Artículo
NUSO Nº Dezembro 2009

O Brasil e a Venezuela: uma relação perigosa?

Nos últimos anos, o Brasil tem consolidado sua presença na região, como parte de sua estratégia de deixar de lado uma visão estritamente «comercialista» das relações internacionais e se tornar um ator importante nas dinâmicas globais. Desde a chegada de Hugo Chávez ao poder, a Venezuela lidera um projeto regional que busca reformular os processos de integração a partir de novos esquemas. Embora tenham uma origem comum na crítica ao neoliberalismo dos anos 90, os projetos e as personalidades de Lula e Chávez apresentam crescentes divergências. Neste contexto, a construção de convivência e governabilidade na região apresenta desafios cada vez mais exigentes a ambos os governos.

O Brasil e a Venezuela: uma relação perigosa?

Nos últimos anos, a presença do Brasil consolidou-se nos contextos regional e internacional. Poderíamos afirmar que nos encontramos frente à evolução de um comerciante global (global trader) a um ator com liderança global (global player). Essa estratégia, que tem raízes históricas, foi impulsionada graças à personalidade e ao estilo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No entanto, o projeto enfrenta alguns riscos, entre eles as crescentes divergências em relação à estratégia internacional do presidente Hugo Chávez. Após anos de coincidências, está sendo progressivamente gestado um enfrentamento entre os dois projetos de liderança, tanto no plano conceitual-ideológico como na ação prática. Isso representa um desafio à criatividade dos governos.

O posicionamento internacional do Brasil

Desde o velho espírito expansivo bandeirante, o Brasil cresceu em território e, com limitações, também alcançou maior participação nos assuntos internacionais, particularmente os regionais. Embora o Brasil não tenha se caracterizado historicamente por uma atuação muito ativa no âmbito internacional, sua liderança tem sido clara na região. Nesse sentido, compartilhamos a tese de que a política exterior do Brasil tem se caracterizado por uma «constante renovação dentro da continuidade»1.

Após as independências latino-americanas, as atuações internacionais do Brasil e da Venezuela foram muito limitadas, assim como seu relacionamento intrarregional. As relações entre os dois países se desenvolveram em um clima de entendimento interrompido por alguns distanciamentos. Após o golpe militar de 1964 no Brasil, por exemplo, a Venezuela rompeu relações diplomáticas com esse país2. Embora compartilhassem raízes históricas, religiosas e culturais, as novas repúblicas latino-americanas foram se desenvolvendo de costas umas para as outras. A ideia de integração era tomada com estranheza e, nos casos de maior sensibilidade fronteiriça, a noção de um relacionamento de fronteira diversificado e dinâmico era inaceitável.

Durante boa parte da evolução histórica republicana da América Latina, o paradigma da soberania foi assumido como um fator de exclusão ou discriminação. A visão rígida da soberania levou, entre outras coisas, a que as repúblicas tendessem a se fechar, minimizando ou menosprezando as oportunidades geradas por uma vizinhança criativa. Inclusive podemos encontrar, ao longo de toda a região, um padrão de comportamento que poderia ser definido como «síndrome do vizinho»3. Ou seja, uma situação em que qualquer relação proveniente do país fronteiriço é motivo de mal-estar ou instabilidade, o que não ocorre nos vínculos com países mais distantes.

No âmbito comercial, esse comportamento pode ser observado com maior clareza quando, por exemplo, considera-se que a importação de um determinado produto de um país vizinho pode chegar a alterar a estabilidade nacional, o que não acontece se o produto for proveniente de outra região.

Entretanto, para além das diferenças comerciais, é importante destacar que o Brasil tem desenvolvido, desde os anos 60, uma vocação «comercialista» em sua política exterior, que lhe permite se identificar como um global trader. Do nosso ponto de vista, trata-se de uma posição limitada, já que tende racionalmente a se concentrar na maximização de benefícios sem maior preocupação pela situação de seus parceiros. Essa linha de ação brasileira se revela na posição do país nos cenários econômicos internacionais, como o velho Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês) e na antiga Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC).

