Tribuna global
NUSO Nº Agosto 2016

Direitos humanos e globalização econômica Uma agenda urgente no debate internacional

Existem na atualidade fortes assimetrias entre as empresas e as populações e, em muitos casos, entre as empresas e os Estados. Essas assimetrias geram situações de abusos e violações dos direitos humanos, além de bloquear o acesso das populações afetadas à Justiça. Em consequência, as companhias têm responsabilidade direta ou indireta por uma série de crimes contra a vida, o meio ambiente, a liberdade sindical, os consumidores e a saúde das pessoas. O artigo analisa esse contexto para destacar a importância do tema «direitos humanos e empresas», que busca limitar a apropriação extrema e desigual das riquezas comuns e promover um sistema jurídico que proteja as pessoas.

Direitos humanos e globalização econômica  Uma agenda urgente no debate internacional

Introdução

«Direitos humanos e empresas» não é um tema novo, mas é um tema urgente. Constitui uma das frentes de questionamento à mundialização selvagem do capital, do desenvolvimento social e economicamente insustentável. Busca uma forma de limitar, mediante o direito das pessoas, a possibilidade de apropriação extrema e desigual das riquezas comuns e dos bens naturais de todos, fornecendo ao mesmo tempo a ideia de um sistema jurídico que proteja as pessoas – em particular, as que se encontram nas fronteiras da defesa da sua dignidade –, a sua vida e, com ela, a vida de todos nós.

As palavras podem parecer abstratas, mas a realidade é crua e próxima. São crimes contra a vida, contra o meio ambiente e as condições de vida, contra a liberdade sindical, crimes de trabalho escravo, contra os consumidores e a saúde das pessoas. Crimes pelos quais as empresas detêm responsabilidade direta ou indireta, por ação ou omissão.Na noite de 3 de março de 2016, Berta Cáceres, coordenadora geral do Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras (copinh), foi assassinada por quatro homens em sua casa; o ativista mexicano Gustavo Castro, que estava com ela, levou um tiro de raspão na orelha direita. Em 2 de maio, as autoridades hondurenhas prenderam quatro suspeitos do assassinato, dois deles vinculados às forças de segurança desse país e os outros dois à empresa desa, encarregada de levar adiante o projeto hidroelétrico Água Zarca, sobre o rio Gualcarque, ao qual Berta e seus companheiros se opunham. Os financiadores do projeto, o Banco Centro-Americano de Integração Econômica (bcie), o Finnfund e o Banco de Desenvolvimento Holandês (fmo), foram advertidos por Berta sobre a violência e a violação aos direitos humanos ao redor do projeto, mas continuaram com o financiamento até depois da morte da ativista. Hoje são considerados corresponsáveis da violência na região.

Em 22 de março do mesmo ano, Sikhosiphi «Bazooka» Radebe, ativista contra a mineração em Mdatya, Amadiba, África do Sul, foi assassinado também em sua casa, diante de seu filho mais novo. Bazooka era diretor do Comitê de Crise Amadiba, que resistia ao projeto de mineração de areias em Xolobeni, na costa leste do país. O projeto é tocado por uma subsidiária da companhia australiana de mineração Mineral Commodities Limited (mrc). A morte aconteceu após um longo e bem documentado histórico de conflitos em torno do projeto e das populações afetadas cujas preocupações não estavam sendo atendidas.

Em 5 de novembro de 2015, o povo brasileiro foi vítima do maior crime socioambiental já vivenciado na história do país, com o rompimento da barragem de rejeitos de minério da Vale/Samarco/bhp, dando início a um desastre que tem causado impactos incalculáveis nos estados de Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia. Os indiciados como responsáveis pela maior tragédia ambiental do Brasil, que deixou ao menos 17 mortos e gerou um tsunami de lama que atingiu o Rio Doce e chegou ao litoral do Espírito Santo, podem responder por crimes que contemplam penas previstas de um a cinco anos de prisão.

Em 24 de abril de 2013, o prédio de oito andares conhecido como Rana Plaza, em Bangladesh, desabou matando 1.127 trabalhadoras e trabalhadores que ali se encontravam. O prédio albergava fábricas de roupas independentes vinculadas às cadeias de suprimento das marcas Benetton, The Children’s Place, Primark, Monsoon, DressBarn e h&m. Advertências feitas na véspera da tragédia a partir do surgimento de rachaduras foram desconsideradas. A maioria das vítimas foram mulheres, e inclusive seus filhos que ficavam em uma creche no mesmo lugar.

