Tribuna regional e global
NUSO Nº Junho 2017

Da necessidade de repensar as políticas de comércio em tempos de desglobalização

Da necessidade de repensar as políticas de comércio em tempos de desglobalização

Introdução

Desde a crise financeira de 2008, o mundo ocidental vivencia uma enorme reação negativa contra a globalização pela qual é, em última análise, responsável. Ambas a forte mobilização de pessoas – principalmente na Europa – contra novos acordos comerciais e a corrida presidencial nos Estados Unidos da América são testemunho disso. Este trabalho explora quais poderiam ser as maiores causas dessa reação hostil e a estagnação de uma maior liberalização comercial dela decorrente. Além disso, ele não apenas identifica a reação adversa da opinião pública, como também vê a economia global recuando da «hiperglobalização» (Dani Rodrik). E conclui com inúmeras recomendações sobre como restaurar parte da confiança perdida no comércio, nas negociações comerciais e nos negociadores comerciais exigindo políticas comerciais que sejam realistas, pragmáticas, equilibradas, inclusivas, coerentes e alinhadas com as políticas das outras áreas.

Megarregionais: quase mortos?

A maioria dos observadores de negociações comerciais internacionais ainda parece ter a visão de que as negociações na Organização Mundial do Comércio (omc) visando maior liberalização comercial estão emperradas ou até mesmo em crise, enquanto, por outro lado, a liberalização e suas regras comerciais prosperam em negociações bilaterais e regionais. Mas é essa mesmo a situação? Está bastante claro que as negociações multilaterais comerciais sob a Rodada Doha vêm se arrastando há 15 anos sem muito o que mostrar. Entretanto, contrariamente à visão sustentada por muitos especialistas em comércio, os mais importantes acordos regionais de comércio (arc) – os «badalados» «megarregionais», acordos «de alto nível» apresentados como os balizadores dos novos padrões comerciais globais – tampouco estão florescendo. O Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (ttip, na sigla em inglês), por ora, está basicamente morto. A ratificação do Acordo Econômico e Comercial Abrangente União Europeia-Canadá (ceta) – depois de ter sido declarado «acordo misto» pela Comissão Europeia em função da pressão dos Estados membros e da sociedade em geral – ainda é completamente incerta, embora partes do ceta possam vir a vigorar em caráter provisório. Em que momento a Parceria Transpacífico (tpp, na sigla em inglês) será ratificada pelo Congresso dos eua, ou mesmo votada, é uma incógnita, considerando o atual clima político por lá, onde os dois candidatos presidenciais ou posicionaram-se abertamente contrários ao livre comércio ou, de maneira oportunista, repudiaram o tpp em sua forma atual. Em recente página de opiniões do South China Morning Post, o internacionalmente renomado especialista em comércio Jean-Pierre Lehmann declarou o tpp «quase morto».

Retomar o controle: a reação antiglobalização

Tudo isso aponta para uma doença maior. Desde a crise financeira de 2008, temos testemunhado uma reação antiglobalização. Em grandes partes das economias avançadas do mundo ocidental, os países aqui enfocados, todo o sistema de integração econômica global apresenta um problema de legitimidade. A vontade das pessoas em acreditar nos experts – que sustentam uma integração crescente, o livre movimento do capital, o livre movimento de pessoas, o livre movimento de bens pelas fronteiras e uma alocação de recursos puramente baseada no mercado seriam a passagem dourada rumo à prosperidade econômica e ao bem-estar social para todos – parece quase exaurida. A ideia de que mercados financeiros desregulados e livre movimento de capitais são coisas boas foi sepultada na crise de 2008, quando bancos e banqueiros gananciosos tiveram que ser socorridos, deixando ao povo o pagamento da conta com a austeridade. Os «Panama Papers», «LuxLeaks» e outros escândalos recentes serviram como forte lembrete do que aparentemente seja o livre movimento de capital. Além disso, a atual onda descontrolada de imigração em massa de Estados empobrecidos e falidos que, não raro, têm normas culturais e sociais completamente distintas – e, por vezes, muito difíceis – também não está tornando a teoria neoclássica dos benefícios globais e de melhoria de bem-estar decorrentes da migração ou da mobilidade do trabalho uma proposição particularmente atraente e crível.