No entanto, apesar da restrita atuação internacional brasileira, o tema amazônico tem feito parte de suas linhas de ação permanentes. De fato, o Itamaraty promoveu a assinatura do Pacto Amazônico, que se concretizou em 1978. Em seguida, com o advento da democracia, em meados dos anos 80, o Brasil obteve um maior dinamismo e uma afirmação de sua liderança, tanto no plano internacional como no regional.

A atuação internacional venezuelana

No caso da Venezuela, a agenda internacional, e particularmente a regional, tem sido muito diferente da brasileira. Em boa medida, isso se explica pelo fato de ter alcançado a democracia mais cedo, em 1960, o que gerou uma preocupação em promover os valores democráticos na região e estimulou uma participação mais ativa dos vizinhos.

Desde o início da democracia, a integração econômica regional tem ocupado lugar privilegiado na agenda da política exterior venezuelana. A maioria dos discursos oficiais apresenta a integração como uma linha fundamental de atuação regional do país, o que se traduz numa ação proativa. Exemplos disso são a criação da ALALC e a negociação para a formação do Grupo Andino – ainda que a incorporação formal da Venezuela ao Acordo de Cartagena de 1969 foi concluída quatro anos depois.

Durante os anos 60, 70 e parte dos 80, com o Brasil sob o controle de governos militares, a Venezuela desenvolveu uma ativa política regional. Construiu uma forte liderança na região andina e no Caribe. Durante essa época, o regime militar do Brasil provocou um relativo isolamento do país no cenário internacional, atenuado apenas por sua estratégia «comercialista». Ao mesmo tempo, as maiores divergências com a Venezuela giraram em torno dos valores democráticos e da concepção de segurança e defesa.

O desenvolvimento da institucionalidade democrática e o significativo incremento dos ingressos petroleiros, após o boicote árabe de 1973, garantiram à Venezuela bases sólidas para um maior protagonismo internacional. Esse papel se refletiu nos projetos promovidos por diversos governos democráticos, como a tese da «justiça social internacional» promovida por Rafael Caldera em seu primeiro governo (1968-1973) e a noção de «nova ordem econômica internacional» de Carlos Andrés Pérez em sua primeira gestão (1974-1979).

Nesse contexto, a Venezuela incentivou diversas iniciativas políticas regionais, tais como o Tratado do Panamá, que criou o Sistema Econômico Latino-Americano (SELA), em 1975, o Grupo de Contadora para a promoção da paz na América Central, o Grupo dos Oito, em 1985, e, no ano seguinte, o Grupo do Rio.

A integração econômica como plataforma de mudanças

Em fins da década de 50, a integração, essencialmente econômico-comercial, começou a ingressar timidamente nas agendas políticas dos governos da região, porém sem que se observasse uma maior incorporação na dinâmica das sociedades. A criação da ALALC, em 1960, foi percebida como um processo fundamentalmente vertical conduzido pelos governos, que tendiam a projetar um duplo discurso em matéria de integração apoiados por alguns grupos econômicos. As sociedades se mantiveram ausentes, desconhecendo os processos, sem participar das discussões e da criação de normas. Portanto, sem assumir um papel ativo. No caso dos governos, observou-se um discurso oficial em apoio à integração econômica, embora na prática não tenham adotado as medidas necessárias para gerar avanços concretos. Nesse contexto, a estratégia brasileira tendeu a privilegiar a consolidação do mercado interno. Ao mesmo tempo, porém, foi desenvolvendo uma visão «comercialista» e voltada à abertura de mercados na região. Em certa medida, ela buscava contribuir para fortalecer a economia de escala da produção nacional.

Na formação do modelo de desenvolvimento industrial brasileiro, as importações não apareciam como um desafio à criatividade competitiva. Ao contrário, elas eram percebidas como uma competição à produção local.

Por isso, as políticas públicas foram articuladas sob a perspectiva de proteção do mercado interno, o que reduziu ou eliminou as possibilidades de avançar na integração econômica regional, em particular na formação de uma área de livre comércio – o que constituía o objetivo central da ALALC.

Durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985), a política para a região se concentrou nos temas de segurança militar e política, a partir de uma perspectiva própria da Guerra Fria e com base em uma visão pretoriana de segurança nacional. Essa posição rígida e militarista adquiriu certa flexibilidade à medida que se fortalecia a visão «comercialista», que privilegiava a expansão das exportações brasileiras. O objetivo era vender ou comprar nos mercados latino-americanos, sem maiores considerações ideológicas. Graças a essa filosofia, os exportadores brasileiros puderam desenvolver estratégias de mercado de alcance global, com resultados bem-sucedidos. Assim, a posição «comercialista» atraiu cada vez mais partidários no setor público e nas esferas produtivas, consolidando-se na sociedade.

Depois do fracasso da ALALC em virtude do protecionismo predominante na região, a visão «comercialista» restringida do Brasil se impôs com a criação da Associação Latino-Americana de Integração (ALADI). Na prática, essa organização deixou de lado o ambicioso objetivo de criar uma área de livre comércio e se limitou à promoção de zonas de preferências comerciais. Ou seja, acordos sobre excedentes e faltantes em limitados âmbitos das capacidades produtivas dos países e com estreitos níveis de desgravação que não afetassem nem o ingresso fiscal nem as capacidades produtivas.

Quando a democracia nos une

Com o retorno do Brasil à democracia, iniciada formalmente em 1988, sua atuação internacional entrou em uma fase mais criativa, particularmente na região. A essa altura, o Brasil já contava com uma economia bastante diversificada, com uma ampla presença de seus produtos em vários mercados do mundo. No entanto, o país tinha uma capacidade muito limitada de ação política em escala regional. Nesse contexto, sua estratégia externa passou a girar em torno da visão «comercialista».

A política do Brasil para a região começou a se flexibilizar e a se diversificar nos temas políticos e de segurança. Um exemplo que poderíamos qualificar de paradigmático foi a Declaração de Foz do Iguaçu, de novembro de 1985, que iniciou um processo de integração com os vizinhos do Cone Sul. A princípio, esse processo se deu através do fortalecimento das relações econômicas e políticas com a Argentina. Logo depois, foi formalizado com a assinatura do Tratado de Assunção, de 1991, que deu origem ao Mercado Comum do Sul (Mercosul).

A partir da criação do Mercosul, o Brasil começou a participar mais ativamente e a construir uma liderança regional, papel que no passado exercia como resultado de suas dimensões continentais e sua fortaleza econômica, mas que tinha sido limitado por motivos fundamentalmente políticos. A formação do Mercosul e sua atuação no âmbito do velho GATT e de sua sucessora, a Organização Mundial do Comércio (OMC), constituem os maiores êxitos de sua política internacional de caráter «comercialista».

Um acontecimento fundamental na construção da liderança regional do Brasil foi a proposta do presidente Itamar Franco, formulada por seu chanceler, Fernando Henrique Cardoso, de promover a Área de Livre Comércio Sul-Americana (ALCSA), apresentada na II Cúpula do Grupo do Rio, em Santiago do Chile, em 1993.

Essa iniciativa foi a base para projetos regionais que chegam até nossos dias, como a Iniciativa para a Integração da Infra-Estrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), a Comunidade Sul-Americana de Nações (CSN, 2004) e, em seguida, a União de Nações Sul-Americanas (Unasul, 2007).

Visão crítica do liberalismo econômico: novas coincidências, novas diferenças

Na década de 90, foi se consolidando uma crítica aos governos que, com um forte componente de liberalismo econômico, dominaram o cenário político regional desde fins dos anos 80 e promoveram uma dinâmica de abertura de mercados e redes comerciais. Apesar de seus benefícios na geração de competitividade, ingressos e – em certa medida – empregos, esse processo produziu graves problemas sociais, já que tendeu à especialização e à concentração das economias.

Os aspectos comerciais da integração estão no epicentro da agenda integracionista durante esse período. Embora tenham sido produzidos avanços em outras áreas, como educação, trabalho e cultura, eles em geral ocuparam o segundo plano na atenção dos governos4. Como reação à primazia dos temas econômicos e comerciais, diversas críticas foram sendo desenvolvidas a partir de perspectivas muito heterogêneas.

Entre a diversidade de movimentos e iniciativas que questionaram o liberalismo econômico, e em alguma medida a integração regional, cabe destacar o Foro de São Paulo, que reuniu regularmente os partidos de esquerda e os movimentos sociais críticos da liberação econômica e da globalização, sob os auspícios do Partido dos Trabalhadores (PT) do Brasil.