Na madrugada de 3 de dezembro de 1984, em Bhopal, na Índia, gases tóxicos da fábrica de pesticidas da Union Carbide – depois adquirida pela Dow Chemicals – mataram 3.000 pessoas de forma direta e aproximadamente outras 10.000 indiretamente, sendo que 150.000 ainda sofrem os efeitos do acidente. Embora o vazamento tenha sido causado por cortes de despesas que afetaram as condições de segurança na fábrica indiana, a Union Carbide não aceita até hoje a responsabilidade pelo ocorrido. Esse caso, junto com o assassinato de membros do povo Ogoni na Nigéria, é paradigmático e serve como bom exemplo do que estamos trabalhando.

Um histórico

Situações de graves violações de direitos fundamentais como as aqui mencionadas já chamam a atenção de acadêmicos e agentes públicos envolvidos na gestão dos assuntos internacionais ao menos desde os anos 70. Foi em 1973, após a atuação da International Telephone and Telegraph Company (itt) no Chile, segundo Joseph Nye, que o Senado americano e a própria Organização das Nações Unidas (onu) começaram a se preocupar com a atuação das empresas transnacionais e o impacto de suas operações nos direitos humanos e em escândalos de corrupção revelados pela comissão do Congresso americano, bem como na democracia, como parte essencial do arcabouço que os protege. O artigo seminal de Nye se refere ao trabalho do «Grupo de Pessoas Eminentes» convocado pela onu, cujo informe final origina o primeiro Centro sobre Corporações Transnacionais, com o objetivo de monitorar a atuação das empresas transnacionais, prover informação e assessoramento e avaliar a possibilidade de um acordo multilateral que pudesse talvez ter forma de código de conduta. A ideia, contudo, não prosperou e as mudanças econômicas e políticas internacionais nos anos 80 e 90 fizeram com que o Centro fosse abolido em 1993 e muitas de suas funções de monitoramento, assumidas pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (unctad, por sus siglas en inglês). Desses anos é também a iniciativa da Organização Internacional do Trabalho (oit) de criar uma Declaração Tripartite de Princípios sobre Empresas Multinacionais e Políticas Sociais. Em vez de uma convenção, esse formato não vinculante apareceu como mais conciliatório do que a «agressividade» que o Código de Conduta proposto pelo Centro sugeria. De fato, essa aproximação mais incisiva da onu encarnada na ideia de um código de conduta com caráter multilateral mudaria para uma atitude mais «voluntária» e amigável em relação às corporações no auge do consenso de Washington e das políticas neoliberais. Foi Kofi Annan, secretário-geral da onu, que em 1999, em ação combinada com o Fórum Econômico Mundial de Davos, lançou o chamado Pacto Global, um conjunto de dez princípios voluntários sobre boas práticas corporativas no âmbito internacional cobrindo direitos humanos, padrões laborais, ambientais e anticorrupção. Na atualidade, mais de 17 anos depois de seu lançamento, o Pacto Global conta com a assinatura de mais de 12.000 corporações e stakeholders de 170 países. Seria o momento dourado da perspectiva da «responsabilidade social corporativa», amplamente criticada pelos defensores dos direitos humanos, que identificam nela uma forma de publicidade empresarial que em raras ocasiões compensa as perdas sociais, ambientais ou econômicas que a operação da empresa gera. Em particular, apesar desses números que falariam de uma alta adesão e melhoras nos padrões sociais, trabalhistas, de corrupção e de direitos humanos, verifica-se que o alcance dessa iniciativa deixa muito a desejar.

O Brasil, que participa do Pacto Global com aproximadamente 380 empresas, não tem tido relevância na hora de, por exemplo, trabalhar com questões de corrupção. Odebrecht, Engevix, Petrobras, Camargo Corrêa e várias outras, por exemplo, são signatárias, mas mesmo tendo admitido atuação em escândalos de propina – o que já fala do engajamento pífio das companhias – não recebem nenhuma ação de parte do Pacto Global. A última reunião do Grupo de Trabalho sobre corrupção aconteceu em dezembro de 2013. Foi um momento de reflexão sobre os avanços do tema no mundo e algumas campanhas – como a Corrupção Zero –, mas sem nenhum tipo de sanção concreta. O pior castigo seria a expulsão do Pacto, o que, segundo eles mesmos, devese geralmente ao fato de o signatário não ter comunicado progressos para o avanço dos dez princípios. Por fim, um comunicado de 2012 do Escritório do Pacto Global reclama que, apesar do alto número de adesões, «grande maioria das empresas do mundo não tem feito ainda nenhum compromisso em relação aos princípios universais, agindo como um obstáculo aos esforços pela sustentabilidade».

