ou a metodologia de trabalho do bloco, que permanece fortemente hermética, principalmente nas áreas dependentes do Grupo Mercado Comum. Por isso, o processo de maior participação da sociedade civil não se consolidará a menos que não haja avanços em uma reengenharia institucional e metodológica baseada nos princípios da transparência, inclusão de novos atores, democratização do bloco e autonomia dos espaços de participação em relação ao maior ou menor compromisso que os diversos governos possam ter com eles.

Finalmente, e já falando da terceira parte do PT 2004-2006, é necessário analisar o progresso do Parlamento do Mercosul. No período analisado, foram cumpridos os objetivos referentes à criação, instalação e começo das atividades. A instalação plena e o fortalecimento constituem condições sine qua non para avançar rumo à ampliação da representação política, à democratização e à legitimação do processo de integração. Neste sentido, o Parlamento do Mercosul tem o potencial de se tornar um ator institucional de grande relevância política para esta região, na medida em que funcione como uma caixa de ressonância das demandas sociais do bloco. Pode ser uma expressão de recuperação da política em uma região que tem sofrido as graves conseqüências da implementação de uma lógica mercantil como princípio regulador da vida social.

No entanto, ela enfrenta importantes desafios políticos e técnicos. Em primeiro lugar, ainda se encontra em fase de debate a definição sobre o critério de representação da cidadania (proporcionalidade atenuada), a partir do qual serão escolhidos diretamente seus membros. Além disso, deve ser definida ainda uma agenda prioritária para a região. Nela certamente aparecerão temas fundamentais como a identificação das barreiras para a formação da união aduaneira, as assimetrias estruturais e políticas, a infra-estrutura, a energia, a cultura, a construção de cidadania, entre outras questões centrais. Em terceiro lugar, o Parlamento do Mercosul tem a responsabilidade política de se envolver no processo de reforma institucional do bloco. É o espaço político legítimo para convocar os diversos atores públicos e privados, locais, nacionais e regionais, para debater e elaborar uma proposta de reforma legitimada política, social e tecnicamente. Uma reforma institucional é, antes de tudo, uma opção política, e não técnica. Se for limitada ao âmbito técnico, ou se for concentrada nos Poderes Executivos nacionais, o resultado não estará à altura do projeto estratégico que a região merece. Em quarto lugar, o Parlamento do Mercosul deve se tornar, no médio ou no longo prazo, uma instância que ajude a destravar o atual e complicado processo de incorporação das normas das instituições do Mercosul às normativas nacionais. Finalmente, ele tem a função de sensibilizar e criar consciência nos povos da região sobre o caráter estratégico do projeto de integração, por meio da coerência entre um discurso fortemente comprometido com esse projeto e um conjunto ambicioso de propostas que contem com o aval político dos representantes. Em suma, o Parlamento do Mercosul deve se concentrar fundamentalmente na construção de consensos para a execução de uma agenda de integração sólida, profunda e permanente. Caso contrário, como acontece em certa medida com o Parlamento Andino, poderia passar a ser um nome a mais no organograma institucional do Mercosul, sem nenhuma projeção no processo de integração.

Luzes e sombras na agenda da ampliação

A respeito da incorporação de novos países ao Mercosul, destacam-se as dificuldades para a Venezuela tornar-se um membro pleno. O dinamismo desse processo até a Cúpula de Caracas foi se diluindo, na medida em que os Congressos do Brasil e do Paraguai não ratificavam o protocolo de adesão da Venezuela. O governo venezuelano também não contribuiu: dentre outras coisas, nunca terminou de negociar o programa de desoneração comercial, especialmente com a Argentina e o Brasil. No Protocolo de Caracas, estabeleceu-se um Grupo de Trabalho (GT) ad hoc, responsável por determinar a forma em que se produziria a citada negociação de taxas. Este GT teve êxito ao estabelecer um programa de liberalização com o Paraguai e o Uruguai. Entretanto, isso não foi possível com relação à Argentina e ao Brasil, os dois maiores sócios e com os quais existiam fortes desigualdades.