Deve-se mencionar também o fato de que o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) reagiu em janeiro de 1994 contra o projeto de liberalismo econômico de Carlos Salinas de Gortari e o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA).

Outros casos interessantes são os piqueteiros argentinos, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra do Brasil e os movimentos indigenistas da Bolívia, Equador e Guatemala. Também se destaca o papel conceitual desenvolvido pelo Foro Social Mundial, iniciado em Porto Alegre em 2001.

No caso da Venezuela, esse sentimento crítico frente à visão liberal da agenda econômica internacional somou-se ao questionamento dos déficits sociais do sistema democrático e ao deterioro do sistema de partidos, estimulando novos movimentos políticos que recorreram inclusive ao uso da força e ao golpe de Estado. Nesse contexto, o movimento bolivariano de Chávez assumiu o poder depois de se impor nas eleições de 1999, tendo como base um discurso profundamente crítico em relação à agenda econômica liberal e com fortes questionamentos dos processos de integração econômica.

Esse discurso obteve eco em toda a região. Com algumas diferenças, é possível encontrá-lo nos diversos movimentos políticos de esquerda que assumiram o poder desde o início do novo século. Nesse ambiente de crítica ao status quo, devem ser ressaltadas as coincidências com o PT, que finalmente chegou ao poder em janeiro de 2003. As críticas à pobreza, ao desemprego e às injustiças que abalam um setor majoritário das sociedades unificavam conceitualmente ambos os governos. Em seguida, com a prática, as diferenças foram crescendo.

Divergências, lideranças e projetos

Com o passar do tempo, as vinculações entre os governos da Venezuela e do Brasil – estimuladas no passado pelo discurso e a plataforma crítica em relação o liberalismo econômico – foram se enfraquecendo, e as diferenças se tornaram mais evidentes. Mesmo que seja exagerado caracterizar a situação como um «choque de trens» pela liderança regional, deve-se reconhecer que, nas últimas reuniões regionais, como as do Grupo do Rio e da Unasul, as divergências foram visíveis.

Na prática, nos encontramos com duas visões da política, ambas incluídas na perspectiva da esquerda, e com duas estratégias contraditórias no cenário internacional. Não é novidade que existam concepções e práticas divergentes dentro do universo da esquerda: neste caso, podemos observar uma esquerda democrática, mais flexível e negociadora no caso do Brasil, à qual se agregam o estilo e a personalidade de Lula, e uma esquerda mais radical, conflituosa e excludente, sob a liderança de Chávez. É difícil definir e caracterizar o projeto geopolítico bolivariano, já que está carregado de heterogeneidade e sincretismo. Mas o que está claro é a importância que ele confere às relações internacionais, em particular a dinâmica regional e a integração. De fato, a formação de um entorno favorável ao processo bolivariano, com aliados que compartilhem seus valores, é visto como algo fundamental. Daí a importância de promover uma expansão do processo na região através de diversos instrumentos, entre os quais se destaca a «nova diplomacia» ou «diplomacia dos povos». A diplomacia dos povos utiliza diversas estratégias: por um lado, uma ativa diplomacia social, que busca estimular movimentos e governos afins por meio da construção de uma rede de apoio político; por outro, promove alianças com governos locais de tendência de esquerda.

O projeto bolivariano de Chávez também aposta em uma nova concepção da integração econômica. Podemos afirmar que joga um papel privilegiado tanto no discurso como na prática da integração. No entanto, não se trata de fortalecer os processos existentes. Ao contrário, busca criar uma nova estrutura institucional que corresponda aos objetivos e interesses do processo de mudança.

Levando em conta essas linhas de ação, a geopolítica bolivariana desenvolveu várias estratégias, entre elas a estratégia petroleira (Petrocaribe, Petroamérica, etc), a diplomacia oficial – e fundamentalmente presidencial – onde se destaca o esquema da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (ALBA), junto com outros mecanismos de penetração, como o canal Telesur. Também foram produzidas ações em outro plano, que poderíamos definir como mais informal, embora seja muito efetivo na hora de ganhar influência nos setores mais empobrecidos da região: a criação dos círculos bolivarianos, o Congresso Bolivariano dos Povos, a Coordenadoria Continental Bolivariana, o Bloco Regional do Poder Popular e as chamadas «casas del ALBA».

