Tema central
NUSO Nº Novembro 2015

Estado e tributos na América Latina Avanços e agendas pendentes

Estado e tributos na América Latina  Avanços e agendas pendentes

Nota: O autor agradece os comentários realizados por Alejandro Otero, com quem escreveu Tributos al proyecto nacional. Elementos para una reforma tributaria en la Argentina (Universidad Nacional de Moreno, em fase de impressão). Tradução de Luiz Barucke. A versão original deste artigo em espanhol foi publicada em Nueva Sociedad No 258, 7-8/2015, disponível em www.nuso.org.


Um grupo de países da América Latina se atreveu a questionar a visão de mundo predominante, inclusive antes que sua crise sistêmica se manifestasse globalmente em toda sua dimensão. Venezuela, Brasil, Argentina, Bolívia, Equador, Uruguai e Chile, com diferentes intensidades e graus de articulação entre si, orientaram suas políticas em direção a um caminho distinto daquele promovido pelo poder mundial para esses mesmos países. Para que isso ocorresse, foi necessário convergir em um prazo relativamente curto vários fatores, como o fracasso das políticas econômicas que haviam sido instrumentalizadas nos anos anteriores, o surgimento de novos atores sociais no âmbito da sociedade civil e uma retração acentuada do bloco hegemônico. Esses novos ares trouxeram com eles as políticas diferenciadoras na América Latina. E um contexto no qual a proeminência da teoria econômica sobre a política parecia indiscutível, a crise em todas as ordens que começava a ser vislumbrada (ou que já se manifestava com toda a sua intensidade em alguns países) possibilitou que ganhassem as eleições dirigentes políticos com características distintas daquelas predominantes nas últimas décadas do século xx.

Essas experiências, que poderíamos considerar como um incipiente desenvolvimento de projetos latino-americanistas, basearam-se em diferentes estratégias, determinadas em grande parte pela trilha historicamente percorrida pelos diferentes países. Consideradas conjuntamente, ainda que com diferentes nuances e dificuldades para se afirmarem, tais experiências geram a expectativa de uma «mudança de época». A atual crise mundial, que teve seu estopim em 2008, abriu uma oportunidade ao colocar em evidência o fracasso das políticas aplicadas durante o regime de liberalização do fluxo de capitais e acumulação financeira com o qual se tentou substituir o regime fordista, predominante até entrar em crise em meados da década de 1970.

Se a saída para a Grande Depressão dos anos 1930 foi mais Estado, aqueles que mantiveram suas quotas de poder durante todo esse período aproveitaram a nova crise para buscar dela sair pelo caminho inverso, isto é, com menos Estado. Como escreveu Luiz Carlos Bresser Pereira, «na década de 1970, a perda de dinamismo das economias desenvolvidas, a queda das taxas de lucro e a estagflação foram a oportunidade perfeita para que o neoliberalismo armasse seu ataque contra o Estado social. A teoria econômica neoclássica conseguiu, depois de anos de keynesianismo, recuperar um papel dominante»1.

O predomínio dessa teoria se traduziu em políticas econômicas que colocaram em discussão o papel do Estado, conhecido como benfeitor, de bem-estar ou social pela diversidade de funções e atribuições que determinavam sua área de atuação. Entre os países centrais, Estados Unidos e Grã-Bretanha lideraram a mudança de rumo no início dos anos 1980: Ronald Reagan, com sua política «pelo lado da oferta» – por meio de reforma tributária –, e Margaret Thatcher, centrada na alienação de empresas públicas e a «desregulamentação» da atividade privada. Nos países periféricos, tais políticas podem ser sintetizadas no decálogo de recomendações do Consenso de Washington de 1990, ainda que, em muitos casos, tivessem começado a se instrumentalizar muitos anos antes.

O Consenso imposto

O esgotamento do regime de acumulação fordista chegou a estas latitudes e, com ele, a discussão das versões locais de um Estado forjado ao longo de três décadas. O raciocínio empunhado parece simples: se a crise se deveu, entre outros fatores, à existência de um Estado onipresente, tornava-se necessário refazer o caminho e voltar ao Estado prevalecente antes da Segunda Guerra Mundial (ou inclusive àquele existente antes da Primeira Guerra). Instalou-se a ideia de retornar ao Estado mínimo, definido por alguns como o Estado «à Nozick»2, e por outros como o «Estado policial». Mas como costuma acontecer, os argumentos simples ocultam situações complexas. Parecia que aqueles que propuseram reduzir o Estado desconheciam o processo histórico que levou à formação desse mesmo Estado que buscavam desestruturar3.