Além disso, devemos contemplar os fatores de natureza política. Em primeiro lugar, o estilo de confrontação adotado em diversas ocasiões por Hugo Chávez, que, por exemplo, questionou o Senado brasileiro quando este manifestou sua preocupação pela decisão de não renovar a licença do canal opositor Radio Caracas Televisión. Naquela oportunidade, Chávez afirmou que o Congresso brasileiro repete como «papagaio» o que diz o Congresso americano, o que gerou inclusive uma reação do presidente Lula. A isso temos que somar as reiteradas declarações de Chávez sobre a necessidade de «reformatar» o Mercosul, amplamente rejeitadas pelos países membros, especialmente o Brasil.

Finalmente, existe no Mercosul a preocupação de que Chávez possa tentar utilizar o processo de integração como uma nova plataforma para seu enfrentamento com os Estados Unidos. Os sócios têm uma agenda pragmática em relação a Washington, na qual têm existido pontos de desacordo, como a negociação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), mas também de encontro, como a assinatura de o Acordo Marco de Comércio e Investimentos (TIFA, na sigla em inglês) entre os Estados Unidos e o Uruguai, ou o acordo americano-brasileiro sobre a produção de etanol. Por essas razões, o discurso antiimperialista da Venezuela poderia gerar uma desarticulação das políticas exteriores dos Estados Partes, afetando assim a credibilidade do conjunto9.

O processo de adesão da Venezuela evidencia algumas limitações institucionais do Mercosul. Antes do pedido venezuelano, não existia uma normativa do artigo 20 do Tratado de Assunção, sobre a adesão de novos membros, que só iria ser regulamentado logo depois do pedido de Caracas. Embora certamente se trate de um avanço, o que foi aprovado talvez mereça uma revisão, em virtude das dificuldades do processo negociador com a Venezuela.

Essas dificuldades permitem traçar a hipótese de um crescente interesse venezuelano em se juntar de maneira plena aos membros do Mercosul. A política exterior de Chávez tem propósitos claros, como a luta contra a ordem unipolar, o antiimperialismo, a luta contra o neoliberalismo (recentemente transformado em anti-capitalismo) e a promoção da integração bolivariana. Algumas dessas metas são incompatíveis com o Mercosul. Embora o bloco promova uma agenda social e produtiva que possa conduzir a uma redefinição do modelo de integração, o processo de continuará a ser construído dentro de uma visão capitalista. De igual forma, o discurso antiimperialista não tem eco no Mercosul. Por isso, pode-se argumentar que este esquema de integração já não é tão funcional à estratégia de política exterior de Chávez e que, consequentemente, ele decidiu redirecionar os seus recursos e sua atividade diplomática à promoção de um novo modelo de integração, no qual não exista um acervo comunitário que o faça incompatível com as metas de sua política exterior. Isso explica o interesse cada vez maior de Caracas na promoção da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA), que não tem nenhum marco normativo ou institucional, pois está em processo de construção sob liderança venezuelana10.O crescimento da ALBA na América Latina em geral, e em alguns países da América do Sul em particular, pode gerar consequências significativas. A ALBA se afirma como um modelo de integração baseado na cooperação, na complementaridade e na solidariedade. Nesta lógica, tem estabelecido mecanismos através dos quais o país mais rico do grupo (Venezuela) apoia os de menor desenvolvimento relativo. Programas como Petrocaribe ou a ajuda que o governo venezuelano oferece aos seus sócios na construção de infra-estrutura são exemplos dessa lógica de integração. A Venezuela estaria atuando como um paymaster, um líder que assume os custos da sua liderança. Isso contrasta claramente com as críticas dos sócios menores do Mercosul, centralizadas na pouca ação do Brasil a respeito das inequidades e assimetrias. O governo do Brasil afirma que está atuando e menciona a criação do FOCEM como exemplo. De todo modo, as contradições revelam que existe um debate sobre qual é o modelo de integração econômica no Mercosul, e nesse contexto a força que a ALBA tem adquirido pode ser utilizada como argumento por aqueles que demandam um maior aprofundamento da agenda social e produtiva. Não é o objetivo deste trabalho discutir a viabilidade da ALBA como modelo de integração, um tema que merece uma análise própria. Simplesmente, afirma-se que o seu impacto na dinâmica integracionista na região já é significativo.