Divergências à flor da pele

Atualmente, observam-se divergências crescentes entre as duas lideranças pessoais e os projetos políticos dos governos do Brasil e da Venezuela. Essas diferenças se relacionam, entre outros temas, com o antiimperialismo, que goza de um amplo respaldo no discurso crítico dos dois governos, mas que se radicalizou significativamente na Venezuela e em outros países da ALBA. Neles, chegou-se inclusive a expulsar os funcionários da Agência Antidrogas dos Estados Unidos (DEA) e a retirar embaixadores desse país. O discurso radical antiimperialista dos membros da ALBA tem como eixo central de sua situação internacional, a rejeição aos EUA e a insistência quanto a uma potencial invasão norte-americana.

Essa posição quase existencial não conta com o respaldo do Brasil que, ao contrário, tem construído uma relação respeitosa e criativa com os EUA. Durante o governo de George W. Bush, os dois países alcançaram posições coincidentes na OMC e lançaram planos conjuntos em matéria de biocombustíveis. Essas coincidências se aprofundaram com o governo de Barack Obama.

Mas o Brasil não está sozinho. O rechaço da região ao discurso antiimperialista tem-se revelado em vários cenários, como na Cúpula das Américas de 2009, em Trinidad-Tobago, onde Obama lançou as bases para uma relação mais respeitosa com a região. Nessa ocasião, o presidente americano instou a construção de um clima de convivência entre os países, posição que se refletiu na atuação dos EUA no caso do golpe de estado em Honduras. Mais tarde, na cúpula da Unasul em Bariloche, em agosto de 2009, os países da ALBA não conseguiram impor sua posição de repúdio ao acordo militar entre Colômbia e EUA. Ao contrário, impôs-se a postura mais moderada liderada pelo Brasil.

Foi exatamente a diplomacia do microfone, do discurso radical e das posições que contribuiu para consolidar a liderança de Lula na região. Isso ficou claro nos episódios mencionados e nos enfrentamentos entre a Colômbia e os governos da Venezuela e do Equador. O Conselho de Defesa da Unasul – que enfrenta a prova de fogo da discussão do apoio militar dos EUA – é uma iniciativa do Brasil, que recebeu muita atenção por parte do governo de Lula, para ajudar a atenuar ou reduzir o clima bélico na região.

Para além das posições frente aos EUA, as divergências entre os governos de Lula e Chávez também são evidentes com respeito às orientações estratégicas para a construção de governabilidade no contexto internacional. Nessa questão é possível encontrar, uma vez mais, estilos e estratégias diferentes. No caso brasileiro, existe uma clara coerência entre a personalidade civilista e negociadora de Lula e a tradição conciliadora da diplomacia de seu país, particularmente desde os tempos da democracia. De fato, Lula tem se revelado um hábil estrategista no manejo do chamado soft power5e conseguiu consolidar e potencializar novamente a estratégia brasileira de privilegiar a persuasão, o diálogo e a negociação. Essa linha de ação foi parcialmente alterada diante do mal-estar gerado pela nacionalização dos hidrocarbonetos pelo governo de Evo Morales, em maio de 2006. Esse estilo, considerado por muitos analistas como positivo, tende a gerar, segundo algumas opiniões, maiores níveis de ambiguidades nos momentos em que se necessite clareza de ação diante dos problemas vividos na região6.

De todo modo, a estratégia política de negociação do Brasil, aliada à sua capacidade produtiva e exportadora, permitiu ao país avançar na consolidação de uma liderança regional e global. Entre os resultados dessa estratégia, podemos mencionar que a Unasul, com muitas fraquezas institucionais, está se consolidando politicamente. Por outro lado, o Brasil integra o bloco dos países emergentes e do G-20, tem sido um convidado freqüente nas reuniões do G-8, joga um papel de liderança fundamental na OMC, especialmente na Rodada de Doha, e busca obter um assento permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU).

No caso da Venezuela, tanto a personalidade de Chávez, direta e confrontativa, como a orientação da estratégia internacional do país se tornam cada dia mais conflituosas – e, em certa medida, autoritárias. Não podemos desconhecer o esforço de mudança e ruptura do discurso bolivariano, assim como seu questionamento e rejeição às injustiças que caracterizam as dinâmicas globais. O problema é que essa estratégia de confrontação não alcança resultados criativos de convivência. O discurso crítico vai se esgotando na medida em que não gera resultados concretos.