Para atingir o objetivo do Estado mínimo nos países periféricos em geral e particularmente na América Latina, foram propostos dois marcos conceituais no início dos anos 1990: por um lado, o Consenso de Washington, que incluiu as propostas de reorientação da ação estatal em matéria de política econômica e buscou responder ao que deve fazer e para que deve intervir o Estado; por outro, a Nova Gestão Pública (ngp, New Public Management), que ofereceu um marco teórico ao processo de reforma estatal.

A ngp incorporou a descentralização da ação estatal, a reestruturação e redução do aparato institucional, e a diminuição do quadro de pessoal segundo as recomendações do Consenso de Washington. Embora haja ações que operem como pontos de interseção entre ambos – como as privatizações e, em alguns aspectos, a desregulamentação –, pode-se dizer que as orientações baseadas no Consenso de Washington estabeleceram as políticas conhecidas como de primeira geração (expressão cunhada pelo Banco Mundial), o que Oscar Oszlak chamou de «reformas para fora»4, e que a ngp deu o suporte para as reformas de segunda geração, ou «para dentro»5.

A expressão «Consenso de Washington» foi cunhada pelo neoinstitucionalista John Williamson para se referir a um decálogo de receitas de política. Embora essas propostas tenham alcançado sua plenitude na década de 1990, elas são parte das recomendações dos organismos internacionais de crédito impulsionadas como consequência da crise da dívida do início dos anos 1980 na maioria dos países periféricos, conhecidas pelo nome genérico de «ajuste estrutural»6.

Em suma, o Consenso de Washington propôs como objetivos principais e quase exclusivos de política econômica alcançar a estabilidade macroeconômica a partir do equilíbrio das contas públicas e do controle da inflação, e buscar uma menor participação e intervenção do Estado por meio de uma política de privatizações, desregulamentação da economia, abertura comercial, liberalização dos sistemas financeiros e uma reforma tributária orientada a eliminar os impostos considerados distorcivos.

A generalização das críticas a essas políticas, fundamentadas nas evidências dos resultados negativos obtidos nos países periféricos, traduziu-se em propostas que tentaram ser «superadoras», catalogadas de maneira geral como pós-neoliberais. Joseph Stiglitz, então vice-presidente do Banco Mundial durante o período 1997-2000, realizou uma forte crítica e começou a delinear um relato alternativo pelo qual se distanciava do Consenso de Washington em sua definição do papel do Estado:

É verdade que os Estados se envolvem constantemente em muitas coisas e de forma pouco focada. Essa falta de foco reduz a eficiência. Conseguir que o governo se concentre nas questões fundamentais – políticas econômicas, educação básica, saúde, estradas, lei e ordem, proteção ambiental – é um passo fundamental. Mas concentrar-se absolutamente no fundamental equivale a receitar um governo minimalista. O Estado possui um importante papel a desempenhar na produção de regulamentos apropriados, na proteção e no bem-estar social. A discussão não deveria ser se o Estado deve se envolver, mas sim como envolver-se. Assim, a questão central não seria o tamanho do governo, mas as atividades e os métodos do governo. Os países com economias bem-sucedidas possuem governos envolvidos em um amplo leque de atividades.7

Uma das vozes mais dissonantes veio da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (cepal), inclusive quando o Consenso de Washington parecia um dogma inquestionável. Mais perto dessa época, esse organismo dependente da Organização das Nações Unidas (onu) produziu, entre outros trabalhos, o que se chamou «trilogia da igualdade»: A hora da igualdade: brechas por fechar, caminhos por abrir (2010); Mudança estrutural para a igualdade: uma visão integrada do desenvolvimento (2012) e Pactos para a igualdade: rumo a um futuro sustentável (2014). Segundo Alicia Bárcena, esses documentos «propõem uma visão do desenvolvimento na qual a igualdade é o princípio ético normativo primordial e o objetivo último, a mudança estrutural é o caminho, e a política, o instrumento»8.

As visões heterodoxas ofereceram um marco teórico alternativo aos governos latino-americanos que iniciaram uma mudança de rumo e obtiveram conquistas muito significativas no padrão de distribuição e na captação dos excedentes. Como propõem Verónica Amarante e Juan Pablo Jiménez, «a década de 2000 trouxe importantes mudanças nas tendências distributivas em nível mundial. Os países da Europa, os Estados Unidos e a China continuaram com sua tendência crescente com relação à desigualdade, enquanto os países latino-americanos e do sudeste asiático reverteram a tendência anterior ao crescimento e começam a demonstrar reduções nos índices de Gini»9.

Os mesmos autores demonstram um otimismo cauteloso ao afirmarem que «para a América Latina, configura-se enfim um cenário promissor depois da piora dos indicadores de distribuição da década anterior, mesmo que, em termos internacionais, seja mantida a posição da América Latina e o Caribe como a região mais desigual do mundo».