Com relação à ampliação do Mercosul no resto de América do Sul, ela tem se tornado complicada não só pelo intrincado processo de adesão da Venezuela, mas também por uma realidade política regional cada vez mais complexa. Alguns países procuram definir relações mais próximas aos Estados Unidos e preferem ter um vínculo pragmático e de baixo perfil com o Mercosul. É o caso da Colômbia, do Peru e, em uma menor medida, do Chile (que optou não tanto por uma relação estreita com Washington, mas por uma estratégia de alianças globais). Diante desta realidade, outros países, como Equador ou Bolívia, que em algum momento manifestaram interesse em ingressar como membros plenos do Mercosul, já não parecem tão entusiastas dessa ideia. Isso porque, em parte, é crescente o seu compromisso com a ALBA.

Esta nova realidade política também influenciou a guinada produzida no processo de integração sul-americana. A mudança da CSN para União de Nações Sul-Americanas (Unasul) em 2008 não foi só uma transformação semântica, mas uma mudança na filosofia da integração. De um processo baseado na convergência comercial entre a CAN e o Mercosul, na promoção da infra-estrutura regional e na concordância política, passou-se para um ambicioso processo com uma ampla diversidade de objetivos, como podemos observar se revisarmos o artigo 4 do tratado constitutivo da Unasul. Isto permite formular no mínimo duas hipóteses. A primeira é que o Mercosul tem perdido a sua liderança no processo sul-americano e tem sido substituído pelo bloco da ALBA liderado por Venezuela ou pelos tratados de livre comércio promovidos pelos Estados Unidos. A segunda hipótese é que o Mercosul – e particularmente o Brasil – já não está interessado em exercer essa liderança. Neste contexto, a Unasul é importante para o Brasil, e em certa medida para a Argentina, como espaço político, especialmente para a discussão de temas de segurança e defesa, como expressa a criação do Conselho Sul-Americano de Defesa.

Reflexões finais

Desde 2003, a América do Sul tem vivido uma mudança política importante. Neste contexto, a agenda do Mercosul e a agenda sul-americana têm incluído novos temas. O primeiro, sobre o qual tentamos refletir neste trabalho, foi implementado com certos avanços, mas também com importantes dificuldades. O bloco obteve algumas conquistas concretas, mas algumas questões fundamentais para conseguir uma integração mais profunda continuam sendo adiadas. Essa realidade gera duas questões: a primeira é até que ponto esse rumo constitui uma prioridade estratégica para os protagonistas principais do processo, os Estados Partes, de forma tal que os governos estejam dispostos a compartilhar decisões e políticas soberanas. A segunda se relaciona com os obstáculos ou dilemas que impedem o avanço.

O cenário político atual é claramente diferente do de anos atrás. Não só pelo contexto de crise econômica global, mas também porque a situação interna dos países do Mercosul não é a mesma. As assimetrias, principalmente com o Brasil, se aprofundaram e a conciliação de interesses tem se tornado mais difícil. Embora a afinidade política tenha permitido visões semelhantes de determinados temas de agenda, isso não parece ter sido suficiente para ancorar um processo profundo de transformação do esquema regional. Em segundo lugar, as assimetrias estruturais têm criado obstáculos importantes para chegar a acordos renovadores. E, finalmente, contribuindo para fortalecer aqueles interesses contrários ao aprofundamento da integração, persistem esquemas mentais baseados em fortes nacionalismos ou corporativismos (tanto nos governos como na sociedade civil) que acabam transformados em propostas institucionais limitadas que bloqueiam o aprofundamento da integração. É preciso reconhecer, no âmbito de uma análise crítica e séria, a existência desses obstáculos e resistências. De outra maneira, será muito difícil, sob o argumento de uma vontade política forte, conceber propostas de superação dessa realidade.