O livre comércio tem sido negativamente afetado por – ao mesmo tempo em que tem contribuído ativamente para – essa atmosfera geral antiglobalização. A realocação de operações para o exterior (offshoring) e uma maior liberalização comercial na forma de acordos de integração profunda focados em medidas «por trás das fronteiras» e «convergência regulatória» enfrentam resistência cada vez maior. No caso da ttip, as perspectivas de importações cada vez mais baratas e vagas promessas de um possível ganho líquido de uns poucos empregos, e de pífios crescimentos do pib por muitos anos à frente, não mais despertam nenhum entusiasmo. Para um público informado e politicamente ativo, isso nem vale o preço a pagar em termos de padrões de consumo, saúde, trabalho e ambientais – ou com relação a controle democrático e autodeterminação – nem justifica as rupturas e perdas concretas de emprego que necessariamente acompanham qualquer mudança estrutural induzida pelo comércio.

«Retomar o controle» (o grito de guerra dos simpatizantes do Brexit), «o espaço de política» (policy space), «a soberania nacional» ou «o direito à regulação» por meio de organismos políticos democraticamente eleitos ou legítimos são hoje temas populares entre amplas faixas de eleitores – pelo menos na Europa. Muitas pessoas não mais estão preparadas para aceitar cegamente novas regras supranacionais formuladas a portas fechadas por burocratas não eleitos e, não raro, suspeitos de estarem em conluio com lobistas de empresas – «portas giratórias» a dar suporte. Embora ainda dominante no discurso público, todo o paradigma da integração com mobilidade – também conhecida como globalização – está sendo abertamente questionado, e tudo aquilo que se percebe que não vai bem nas finanças, no comércio ou na migração é, em geral, indiscriminadamente «colocado no mesmo saco» pelos críticos do paradigma dominante.

Comércio para todos – e os perdedores?

É muito fácil chamar essa crítica de populista, chauvinista, xenófoba, protecionista ou retrógrada. Ainda que isso certamente se aplique a parte dela, a crescente oposição à abertura tem raízes mais profundas. É por isso que acusações e xingamentos não são substitutos para análise apropriada. Muito dessa rejeição pode ser visto como uma reação a políticas subjacentes que produziram muitos «perdedores» – não somente «ganhadores» – e, em especial, fizeram aumentar a desigualdade de renda, o que, por sua vez, prejudicou os níveis e a sustentabilidade do crescimento, a se acreditar no Fundo Monetário Internacional (fmi). Esses possíveis subprodutos negativos da abertura comercial – principalmente do lado da demanda da economia – constituem um desafio ao senso comum de que crescimento comercial «impulsiona» crescimento econômico quase automaticamente (pela maior produtividade resultante da melhor alocação dos recursos), que em geral serve de argumento político padrão de por que necessitaríamos de mais comércio e, por extensão, de mais liberalização comercial. No futuro, aqueles devem ser explorados com maior seriedade. Os efeitos do lado da oferta e da demanda devem, portanto, ser analisados e comparados, bem como levados em conta em qualquer processo decisório com referência a novos passos em direção a uma maior liberalização comercial.

Mas mesmo que assumamos neste estágio que a desregulamentação do mercado e a integração internacional tenham sido benéficas no agregado, temos que encarar o fato de que essas políticas beneficiaram, fundamentalmente, alguns poucos felizardos – isto é, os ricos, os bem treinados, os cosmopolitas e os dotados de mobilidade –, ao passo que amplas parcelas da classe média, a classe trabalhadora e os pobres eram deixados para trás. Muitos trabalhadores comuns das economias avançadas não somente estão em pior condição relativamente a outros na sociedade, como também perderam, em termos absolutos, com relação ao que os trabalhadores ganhavam 30 ou 40 anos atrás (em termos de renda real). Recentemente, um relatório do McKinsey Global Institute revelou que pelo menos entre 65% e 70% dos domicílios de 25 economias avançadas viram sua renda de mercado real cair ou se estabilizar em 2014, na comparação com 2005. Esse quadro é menos grave se incluímos transferências governamentais e impostos mais baixos: apenas 20% a 25% encontram-se em segmentos de distribuição de renda cuja renda disponível ficou estável ou diminuiu. Mesmo assim, essa proporção é considerável e insustentavelmente alta do ponto de vista político.