O sistema tributário na América Latina

No que se refere estritamente ao sistema tributário, o princípio orientador das recomendações do Consenso de Washington foi privilegiar impostos que não distorcessem os preços relativos determinados pelo mercado, em detrimento daqueles que incidem progressivamente sobre a distribuição da renda. Dessa forma, entre outras questões, foram ampliadas as bases tributáveis, elevadas as taxas dos impostos sobre o consumo e reduzidas as alíquotas daqueles que obtêm lucros, particularmente das pessoas jurídicas. A orientação dessas mudanças se baseou na reforma tributária liderada por Reagan nos eua e propagou-se pelos demais países centrais.

No entanto, nesses países, as reformas que reduziram a progressividade do sistema fiscal foram realizadas de um ponto de partida no qual a igualdade não era um dos objetivos principais (validado pelos resultados). Assim, depois das modificações efetuadas, esses regimes seguiram atuando como um mecanismo formador de desigualdades sociais. A composição do sistema tributário na América Latina, por sua vez, nunca garantiu a redistribuição progressiva da renda. Dessa forma, seguir o mesmo caminho que aquele adotado pelos países hegemônicos não significou chegar ao mesmo destino.

Ainda que hoje a mudança de época seja perceptível, os sistemas tributários continuam essencialmente estruturados em consonância com o regime de valorização financeira. Os escassos avanços nesse campo demonstram que o paradigma anterior ainda é influente. Na América Latina, com exceção do Uruguai e do Equador10, não são observadas mudanças significativas na política fiscal. Conforme apontado pela cepal, «costuma-se dizer que o excesso de impostos diretos e contribuições sociais pode ser adequado para a redistribuição da renda, mas prejudicial para o crescimento econômico e o emprego. É possível afirmar que na América Latina o problema é inverso; não foi dado o papel suficiente aos sistemas tributários em sua função redistributiva e, portanto, eles não podem representar um obstáculo para o crescimento»11.

No mesmo trabalho, algumas páginas depois, é sintetizado o ocorrido até este momento em matéria tributária: em termos de equidade, pode-se dizer que foi priorizada a equidade horizontal (os agentes com igual potencial arrecadador devem suportar a mesma carga tributária) em detrimento da equidade vertical (os agentes deveriam ter uma carga tributária proporcional à sua capacidade de contribuição), que continua sendo uma tarefa pendente na região12.

Contudo, dos sete países mencionados anteriormente (Venezuela, Brasil, Argentina, Bolívia, Equador, Uruguai e Chile), cinco obtiveram um crescimento significativo da pressão tributária total, definida como a relação entre a arrecadação dos impostos e o pib. Os saltos mais relevantes foram os da Argentina e Bolívia, com cerca de 13 pontos percentuais adicionais entre 2000 e 2013; em um segundo patamar se encontra o Equador, que elevou sua pressão tributária em mais de nove pontos percentuais nesse mesmo período, seguido de Brasil e Uruguai, com uma alta de aproximadamente cinco pontos percentuais do pib.


O desempenho desses países contrasta com o ocorrido na matéria tanto na maioria dos demais países da América Latina como no conjunto daqueles que integram a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (ocde) que, em termos gerais, mantiveram uma pressão tributária semelhante à observada no início do século.

A análise da evolução da pressão tributária oferece um primeiro indício do ocorrido nesse campo, mas para compreender plenamente o desempenho do sistema tributário, é preciso contemplar o desenvolvimento dos distintos impostos que o compõem. Para simplificar esta abordagem, utilizaremos as informações consolidadas pela ocde13. A classificação por ela empregada, estruturada a partir das bases tributáveis, possui muitas limitações, especialmente para o estudo dos sistemas tributários latino-americanos, caracterizados pelo que Darío González chama de «impostos heterodoxos»14. A maior dificuldade para uma correta classificação dos impostos na América Latina origina-se na dificuldade de os países da região recorrerem a formas alternativas de tributação para captar a receita extraordinária originada em estruturas produtivas desequilibradas, em um contexto de alta evasão e elisão. Assim, funcionam como complementos da tributação sobre a receita os direitos de exportação na Argentina (as chamadas «retenções») e impostos sobre transações financeiras em vários países, especialmente Brasil e Equador, onde tais mecanismos atuam por sua vez como um regulador dos fluxos de capitais.

Os impostos sobre grandes receitas e lucros

Em termos gerais, a tributação sobre a renda aumentou ao longo dos últimos anos se medida em relação ao pib. A média simples dos sete países analisados demonstra uma pressão de 5,5% em 2013 contra 3,6% em 2000. No entanto, a comparação com os países da ocde mostra o caminho que falta percorrer nesse tipo de tributação. Ainda que a média da ocde tenha tido uma leve tendência de declínio, em 2013 esses impostos representam 11,4% do pib, mais que o dobro da realidade dos países latino-americanos.