No início da década de 2000, uma nova tentativa de normas mais fortes surgiu como contraponto ao Pacto Global também no seio da onu, desta vez vinculada diretamente ao debate sobre direitos humanos: as Normas sobre a Responsabilidade das Corporações Transnacionais e Outras Empresas em Relação aos Direitos Humanos, chamadas no jargão genebrino de «As Normas». As Normas foram negociadas entre agosto de 1998 e agosto de 2003 por um grupo de membros da Subcomissão sobre a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos, parte da Comissão de Direitos Humanos da onu, e aprovadas em agosto de 2003 pela Subcomissão, que as remeteu para a Comissão com a recomendação de criar um grupo intergovernamental para a negociação e adoção final, onde finalmente morreram. Elas significaram um avanço importante e, de alguma forma, configuraram os termos do debate como ele vem se dando na atualidade. Implicavam um nível de obrigatoriedade para os Estados que eles não estavam em condições de assumir. Muitos deles as rejeitaram por sediarem matrizes das corporações, ou por estarem em vias de desenvolver as suas próprias – já nesses anos se registrava a irrupção de empresas transnacionais de países como Brasil, Índia, China e, a partir do final dos anos 90, da Rússia.

A morte das Normas não significou, porém, a morte do tema. Muito pelo contrário: ele continuou alto na agenda, mas voltando à opção «não vinculante». O professor de Harvard de origem austríaca John Ruggie, que já havia sido assessor de Kofi Annan na elaboração do Pacto Global, foi mais uma vez chamado em 2005 pelo secretário-geral da onu para exercer como seu representante especial para o tema de Empresas e Direitos Humanos, revisitar o debate, consolidar o estado do jogo e propor um caminho a ser adotado pela onu em relação ao desafio. Ruggie trabalhou em uma proposta, realizou inúmeras consultas em vários pontos do planeta e com diversos atores – de empresas e da sociedade civil – para logo produzir e propor ao Conselho de Direitos Humanos da onu em 2008 o que ele chamou de Arcabouço da onu para «Proteger, Respeitar e Remediar» (un Protect, Respect and Remedy Framework). O Conselho aprovou e estendeu o mandato de Ruggie por mais três anos para que pudesse propor uma forma de operacionalizar a proposta. Como produto de seu trabalho, em 2011 foram aprovados os «Princípios Orientadores da onu sobre Empresas e Direitos Humanos: Implementando o Arcabouço Proteger, Respeitar e Remediar» (Guiding Principles). Junto com o endosso do Conselho aos Princípios foi aprovada a criação de um Grupo de Trabalho encarregado da divulgação e promoção do novo arcabouço, assim como a realização de visitas a países para avaliar a situação dos direitos humanos e as empresas – em dezembro de 2015 membros do grupo visitaram o Brasil – e impulsionar a construção de Planos Nacionais de Ação, a ferramenta que avaliaram como a melhor para que os países desenvolvessem um compromisso maior com os Princípios.