A questão do tratamento das desigualdades entre os Estados Partes (e dentro de seu território) é fundamental. Remete, por sua vez, a uma questão que adquire cada vez maior importância: a ampliação da brecha entre o Brasil, o maior parceiro do bloco, e o resto dos países membros. Esta distância aumentou significativamente nos últimos cinco anos, não só considerando dados objetivos, mas também a partir das mudanças que podemos observar na percepção sobre o Brasil por parte de atores do cenário mundial e das próprias elites políticas brasileiras. Nesse sentido é compreensível, por exemplo, a recente proposta da Comissão Europeia de estabelecer uma «associação estratégica» com o Brasil. Esta situação é acompanhada por uma maior tendência de «unilateralismo» brasileiro em certos âmbitos globais, como se disse na reunião da Organização Mundial de Comércio (OMC) realizada em Genebra em julho de 2007.

Esse crescente unilateralismo – seguido de um bilateralismo com a Argentina, cujos objetivos não são claros de forma alguma – debilita o processo de integração regional, como também as possibilidades de que este desenvolva todas as suas potencialidades como instrumento para promover a voz da região no mundo.

Este enfraquecimento se manifesta também por certa paralisia da agenda global do bloco, verificada desde 2006. A agenda se estancou em temas de difícil resolução, particularmente no que se refere à união aduaneira. Ao mesmo tempo, outras linhas têm adquirido maior dinamismo. Destacamos especialmente a ampliação da dimensão social do Mercosul através de reuniões de ministros e autoridades de desenvolvimento social do bloco. Não obstante, a estrutura institucional do esquema de integração não acompanha o aprofundamento das propostas em certas áreas. O impulso e a consolidação de uma agenda positiva de integração requerem uma reforma institucional integral. Decisões de peso nas áreas centrais, como a resolução das assimetrias, a complementação produtiva, o relacionamento com propostas regionais mais amplas como a Unasul, são fundamentais para avançar no processo de integração, para sair do patamar dos últimos anos e evitar retrocessos prejudiciais tanto para o bloco quanto para os Estados Partes.

A agenda de ampliação mostra também resultados contraditórios. Por um lado, desde 2003 o Mercosul tem logrado incluir como Estados associados todos os países da América do Sul, exceto Guiana e Suriname. Conseguiu, também, concluir a complexa negociação do acordo de livre comércio com a CAN, que resultou no ACE 59 assinado em 2004. Apesar disso, as dificuldades e a incerteza sobre o resultado final do processo de adesão da Venezuela como membro pleno afetam a credibilidade do bloco, que não tem mecanismos eficientes para a inclusão dos novos membros, ficando a decisão final submetida às turbulências da política nacional, particularmente aos Parlamentos.

O processo sul-americano liderado pelo Brasil para fomentar a convergência entre as diversas subregiões (andina, amazônica e rio-platense) também tem sofrido seus retrocessos. A mera promoção da ideia da América do Sul como um bloco já é um avanço significativo. A participação da Guiana e do Suriname, que se identificam mais como países caribenhos do que com os sul-americanos, também é relevante. A participação nestas instâncias regionais de governos com notórias simpatias pelos Estados Unidos, como a Colômbia e o Peru, também merece ser destacada. E, finalmente, temos que enfatizar o interesse cada vez maior da Venezuela em incrementar os seus laços com a América do Sul, especialmente com a Argentina e o Brasil, o que significa uma mudança de prioridades na sua política externa, tradicionalmente voltada para o Caribe.