A Venezuela representou uma exceção, pois até os primeiros anos da década de 1990 o país obtinha três quartos de sua arrecadação com a tributação sobre a receita do petróleo. A reforma daquela mesma década reduziu essa participação (por exemplo, ao começar a cobrar o Imposto sobre Valor Agregado – iva). Posteriormente, com o chavismo, o controle da produção por meio da estatal Petróleos de Venezuela (pdvsa) permitiu ao Estado captar excedentes por outros meios, e não apenas através de tributos.

O país que teve mais mudanças foi o Uruguai, por meio da reimplantação da tributação sobre as pessoas físicas ou naturais na reforma de 2006, com a aplicação do sistema dual15, que supõe um avanço na técnica desse imposto. Em contrapartida, a taxa geral do imposto sobre as sociedades teve uma tendência declinante nos anos 1990, o que foi reforçado com a reforma do governo da Frente Ampla, que a reduziu para 25%. O fato é que a incorporação de pessoas físicas permitiu ao governo triplicar a pressão tributária pelos impostos sobre a renda: as pessoas físicas contribuem com 50% da arrecadação.

O Equador também foi palco de mudanças relevantes. Nos impostos sobre pessoas físicas, foram incorporadas seções de alíquotas para elevar a alíquota marginal máxima de 25% para 35% (em 2001, havia subido de 15% para 25%). No tocante às sociedades, a reforma teve uma tendência inversa ao ser reduzida a taxa de 25% para 22% a partir de 2013. Nesse país, ainda que o avanço da pressão tenha sido importante – passou de 1,6% do pib em 2000 para 4,2% em 2013 –, ela continua em níveis relativamente baixos em comparação com os demais países estudados.

A Argentina é um caso estranho. Com respeito aos impostos sobre pessoas jurídicas, experimentou-se em 1990 uma drástica redução da taxa que durou somente dois anos e, a partir de então, ela foi sendo gradualmente elevada até chegar à atualmente vigente desde 1998, que é de 35%, a mais elevada dentre os países latino-americanos. Sobre as pessoas físicas, em 2013 foi corrigido o aspecto mais controverso ao serem incorporadas à base os ganhos de capital e lucros distribuídos, mas as críticas persistem, pois não foram modificadas as parcelas de receita sobre as quais recaem as alíquotas marginais16.

Em resumo, a tributação sobre a receita das sociedades seguiu o mesmo roteiro dos países centrais: a tendência foi claramente reduzir as taxas, embora na maioria dos países a diminuição tenha ocorrido em anos anteriores e, neste período, apenas se mantido. À tabela anexa, foram incorporados também México e Colômbia para ressaltar que a tendência de redução da taxa do imposto sobre as sociedades foi mais evidente nos países que mantêm uma política econômica ortodoxa.

Os impostos sobre o consumo

A classificação da ocde tem a particularidade de incluir na categoria de impostos sobre o consumo as taxas que possuem como fato tributável as transações comerciais com o exterior, tanto as tarifas sobre as importações como as que incidem sobre as exportações. No interior desse grupo, são subdivididos os impostos sobre o consumo geral e os específicos. Quanto aos impostos gerais sobre o consumo, o que prevalece em quase todos os países é o imposto sobre valor agregado (iva). Essa taxa foi o centro das reformas dos anos 1990 em muitos países, que universalizaram suas bases e elevaram suas alíquotas. Inclusive, na Venezuela o iva foi instituído nesse mesmo período (entrou em vigor em 1993). O Brasil é um caso especial, porque não possui iva, mas estão vigentes vários impostos gerais sobre o consumo, federais e estaduais: imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (icms), contribuição para o financiamento da seguridade social (cofins), imposto sobre produtos industrializados (ipi); a arrecadação obtida com esses tributos manteve-se relativamente estável ao longo dos últimos 20 anos se medida em relação ao produto. Nos demais países selecionados, a pressão tributária do iva e outros impostos gerais sobre o consumo teve sua maior expansão durante a década de 1990 e, portanto, foi uma das causas da maior regressividade das estruturas tributárias17.


Embora em termos gerais alguns bens e serviços permaneçam isentos ou com alíquotas reduzidas, sua base de tributação é muito distinta da vigente no momento de sua criação. Em alguns países, os governos fizeram mudanças, mas elas não foram determinantes. A alteração mais relevante ocorreu no Uruguai como parte da reforma tributária de 2006, incluindo a redução da alíquota geral de 23% para 22% e a eliminação da cofis, um imposto que atuava como um adicional ao iva com uma taxa de 3% e que era vigente desde 2001.