O round derradeiro

Mas esse não é o fim da história. Setores da sociedade civil e da academia, que não aceitaram o desfecho do processo pilotado por Ruggie e não concordaram com a lógica do «pragmatismo de princípios» sugerida por ele, continuaram a insistir na necessidade de obrigações vinculantes para as empresas transnacionais no âmbito internacional. Em setembro de 2013, Equador e África do Sul, ecoando essa demanda, lideraram a construção de uma declaração assinada por mais de 80 países na qual voltaram a afirmar a urgência de um instrumento dessa natureza: «O crescente número de casos de abusos e violações dos direitos humanos cometidos pelas empresas transnacionais lembra-nos da necessidade do avanço para um instrumento juridicamente vinculante para regular o trabalho das empresas transnacionais e prover proteção, justiça e reparações adequadas às vítimas dos abusos contra os direitos humanos, relacionados com as atividades das companhias transnacionais e outras empresas». Entre setembro e junho de 2014 os acontecimentos se aceleraram e, no contexto da renovação do mandato de três anos do Grupo de Trabalho dos Princípios Orientadores, nessa última data, o grupo de Estados liderados pelos dois países do Sul e uma ampla coalizão de organizações da sociedade civil, no âmbito da chamada Aliança do Tratado, iniciaram uma forte campanha para incluir um mandato a fim de que o Conselho iniciasse um processo para um tratado. Em vez de uma proposta técnica endossada pelo Conselho, os promotores da ideia propunham a criação de um grupo de trabalho intergovernamental que realmente negociasse entre Estados a elaboração de um instrumento jurídico que dotasse o sistema do direito internacional de uma ferramenta obrigatória em matéria de direitos humanos e empresas. O grupo de países que promoviam a renovação do mandato do Grupo de Trabalho dos Princípios Orientadores não conseguiu construir uma proposta de resolução que acomodasse as diversas sensibilidades no Conselho, o que obrigou os promotores da negociação multilateral de um tratado a propor uma resolução autônoma dedicada a esse fim. Em junho de 2014, o Conselho adotou uma resolução de renovação do mandato do Grupo de Trabalho sobre Direitos Humanos e Empresas por consenso e aprovou uma outra resolução para a «Elaboração de um instrumento legal internacional vinculante sobre empresas transnacionais e outras em relação aos direitos humanos».

Dois processos «complementares»?

Temos hoje então um cenário internacional de convívio entre essas duas linhas de atuação em torno do tema: a negociação de um tratado e a implementação dos Princípios Orientadores.

Nessa última linha de ação, o Grupo de Trabalho encarregado de promover os Princípios tem realizado consultas regionais e visitas a países, além de organizar um fórum anual em Genebra sobre Empresas e Direitos Humanos no qual empresas, governos e organizações da sociedade civil debatem diversos aspectos, políticas e práticas em relação ao tema. Mas a ferramenta central de trabalho do Grupo são os Planos de Ação Nacionais (National Action Plans, naps) que, como o próprio nome diz, são o pacote de políticas que os países se comprometem a realizar no ambito doméstico para a implementação dos Princípios. Desde 2011, segundo o Business & Human Rights Resource Center, oito países já possuem planos e 28 estão em processo de preparação. A Colômbia é o único pais da América Latina que tem plano e, segundo essa lista, Brasil, México, Chile e Argentina estão desenvolvendo os seus.

Genericamente, pode-se afirmar que os países que sediam as principais corporações transnacionais – sendo os Estados europeus os mais proativos nessa briga – e as associações empresariais internacionais e nacionais foram os que rejeitaram a abertura de uma negociação internacional de um tratado. Juntamente com eles, estão países do Sul que, por afinidade ideológica, pressão política ou conveniência estratégica vinculadas ao não bloqueio de potenciais investimentos, apoiam o processo dos Princípios Orientadores.

Do outro lado, o processo em prol do tratado iniciou suas atividades com a realização da primeira sessão do Grupo de Trabalho Intergovernamental, entre 6 e 10 de julho de 2015. O primeiro grande sucesso da iniciativa foi a aprovação do plano de trabalho e a eleição da presidência, que ficou nas mãos da representante permanente do Equador em Genebra, embaixadora Maria Fernanda Espinoza Garcés. A aprovação do plano de trabalho é avaliada nos âmbitos da onu como um sinal de sucesso, sendo que há casos de grupos de trabalho que depois de mais de 15 anos não conseguem alcançá-la e suas atividades ficam paralisadas. Estiveram presentes 60 países, sendo que a União Europeia participou da primeira jornada e da segunda (pela manhã), que foram decisivas para o andamento do Grupo, retirando-se logo depois de infrutuosos esforços para inviabilizar a sessão. No entanto, alguns de seus membros participaram de toda a sessão, com destaque para a França. O Brasil e outros 18 países da América Latina e do Caribe também participaram. O calendário, segundo a resolução, conta, além dessa reunião, com uma segunda em outubro de 2016 e uma final em 2017, onde seria apresentado um rascunho de tratado sobre o qual seria iniciada uma negociação definitiva.