Nesse contexto, um dos motivos de preocupação é a linguagem de Chávez. Ele permanentemente sustenta que realiza uma «revolução pacífica, mas armada»7 e ameaça usar a força no cenário regional. O quadro a seguir sintetiza algumas de suas últimas declarações nesse sentido.

Dois olhares sobre a integração

Na estratégia internacional de Chávez, a questão do petróleo joga um papel muito relevante, já que constitui seu principal instrumento de expansão na região através da Petroamérica, Petrocaribe e Petroandina. Com o lançamento da ALBA, o governo impulsiona a transformação de uma ordem qualificada como desumana, interessada apenas nos lucros. Na prática, porém, esses projetos tendem a se tornar rígidos, na medida em que parecem promover um modelo de pensamento único que não admite a crítica e a divergência: de fato, os governos que questionaram a atuação da Venezuela – como Costa Rica, Peru, República Dominicana e, mais recentemente, Colômbia – têm sido ameaçados com o fechamento total às importações e sofreram o manejo do talão de cheques petroleiro, ou seja, uma abordagem «stick and carrot» (de castigos e recompensas).

No plano do comércio e da integração, também se observam divergências crescentes. No caso do Brasil, como se ressaltou anteriormente, a visão «comercialista» restringida constitui um dos eixos fundamentais de sua política exterior. Um dos aspectos positivos é a percepção do comércio como um mecanismo de integração dos povos, bem-estar e construção da paz. Isso não significa que não haja limitações. De fato, definimos a estratégia como restringida porque descansa sobre uma lógica racionalista concentrada na maximização de benefícios, sem maior preocupação quanto à situação interna de seus parceiros. Este «radicalismo racional» gera certa miopia na liderança regional: as exportações brasileiras ganham, mas os projetos integracionistas se tornam frágeis e instáveis pelo mal-estar dos parceiros.

O Mercosul apresenta sérios problemas de estabilidade, e muitos deles advêm de assimetrias estruturais. Trata-se de um esquema que não contempla um tratamento de equidade para os países menos avantajados e que tampouco consagra mecanismos eficientes e equitativos de escape temporário nem solução de controvérsias. Tudo isso pareceria indicar que os parceiros maiores – Brasil e Argentina – construíram um projeto de acordo com seus interesses, que não contempla a importância de promover o comércio com equidade.

No caso do projeto bolivariano, encontramos uma situação claramente contraditória em relação ao comércio. Em suas fases mais críticas, o discurso de Chávez demonizou o comércio, destacando suas fraquezas e ressaltando como a especialização comercial provoca desemprego e pobreza. Trata-se de um discurso desproporcionado, que não reconhece os benefícios que o comércio pode produzir em termos de criação de emprego, atração de investimentos e geração do bem-estar. Mas o ponto central é que, na ação prática, o projeto bolivariano não desenvolveu propostas concretas de transformação das desigualdades derivadas do livre comércio: promover o comércio com equidade não é fácil e exige uma séria disciplina de trabalho em múltiplas frentes.

Se o projeto bolivariano concretizasse realmente sua vontade de revisar as inequidades do comércio internacional, promovendo transformações efetivas, nos encontraríamos com outra séria divergência a respeito da estratégia «comercialista» brasileira. Nesse caso, a posição da Venezuela poderia gerar o apoio dos países pequenos do Mercosul, que sofrem as consequências da assimetria estrutural, ainda que os poucos avanços efetivos impeçam esse cenário.A rigidez da posição da Venezuela implica desaproveitar oportunidades, tanto para negociar transformações eficientes na ordem econômica internacional como para ampliar as debilitadas exportações não petroleiras venezuelanas.

Um exemplo da perda de oportunidades ficou em evidência com a posição assumida nas negociações da ALCA, onde as posturas maniqueístas impediram aproveitar o cenário de negociação para promover projetos concretos de comércio com equidade, propiciando uma sólida coordenação entre os países da região, particularmente entre a Comunidade Andina e o Mercosul.