No quadro 4, é possível notar a evolução da alíquota geral do iva desde 1980. Nela, observa-se a tendência de alta da taxa na maioria dos países. Mesmo nos casos em que a taxa foi reduzida recentemente (Uruguai e Venezuela), ela segue mais elevada do que no momento de sua criação.


As novidades de maior destaque nesse grupo de impostos nos últimos anos não surgem da política tributária, mas de sua administração no combate à evasão. Por um lado, o avanço tecnológico permitiu uma maior sofisticação dos controles e, por outro, na maioria dos países, foram instrumentalizadas moratórias ou planos de facilidades de pagamento que permitiram a uma grande quantidade de contribuintes regularizar sua situação perante o fisco.

Quanto aos impostos específicos sobre bens e serviços, essa categoria abrange, basicamente, aqueles seletivos sobre o consumo e as tarifas sobre importações e exportações, e que, portanto, formam o componente progressivo da tributação sobre o consumo. Na Bolívia, influi de forma determinante a tributação sobre os hidrocarbonetos, o que permitiu uma expansão exponencial desses tributos no contexto da nacionalização decretada por Evo Morales em 2006 (uma das principais promessas de sua campanha eleitoral).

Também se destacam o caso da Argentina quanto aos direitos de exportação sobre os principais produtos agrícolas e seus derivados, com taxas superiores para captar o rendimento diferenciado da terra, e o do Equador, com um aumento na tributação sobre os combustíveis e a criação, na reforma de 2007, do Imposto sobre a Saída de Divisas, o que a ocde considera uma exit tax18.

Por sua vez, no Uruguai, no Chile e na Venezuela, houve nos últimos anos uma tendência de redução na arrecadação por estes tipos de impostos. Um dado que reflete a ausência de uma política tributária que diferencie o sistema de tributação desses países da tendência predominante no regime anterior é a baixa tributação sobre as importações, que teve drásticas reduções no passado com a abertura comercial e que, nos últimos anos, não sofreu mudanças significativas, com uma taxa média entre 10% e 14% e, no caso extremo do Chile, uma alíquota de 6%19.

As contribuições à seguridade social

As contribuições à seguridade social não são exatamente impostos. Como seu nome já indica, elas são as fontes de contribuição aos sistemas de seguridade social em geral e, particularmente, aos sistemas previdenciários. No entanto, diante da magnitude de sua arrecadação e em virtude de algumas discussões teóricas, elas costumam ser consideradas no conjunto de arrecadações tributárias20. Em todo caso, a principal distinção entre os países analisados neste artigo vincula-se estreitamente ao grau de desenvolvimento dos sistemas de seguridade social; nos casos de Brasil, Argentina e Uruguai, há sistemas universais de partilha que marcam a diferença em termos das contribuições de suas fontes. Esses países obtêm receitas em relação ao produto muito semelhante àquelas dos países da ocde. Em contraste, os países com regime menos desenvolvido e/ou privatizado obtêm escassos recursos através dessas fontes21.

Cabe destacar as mudanças no regime previdenciário argentino. Em meados dos anos 1990, foi instituído um sistema misto de distribuição estatal e capitalização privada que desviou parte desses recursos para administradoras de fundos de aposentadorias e pensões (administradoras de fondos de jubilaciones y pensiones, afjp). Mas, no final de 2008, retrocedeu-se com a medida e foi recuperado o regime único de distribuição estatal. Ainda que essas mudanças não expliquem por si sós a expansão da receita proveniente dessa fonte ao longo dos últimos anos, elas são um fator alheio ao sistema tributário a ser contemplado na análise.

Os impostos sobre a propriedade

O desenvolvimento dos impostos sobre a propriedade na América Latina é muito limitado e, talvez, a maior questão pendente para dispor de um sistema tributário progressivo. No entanto, um leitor apressado poderia interpretar que o aporte feito por esses tributos em diversos países é superior à média simples da ocde; no caso de Argentina, Brasil, Bolívia e Uruguai, com uma arrecadação de 1,8% do pib em 2013. Como esse dado pode ser compatível com a afirmação que dá início a este parágrafo?

A resposta está na inclusão das transações financeiras nesta categoria de impostos22. Na Argentina, está neste item a cobrança realizada sobre os créditos e débitos bancários (conhecida como «imposto sobre o cheque»), que arrecada 1,7% do pib e explica mais da metade da receita por essa categoria. No Brasil, está incluído nessa categoria o imposto sobre operações financeiras (iof), que contribui para um terço da arrecadação. Na Bolívia, o imposto sobre transações financeiras (itf), com características semelhantes às do argentino, obtém quase toda a receita lá catalogada. O Uruguai é o único caso em que o imposto sobre o patrimônio líquido das empresas representa mais de 50% da arrecadação, sobretudo com as mudanças introduzidas ao longo dos últimos anos; a receita restante é obtida com o imposto sobre a propriedade imóvel e, em menor medida, com um imposto sobre transações financeiras.