Questões de direito

A questão na atualidade, como se vê, é a tensão crescente entre a expansão da economia na era da globalização e os direitos das pessoas, ou seja, os direitos humanos. Os problemas emergem a partir da existência de fortes assimetrias entre as companhias – o poder económico – e as populações e, em muitos casos, entre as companhias e os Estados. Essas assimetrias são as que geram as situações de abusos, crimes e violações dos direitos humanos, ou, genericamente, bloqueiam o acesso à Justiça das populações afetadas. Os três pilares propostos nos Princípios Orientadores são apropriados para descrever a realidade: a obrigação dos Estados de proteger as populações de crimes contra os seus direitos; a obrigação das empresas de respeitar os direitos humanos; e a obrigação de quem violar os direitos ou realizar crimes, de remediar – ou compensar – as vítimas. Fazer com que isso seja uma realidade implica a adoção de algo similar a uma «antropologia positiva», mas aplicada a uma entidade jurídica – as empresas – entendendo que elas vão, de forma autônoma e voluntária, limitar e controlar a sua ação direta ou indireta para evitar violações (eis aqui o princípio da due diligence).

O problema é que, se isso não ocorrer, na visão dos Princípios, a responsabilidade ficará nas mãos dos Estados, e, se os Estados são vulneráveis às influências – ou às decisões – das empresas, a garantia dos direitos das populações, ou a obrigação dos Estados de proteger, é fortemente questionada. Infelizmente, nos últimos anos, para tomar como referência a etapa atual do capitalismo global, são muitos os casos que reportam esse tipo de problemas e que fazem com que muitos insistam na necessidade de ter algum tipo de arranjo internacional que permita que os três pilares de Ruggie, se é que eles são uma boa referência, sejam de fato aplicados com algum tipo de força ou obrigatoriedade complementar à oferecida pela jurisdição nacional.

São várias as situações que devem ser consideradas: a primeira diz respeito a como responsabilizar as empresas – pessoas jurídicas – por violações aos direitos humanos, sendo que eles são de reponsabilidade dos Estados, que são os únicos que, na doutrina, «violam» os direitos humanos. A solução passa pela criação de leis e normas em âmbito nacional que operacionalizem esses direitos e transformem as violações das empresas em «crimes» ou «abusos». Aqui, mais uma vez, é central o papel do Estado-nação, pois fica tudo sob sua responsabilidade. Uma opção muito discutida é a de ir para o sistema internacional, «positivizar» os direitos humanos, ou seja, transformá-los em lei, e tornar as empresas responsáveis também nesse nível. Essa possibilidade coloca outros desafios: a) a necessidade de estabelecer um mecanismo de aplicação; b) a própria positivação dos direitos humanos; e c) o fato de outorgar às empresas estatuto jurídico internacional similar ao dos Estados, incluindo obrigações, mas também direitos. Uma opção intermediária proposta por alguns grupos é a da adoção internacional das regras de extraterritorialidade que falam «das obrigações dos Estados em matéria de direitos humanos em relação a pessoas fora de seu território» e que permitiriam a possibilidade de as vítimas acessarem a Justiça em mais de uma jurisdição nacional, assim como a cooperação oficial nos processos entre sistemas judiciais de vários Estados.

Outra questão importante é a de identificar os responsáveis das ações contra os direitos humanos. Nesse quesito, a primeira distinção é a responsabilização da empresa como pessoa jurídica e/ou a dos seus diretores. Nos casos de corrupção no Brasil, por exemplo, os diretores são os responsáveis e não as empresas; já na Holanda, as empresas podem fazer acordos formais com a Justiça poupando os executivos que tomaram de fato as decisões. Uma segunda dimensão dessa questão é a responsabilidade «solidária» das empresas matrizes com as suas filiais, subsidiárias ou cadeia de fornecedores. A pergunta que deve ser respondida é, por exemplo, qual a responsabilidade da Benetton pelas condições de trabalho do complexo de Rana Plaza em Bangladesh, que está na ponta da sua cadeia de fornecedores. Ou da Zara pelos casos de trabalho escravo identificados em oficinas de costura que produzem para a marca espanhola no Brasil. Duas outras questões associadas a essa última são debatidas intensamente no âmbito internacional. A que aponta para a reponsabilidade de «todas» as empresas («all business enterprises») e não tão só das empresas transnacionais, questão que surgiu no debate sobre as «Normas» e que divide fundamentalmente Estados que sediam matrizes de empresas transnacionais – sobretudo dos países desenvolvidos, mas crescentemente também dos «emergentes» – daqueles que recebem empresas de fora: os primeiros acreditam que estariam-se gerando regras principalmente para suas empresas, que funcionariam como um freio à sua atuação. A ideia dos defensores do «all» é expandir para empresas domésticas, e assim seriam atingidas as grandes empresas estatais, mas também o «padeiro da esquina» dos países em desenvolvimento. E é essa justamente a preocupação de muitos, de que, para além do intuito explícito de atrapalhar as conversas travadas em Genebra, a lei se torne mais pesada para aqueles que têm menos recursos para se defender, e mais forte para aqueles que podem pagar os melhores advogados do mundo, até que possa ser utilizada como uma forma de retaliação comercial. O certo, na minha visão, é que é preciso fundamentalmente construir soluções ao problema apresentado pela ação das empresas transnacionais, pelo seu peso político e econômico infinitamente assimétrico em relação às vítimas e a muitos Estados que as sediam, ao mesmo tempo em que se buscam soluções para o problema real e lógico de que empresas de origem e atuação «nacional» também devem respeitar os direitos humanos – quem sabe, aplicar o tratado ou o direito internacional para as grandes transnacionais e os princípios de Ruggie para as nacionais.