No entanto, a repentina transformação da Comunidade Sul-Americana em Unasul e a ampliação de seus objetivos de forma talvez pouco realista pode tornar esse processo só mais uma sigla na longa história da integração da América Latina. A crise provocada pela presença militar americana em sete bases na Colômbia será uma dura prova para a Unasul. Da mesma forma, precisará definir quais os instrumentos que serão utilizados para cumprir aquelas ambiciosas metas no plano social e de inclusão dos grupos historicamente excluídos. Por último, existem dúvidas sobre a forma como a Unasul vai se articular com o Mercosul.A política e a economia sul-americanas atravessam uma dinâmica de mudanças importantes, em que é preciso tomar decisões estratégicas fundamentais. Para adotá-las nesse clima de incertezas, é preciso realizar um diagnóstico preciso sobre o mundo de hoje e um profundo balanço da trajetória da integração regional, tendo em vista os avanços, obstáculos, conflitos, atores e acordos que condicionaram a agenda. O objetivo do presente trabalho foi contribuir para essa análise.

  • 1. Sobre as diferentes visões da crise do Mercosul, v. Roberto Bouzas: «¿Puede sobrevivir el Mercosur?» em Perfiles Latinoamericanos No 23, 2003, pp. 231-242; Andrés Malamud: «Mercosur Turns 15: Between Rising Rhetoric and Declining Achievements» em Cambridge Journal of International Affairs vol. 18 No 3, 10/2005, pp. 421-436; Aldo Ferrer: «El éxito del Mercosur posible» em Revista de Economía Política vol. 27.1 No 105, 1-3/2007, pp. 147-156.
  • 2. Ver Paulo Roberto de Almeida: Sete teses impertinentes sobre o Mercosul, 2007, mimeo; Roberto Bouzas: «The Politics and Economics of Mercosur: Old Challenges, New Approaches», Perspectives on the Americas, Center of Henispheric Policy, University of Miami, março de 2008.
  • 3. Laura Vilosio: «Mercosur 2003-2004: un período de impulso y estancamiento» em Centro de Estudios Internacionales de Rosario (Cerir): La política exterior del gobierno de Kirchner vol. 1, tomo iv, unr Editora, Rosario, 2006, pp. 89-120.
  • 4. Ibíd., p. 949.
  • 5. Lincoln Bizzozero: «Los cambios de gobierno en Argentina y Brasil y la conformación de una agenda del Mercosur. ¿Hacia una nueva cartografía sudamericana/interamericana?» em Nueva Sociedad No 186, 7-8/2003, p. 134, disponível em www.nuso.org/upload/articulos/3139_1.pdf.
  • 6. Apresentamos este tema com maior profundidade em Mariana Vázquez: «Mercosur, cambio político y ¿nueva agenda?», trabalho apresentado no xxi Congreso de la Asociación Internacional de Ciencia Política, Santiago, Chile, julho de 2009.
  • 7. Cfr. Decisão do Conselho do Mercado Comum No 45/04.
  • 8. Ver Mariana Vázquez: «Luces y sombras de la participación social en el Mercosur» em Densidades No 1, 5/2008, pp. 88-96.
  • 9. Ver José Briceño Ruiz: «El Mercosur de cinco estrellas: Reflexiones sobre los beneficios y costos del ingreso de Venezuela» em Monserrat Llairó, J. Briceño Ruiz y L. Bizzozero: Venezuela en el Mercosur. Tres miradas, tres interpretaciones, Universidad de Buenos Aires, fce-ceinladi, Buenos Aires, 2006, pp. 101-149.
  • 10. Ver J. Briceño Ruiz: «El alba como iniciativa de integración: ¿es compatible con el Mercosur?» em Densidades No 2, 10/2008, pp. 57-76.
Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Dezembro 2009, ISSN: 0251-3552


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