Comentários com final aberto

Pode-se assumir como corolário que, para além dos avanços díspares na arrecadação de impostos em quase todos os países analisados, é inquestionável que a adequação do sistema tributário ao novo papel de Estado que se busca atribuir compõe a agenda pendente para aprofundar transformações em curso. A necessidade de uma reforma tributária é, ao menos aparentemente, um dos poucos aspectos em que se pode perceber a existência de um consenso generalizado entre os analistas da matéria. No entanto, quando se começa a indagar sobre seu conteúdo, surgem diferenças irreconciliáveis entre aqueles que a defendem. Em uma publicação recente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (bid), são resumidas essas diferenças de uma forma muito simplificada mas gráfica:

A ideologia pode influenciar nos objetivos da reforma, bem como no tipo de impostos sujeitos a reformas. Os governos de tendência esquerdista se concentrarão mais no objetivo da redistribuição, como aumentar as taxas de imposto sobre a renda. Por sua vez, os governos de direita, que supostamente são mais favoráveis às empresas, darão mais ênfase à neutralidade fiscal e na diminuição das distorções de mercado.23

Em geral, quando se pensa em uma reforma tributária é dada mais atenção às mudanças normativas realizadas na política fiscal. Entretanto, a administração tributária possui um papel fundamental para garantir que as modificações de política produzam mudanças efetivas sobre o padrão distributivo vigente. Em outras palavras: a política tributária pode ocupar os espaços vazios e reduzir a elisão fiscal, mas também é importante combater a evasão. Ainda que evasão não distinga entre classes sociais, a resistência das elites econômicas a uma maior tributação pode se materializar na busca de mecanismos para reduzi-la. De forma geral, as camadas sociais mais ricas da população aproveitam ao máximo as brechas normativas para evitar o pagamento de impostos, mas esse caminho é limitado (e uma reforma na política tributária deveria restringir isso), e a mesma parcela da população não costuma ter escrúpulos para pura e simplesmente sonegar o pagamento de impostos.

Não parece coincidência que os impostos progressivos sejam os mais elididos ou evadidos. Nos impostos sobre a propriedade, o não pagamento pode tomar a forma de morosidade, evasão ou elisão, embora não existam estudos recentes que forneçam mais dados sobre a magnitude desses fenômenos. Juan Carlos Gómez Sabaini, Juan Pablo Jiménez e Andrea Podestá24 realizaram estimativas da evasão dos impostos sobre a renda em alguns países da América Latina. Embora esses trabalhos tenham muitas limitações – reconhecidas por aqueles que desenvolveram os estudos –, em virtude das restrições de informação existentes, os cálculos da evasão lançam proporções muito elevadas, que vão de quase 42% no México a pouco menos de 64% no Equador e na Guatemala.

Por outro lado, quando a evasão recai sobre os impostos que fornecem progressividade à estrutura, isso afeta não só a equidade horizontal, mas também a vertical. Esse é um importante elemento a abordar, não apenas no que se refere à capacidade de arrecadação e controle dos órgãos responsáveis pela administração tributária, mas também quando se redesenha o sistema fiscal. Essa posição é compartilhada por diversos autores, entre eles os tributaristas argentinos Jorge Gaggero25 e Alejandro Otero. Este último destaca que «no âmbito das sociedades marcadas pela desigualdade e a assimetria de poder, as instituições fiscais e os impostos em particular expressam a correlação de forças entre os distintos atores econômicos e sociais. E, ao mesmo tempo, o sistema tributário se torna ‘arena’ de resolução de conflitos de interesses entre eles. De modo que os atores tendem a percebê-lo como um instrumento maleável a serviço de seus interesses»26.

A cepal reflete uma linha semelhante quando, ao propor um novo pacto fiscal pela igualdade, defende:

A extensão da desigualdade de renda na região influenciou a atual realidade do sistema tributário, o que gera um círculo vicioso de desigualdade de renda e regressividade tributária, em lugar de um círculo virtuoso que possibilite, através do esquema tributário, a correção dos grandes desequilíbrios de renda. (…) A partir da ótica política, é evidente que a desigualdade social pode promover o surgimento de «grupos de elites» que buscam reduzir sua carga tributária relativa, seja por meio do controle do processo legislativo ou buscando que se legislem normas tributárias com tais efeitos.27