Se for com isso que a integração econômica e a liberalização comercial estão associadas, então aqueles que se preocupam com uma economia aberta também devem passar a defender políticas domésticas que reduzam a desigualdade de renda e de riqueza a fim de evitar uma maior reação nacionalista ou protecionista. A identificação e adequada compensação dos perdedores – muitas vezes comunidades inteiras – bem como a efetiva redistribuição do dividendo da globalização devem tornar-se o corolário de quaisquer outros passos em direção à liberalização. Apenas então haverá uma chance de que o comércio funcione para todos e que «Trade for All» [Comércio para Todos] – como proclamado pelo título da nova estratégia comercial e de investimento da União Europeia de 2015 – não permaneça como um slogan vazio. Os mecanismos compensatórios existentes – tais como o Fundo Europeu de Ajustamento à Globalização ou a Assistência a Ajuste de Comércio (taa, na sigla em inglês) nos eua – devem ser revistos criticamente com referência à perda de efetividade percebida e, onde necessário, reformados e expandidos para que estejam à altura de suas tarefas.

O princípio da compensação também deve ser aplicado em âmbito internacional. Pelo menos para os países pobres e em desenvolvimento, os efeitos negativos (spillovers) dos desvios e da erosão de preferências comerciais e de investimento, decorrentes de novos acordos comerciais bilaterais ou regionais, devem ser compensados de algum modo, como instado por inúmeros acadêmicos com relação ao ttip e à África subsaariana (por exemplo, através de novas regras de origem, simplificadas, harmonizadas e generosas nos respectivos acordos comerciais preferenciais da ue e dos eua com a África). Além disso, avaliações de impacto sérias, tais como aquelas sobre os direitos humanos, deveriam tornar-se obrigatórias para qualquer novo projeto de liberalização ou integração – e colocadas em prática. O g-20, como o definidor primário (agenda-setter) da governança econômica global, deve reconhecer a necessidade de políticas compensatórias ou redistributivas, tanto em âmbito nacional como internacional, como ingrediente necessário de um sistema econômico e comercial aberto que busque promover inclusão e assegurar que ninguém seja deixado para trás. Deve também pressionar por mais e melhores avaliações de impacto, instando seus membros a agirem diante de seus resultados.

Procurando bnts: vendendo o interesse público por retornos mais altos?

O comércio internacional continua a desempenhar um papel vital para a prosperidade global. Portanto, impedir retrocessos a liberalizações comerciais do passado é importante porque estas poderiam levar a «guerras comerciais» retaliatórias reminiscentes dos anos 1930. No entanto, dada a profundidade da integração comercial já alcançada – em especial entre aquelas economias avançadas a terem sido suas primeiras proponentes –, uma maior liberalização comercial parece mais difícil e propensa a gerar menos benefícios econômicos do que no passado. As estimativas calculadas a partir de estudos econométricos dos benefícios econômicos resultantes de uma maior liberalização comercial – por exemplo, por meio da ttip e da Parceria Transpacífico (tpp, na sigla em inglês) – são, quase sempre, lamentavelmente baixas: não mais do que um ou dois pontos percentuais do pib, sugerindo que a lei dos retornos decrescentes também se aplica à liberalização comercial. Isso não deveria ser uma surpresa. Nas últimas décadas, as tarifas industriais médias das economias avançadas despencaram – de mais de 30% para menos de 5%. A maioria dos benefícios imediatos da liberalização do comércio já foi colhida. Hoje, as flutuações cambiais quase sempre causam mais dano ao comércio do que qualquer medida protecionista.

Na busca por maior economia de custo, esta é a razão pela qual – e também simplesmente porque, de alguma maneira, o «show tem que continuar» – a fronteira das negociações comerciais bilaterais ou regionais moveu-se das divisas para o centro da arena das políticas nacionais e das escolhas políticas buscando barreiras comerciais não tarifárias (bnts). A expectativa é de ganhos monetários significativos para as empresas – que somente são repassados aos consumidores, ao menos em parte, onde a competição funciona bem e os preços domésticos não são rígidos (sticky prices) e são reajustados de acordo com os preços mundiais – pela harmonização ou pelo reconhecimento mútuo de normas de produto e de produção, requisitos para certificação de produto, além da abertura de profissões e de setores até aqui regulamentados. Pascal Lamy, ex-diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (omc), estima, como regra, que há uma economia de custos da ordem de 5% com a abolição das tarifas remanescentes e de 10% com a redução da burocracia de administração fronteiriça pela adoção do Acordo sobre a Facilitação do Comércio (afc), mas de 20% com harmonização de normas, regras e regulamentos.