As negociações da Rodada de Doha poderiam constituir outro cenário de divergência caso a Venezuela adotasse uma posição consequente com sua crítica às assimetrias e inequidades no sistema econômico internacional. Ao fazê-lo, implicaria um enfrentamento como Brasil, inclinado a uma maior abertura de mercados. Mas o discurso bolivariano tem se mostrado contraditório na prática: questionam-se as inequidades, mas sem promover propostas concretas de transformação. Nesse sentido, a Venezuela eliminou compromissos fundamentais em matéria de integração ao denunciar o Acordo de Cartagena e o Acordo Grupo dos Três com o México e a Colômbia. Em nenhum desses casos, no entanto, apresentou projetos de reforma integral desses esquemas.

Diante da inequidade do comércio capitalista, promove-se uma integração que quebre a lógica perversa do mercado, além da eliminação do dólar como divisa comercial. Até se fala de um retorno a uma espécie de escambo. Esses elementos, entre outros, apresentam-se como inovações da ALBA. Mas vale mencionar um paradoxo: desde sua origem, a ALBA opera com base numa dinâmica de livre comércio com todos os seus benefícios. A relação comercial entre Venezuela e Cuba é regulada pelos acordos firmados no marco da ALADI, e o mesmo ocorre no caso da Nicarágua. Quanto à Bolívia e ao Equador, as relações comerciais são reguladas pelo programa de livre comércio da normativa andina que, apesar da denúncia do Acordo de Cartagena pela Venezuela, estabelece que o programa de liberação estará vigente por cinco anos, ou seja, até 2011.

Palavras finais

A construção de convivência e governabilidade na região apresenta desafios cada dia mais exigentes para os governos do Brasil e da Venezuela. A firmeza do projeto bolivariano parece atrativa, ainda mais quando os níveis de pobreza na região são tão significativos, mas se desgasta com o tempo em virtude dos resultados limitados e da repetição de velhos erros. A capacidade negociadora brasileira realizou avanços importantes, mas o tempo lhe exige uma maior clareza. Os dois projetos conseguiram benefícios em seu trabalho conjunto, embora os fatores de divergência estejam aumentando. Nessa perspectiva, tudo indica que será necessária uma reflexão autocrítica e, certamente, um claro propósito de emenda: objetivos difíceis para um país que se transforma em potência e para um projeto que diz ter a razão histórica a seu lado.

  • 1. Marcel Fortuna: «La política exterior brasileña: entre la continuidad y la innovación» em Wilhelm Hofmeister, Francisco Rojas e Luis Guillermo Solís: La percepción de Brasil en el contexto internacional: perspectivas y desafíos. Tomo I: América Latina, Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) / Konrad-Adenauer-Stiftung, Rio de Janeiro, 2007, p. 7, disponível em www.flacso.org.
  • 2. Este tema é amplamente discutido em Francine Jácome: «Relaciones entre Venezuela y Brasil: cooperación energética y fortalecimiento de la integración» em W. Hofmeister, F. Rojas y L.G. Solís: ob. cit.
  • 3. Sobre este tema, v. entre outros Félix G. Arellano P.: «La integración económica y los paradigmas en América Latina» em Capítulos del sela No 49, 1-3/1997.
  • 4. Sobre os aspectos não comerciais da integração existe abundante literatura. A esse respeito, cabe mencionar F. Arellano: «Integración económica y globalización: sus paradojas, la experiencia andina» em Aldea Mundo No 14, 11/2002-4/2003; e Carlos Barba Solano: Retos para la integración social de los pobres en América Latina, Clacso, Buenos Aires, 2009.
  • 5. O soft power é um conceito originalmente promovido por Joseph Nye em The Changing Nature of American Power, Basic Books, Nova Iorque, 1990.
  • 6. Este ponto é amplamente tratado em «Whose Side is Brazil On?» em The Economist, 15-21/8/2009, p. 9.
  • 7. «Chávez: ‘Es una revolución pacífica, pero armada’» em El Heraldo, Tegucigalpa, 24/6/2009, www.elheraldo.hn/Mundo/Ediciones/2009/06/24/Noticias/Chavez-Es-una-revolucion-pacifica-pero-armada.
Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Dezembro 2009, ISSN: 0251-3552


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