Quem defende o paradigma que se encontra em franco retrocesso costuma afirmar que o Estado deve cumprir com sua função redistributiva por meio do gasto público social, concentrando-se nos estratos de menor renda. No entanto, esse argumento começou a perder espaço, tanto em relação às características e ao desenho das políticas públicas – ao recuperarem terreno as visões favoráveis às ações de caráter universal – como no papel que cabe aos sistemas tributários nesse aspecto. As perspectivas esboçadas dão um claro sinal sobre qual deveria ser o propósito da reforma na América Latina: orientar-se a acompanhar e sustentar a mudança de paradigma iniciado. Para isso, a reforma deve reforçar a função dos tributos como instrumento de política fiscal para incentivar seletivamente a acumulação produtiva, favorecer a criação de empregos formais e, acima de tudo, reduzir as desigualdades sociais determinadas pelo mercado. Ao mesmo tempo, é importante determinar se estão dadas as condições para avançar nesse sentido, consideração que, de maneira geral, é descuidada quando se proclama a necessidade de uma reforma tributária. Para poder ser realizada, ela deve estar precedida de uma análise sobre sua governabilidade, o que requer contemplar o grau de dificuldade da proposta e medir as variáveis que são possíveis de controlar e aquelas que não são possíveis, com destaque especial para as resistências à mudança e à correlação de forças que prevalecem. Trata-se, nem mais nem menos, de planejamento estratégico situacional, nos termos desenvolvidos por Carlos Matus28. Como propôs esse autor, para levar adiante uma determinada ação, deve-se considerar previamente o que ele chamou de «triângulo de governo», que possui em seus vértices: a) o projeto de governo, que dá precisão sobre os meios e objetivos, e contempla o intercâmbio de problemas; b) a capacidade de governo, que reflete a perícia para conduzir a mudança proposta; e c) a governabilidade do sistema, que expressa o grau de dificuldade da proposta e das ações a realizar, e se correlaciona com a aceitação ou a rejeição por parte dos atores sociais envolvidos.

Se a conclusão é que se dispõe dos consensos suficientes para sustentar e defender a implementação das mudanças necessárias, torna-se imperativo encontrar o momento mais oportuno para realizá-las. A experiência argentina, com a fracassada tentativa de impor retenções móveis às exportações de produtos agropecuários em 200829, e os recentes acontecimentos no Equador, que levaram o presidente Rafael Correa a retirar os projetos de imposto sobre heranças e sobre o lucro imobiliário30, são exemplos contundentes das dificuldades para consolidar o caminho de adaptar o sistema tributário a um projeto político popular latino-americanista.

  • 1.

    L.C. Bresser-Pereira: «El asalto al Estado y al mercado: neoliberalismo y teoría económica» em Nueva Sociedad No 221, 5-6/2009, p. 94, disponível em http://nuso.org/media/articles/downloads/3611_1.pdf.

  • 2.

    Pelo filósofo libertário Robert Nozick, autor de Anarquía, Estado y utopía [1974], Fondo de Cultura Económica, México, df, 1988.

  • 3.

    Oscar Oszlak: «Estado y sociedad: nuevas fronteras y reglas de juego» em Enoikos No 19, 11/2001.

  • 4.

    Ibid.

  • 5.

    A distinção de Oszlak é mais precisa que a do Banco Mundial: as reformas para fora buscam minimizar a ação do Estado; e as reformas para dentro, redefinir sua forma de funcionamento.

  • 6.

    Na realidade, são encontrados antecedentes na década de 1970, particularmente nas políticas implementadas por governos ditatoriais do Chile (a partir do golpe de Estado de 11 de setembro de 1973 conduzido por Augusto Pinochet) e da Argentina (a partir do golpe de 24 de março de 1976, liderado por Jorge Rafael Videla).

  • 7.

    J. Stiglitz: «Más instrumentos y metas más amplias para el desarrollo. Hacia el Consenso post-Washington» em Reforma y Democracia No 12, 10/1998.

  • 8.

    A. Bárcena: «Prólogo» em A. Bárcena y Antonio Prado (eds.): Neoestructuralismo y corrientes hete­rodoxas en América Latina y el Caribe a inicios del siglo xxi, cepal, Santiago do Chile, 2015.

  • 9.

    V. Amarante y J.P. Jiménez: «Desigualdad, concentración y rentas altas en América Latina» em J.P. Jiménez (ed.): Desigualdad, concentración del ingreso y tributación sobre las altas rentas en América Latina, cepal, Santiago do Chile, 2015.

  • 10.

    E recentemente o Chile, ainda que seja discutível que a reforma de 2014 esteja em sintonia com a mudança de orientação a que nos referimos.

  • 11.

    cepal: Espacios iberoamericanos: hacia una nueva arquitectura del Estado para el desarrollo, cepal, Santiago do Chile, 2011.

  • 12.

    Ibid.

  • 13.

    ocde: Estadísticas tributarias en América Latina y el Caribe. 1990-2013, ocde, 2015.

  • 14.