O Brasil

O caso do Brasil em relação ao tema é mais uma mostra da atuação diletante da Chancelaria brasileira em relação a temas que outrora foram importantes, como o dos direitos humanos. O Brasil se absteve na votação da resolução que iniciou os trabalhos para o tratado alegando um ambiente «muito polarizado», mas ao mesmo tempo aceitou participar do Grupo Intergovernamental de Trabalho. Já no âmbito doméstico – e desde antes da instalação do clima de debate político em torno da derrocada de Dilma Rousseff –, optou por uma posição também passiva em relação ao tema, movimentando-se a partir de iniciativas de outros atores interessados, sejam eles da sociedade civil que se mobiliza interpelando o governo para a abertura de um debate transparente e organizado sobre a posição do Brasil nas negociações em Genebra mas também sobre a política específica no âmbito doméstico; ou das iniciativas da cooperação internacional originada de países promotores dos Princípios Orientadores que operam de forma direta ou através do apoio a outras instituições, ou as próprias embaixadas desses países.

Por exemplo, no marco da parceria estratégica entre a União Europeia e o Brasil, foi realizada em setembro de 2015 uma série de reuniões em que a ue oficiou de anfitriã e por isso propôs a pauta – mesmo sendo a reunião realizada em Brasília, por solicitação do Brasil – cujos objetivos foram:

sensibilização para as boas práticas em governança sobre Empresas e Direitos Humanos, nomeadamente através da implementação dos Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos e os planos de ação nacionais. Outro objetivo é o compartilhamento de práticas sobre a implementação de estratégias de responsabilidade corporativa, apresentando tanto as experiências da União Europeia como do Brasil, em vários setores.

O governo brasileiro afirma em Genebra que está se preparando para discutir um Plano Nacional de Trabalho, mas, em Brasília, a não ser essas esporádicas atividades, não têm sido registrados avanços substantivos, nem para iniciar um processo intragoverno de consulta para um plano, nem para estruturar uma consulta aberta com a sociedade civil. Também não têm funcionado os apelos para avançar em uma instância de diálogo sobre a posição do Brasil em relação à negociação do Tratado; nesse quesito, mais uma vez, o governo é empurrado pela ação de outros, nesse caso do Comitê Brasileiro de Política Externa e Direitos Humanos, que organizou um mecanismo de videoconferências para preparar e depois avaliar os temas em pauta das sessões do Conselho de Direitos Humanos da onu. Institucionalmente, o único movimento consistente tem sido o da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (pfdc) do Ministério Público Federal, que vem discutindo o tema há um tempo e recentemente criou um Grupo de Trabalho sobre Direitos Humanos e Empresas, cujo «foco está no impacto das atividades empresariais sobre os direitos dos cidadãos».

No Brasil do governo ilegítimo, as chances de que esse debate global seja levado a sério e avaliado na perspectiva das políticas públicas são muito reduzidas. Já o eram no ciclo petista, que oscilava entre o reconhecimento de direitos e a pressão do desenvolvimentismo primário. Hoje, quando a perspectiva do capital parece ter supremacia extrema, o mais provável é que o caminho depois da derrocada do governo de Dilma Rousseff seja mais estreito e seu melhor destino, um plano nacional de ação enxuto.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Agosto 2016, ISSN: 0251-3552


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