    D. González: «La política tributaria heterodoxa en los países de América Latina», Serie Gestión Pública No 70, Instituto Latinoamericano y del Caribe de Planificación Económica y Social (ilpes) – cepal, Santiago do Chile, janeiro de 2009.

  • 15.

    O imposto sobre a renda de pessoas físicas pode ser aplicado por meio de diferentes técnicas que vão desde a tributação cedular (cada fonte de receita é registrada de forma independente) até a integrada (são agrupadas todas as fontes para um tratamento comum). O sistema dual, conhecido como escandinavo, diferencia as fontes provenientes do capital e do trabalho.

  • 16.

    As mudanças introduzidas no mínimo não tributável permitiram que a população assalariada que paga o imposto se mantivesse em torno de 10% dos empregados registrados, mas aqueles que são atingidos – inclusive muitos trabalhadores qualificados – contribuem com uma carga efetiva superior à de alguns anos atrás. Da mesma forma, esse imposto é aquele que fornece a maior progressividade ao sistema tributário argentino.

  • 17.

    Embora esses impostos estejam estigmatizados como muito regressivos, nem sempre foi assim, e tampouco deveria ser no futuro se fossem modificadas suas características técnicas. V. a esse respeito A. Iñiguez: «iva progresivo, ¿la más maravillosa música?» em Voces en el Fénix No 14, 5/2012.

  • 18.

    Impostos que têm como objetivo desestimular a troca de residência das pessoas que o fazem para reduzir a carga tributária. São aplicados em vários países centrais para evitar a radicação em guaridas (ou paraísos) fiscais. No caso do Equador, é mais comparável a um imposto sobre transações financeiras do que a este tipo de tributação.

  • 19.

    Segundo dados de Ana Corbacho, Vicente Fretes Cibils e Eduardo Lora (eds.): Recaudar no basta. Los impuestos como instrumento para el desarrollo, bid, 2013, pp. 47-48.

  • 20.

    Esta discussão poderia ser solucionada ao considerar a distinção entre tributos e impostos. Nesse caso, as contribuições seriam parte dos tributos, mas não dos impostos.

  • 21.

    Na Bolívia, como parte das políticas dos anos 1990, foi instituído o Bonosol, uma renda anual destinada a maiores de 65 anos, paga com recursos provenientes das ações de propriedade do Estado nas empresas capitalizadas (privatizadas). Evo Morales transformou o recurso na «Renta Universal de Vejez» («Renta Dignidad»), baixou a idade mínima para o recebimento do benefício para 60 anos, transformou-o em mensal e aumentou seu valor. Ele é pago fundamentalmente com impostos cobrados sobre hidrocarbonetos.

  • 22.

    Esses impostos também são progressivos e um instrumento útil para captar potenciais receitas extraordinárias, sobretudo em economias com índice elevado de informalidade como as analisadas. Mas como taxam os fluxos no lugar dos stocks, eles deveriam ter um tratamento distinto dos impostos sobre a propriedade.

  • 23.

    A. Corbacho, V. Fretes Cibils e E. Lora: op. cit., p. 54. A linguagem utilizada se exime de incluir onde é feita essa afirmação.

  • 24.

    J.C. Gómez Sabaini, J.P. Jiménez e A. Podestá: «Tributación, evasión y equidad en América Latina y el Caribe» em J.C. Gómez Sabaini, J.P. Jiménez e A. Podestá (comps.): Evasión y equidad en América Latina y el Caribe, cepal / gtz, Santiago do Chile, 2010.

  • 25.

    J. Gaggero: «La progresividad tributaria. Su origen, apogeo y extravío (y los desafíos del pre­sente)», Documento de Trabajo No 23, cefidar, dezembro de 2008.

  • 26.

    A. Otero: «El federalismo fiscal argentino y sus fatigas. Una mirada desde la administración tributaria» em Entrelíneas de la Política Económica No 10, 5/2008.

  • 27.

    cepal: Espacios iberoamericanos: hacia una nueva arquitectura del Estado para el desarrollo, cepal, Santiago do Chile, 2011.

  • 28.

    C. Matus: Los tres cinturones del gobierno, Universidad Nacional de La Matanza / Fundación cigob / Fundación Altadir, San Justo, 2007.

  • 29.

    A prática consistia em cobrar taxas diferenciadas e incrementais segundo o preço da exportação sobre a soja, o girassol, o milho, o trigo e seus subprodutos com a finalidade de refinar a extração da renda extraordinária obtida com cada um desses cultivos.

  • 30.

    Neste último caso, busca-se captar a renda gerada pelo aumento do preço dos imóveis como consequência de obras de infraestrutura realizadas pelo Estado.


En este artículo
Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Novembro 2015, ISSN: 0251-3552


Newsletter

Suscribase al newsletter