Em geral, a harmonização de algumas das normas técnicas não apresenta problemas políticos e é, a priori, economicamente benéfica. Porém, modificar regras nas áreas de proteção ao consumidor, segurança alimentar, meio ambiente, mercados financeiros, trabalho, cultura, serviços públicos – ou em qualquer outra área que reflita preferências sociais – ou mesmo erodi-las pelo reconhecimento mútuo de normas (desiguais) é algo completamente diferente. Aqui a agenda da liberalização comercial é regularmente desfigurada por uma agenda empresarial doméstica em favor de desregulamentação e privatização, para a qual, de outro modo, não haveria maiorias políticas. Portanto, o uso de negociações comerciais para questionar regulamentações que expressam preferências sociais e que foram estabelecidas por razões não relacionadas ao comércio internacional, em geral, enfrenta uma resistência enfurecida. Ademais, em grande parte isso erodiu a confiança nas negociações e nos negociadores comerciais, em particular na Europa. As negociações comerciais passam então a ser vistas por muitos dos seus críticos basicamente como tentativas de vender o direito de regular dos Estados aos interesses empresariais. Tal suspeita é reforçada ainda mais quando esses interesses são apoiados por amplos direitos do investidor de acionar os governos e de exigir compensações por mudanças no ambiente das políticas que possam afetar seus resultados financeiros, em um universo paralelo de arbitragem privada, no marco do infame sistema de resolução de disputas entre investidores e estados (isds).

Além disso, os temores dos críticos não são efetivamente acalmados assim que tentam determinar o que está acontecendo no momento nas negociações (secretas) de um novo acordo comercial plurilateral sobre serviços (Acordo no Comércio de Serviços, tisa, na sigla em inglês). Neste ponto, pareceria que os novos instrumentos que os países fixam firmemente na via de mão única da desregulamentação e da liberalização na área de serviços estão prestes a ser transformados em tratados juridicamente vinculantes. Isso vale tanto para as cláusulas «suspensiva» (standstill clause) e «de ajustamento» (ratchet clause) como para o tratamento nacional e o acesso a mercado (com a primeira vinculando os níveis de liberalização existentes e a segunda automaticamente vinculando qualquer desregulamentação adicional), bem como a aplicação da «abordagem da lista negativa» (list it or lose it, em tradução livre, «liste ou perca»), que substituiria a usual abordagem da «lista positiva» do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (gats, na sigla em inglês).

Desglobalização: o novo normal?

Desde 2008, presenciamos não apenas uma reação antiglobalização na opinião pública; a economia mundial também entrou em uma fase de desglobalização. A partir da crise, o crescimento comercial global foi cortado pela metade – de mais de 6% ao ano para cerca de 3%; e, mais importante, o crescimento comercial global tem sistematicamente sido menor do que o crescimento do pib global. Em outras palavras, a «intensidade do crescimento do comércio» vem declinando e, dessa forma, a economia global torna-se menos global. Para a maioria dos especialistas, isso é simplesmente uma aberração, e todos os esforços devem ser envidados para recolocar o comércio na trilha do crescimento. No entanto, de modo geral essa situação só pode ser parcialmente atribuída a medidas protecionistas, já que, por exemplo, o estoque efetivo de medidas restritivas ao comércio dos países do g-20 continua a crescer. Em meados de maio de 2016, seu número total era da ordem de 1.196 (comparado a 324 em meados de outubro de 2010 ou um aumento de 10% na comparação com o ano passado). Além disso, dada a dinâmica política global, a continuidade da reação protecionista – que aceleraria ainda mais a desglobalização – certamente não pode ser descartada.

No entanto, outras forças – talvez ainda mais importantes – também parecem estar em jogo, entre as quais se incluem uma mudança nos padrões de consumo para serviços não comercializáveis (non-tradables), um retorno da produção para países de origem (reshoring), alguma relocação de produção (onshoring) para mais perto dos mercados consumidores e um acentuado declínio dos preços das commodities. Ainda não está claro se esses são apenas fenômenos temporários, como em geral se acredita – ou, ao menos, como a grande maioria dos especialistas espera – ou, como sugerido por alguns, prenúncios de um «novo normal», em que o comércio e as cadeias globais e regionais de valor desempenharão um papel muito menor do que em décadas recentes. Há sinais de que a relevância das diferenças dos custos do trabalho, que têm sido o principal indutor do comércio nas cadeias globais de valor, pode declinar no futuro. Por um lado, isso poderia ser resultado da crescente convergência dos custos da unidade de trabalho entre as economias emergentes e as avançadas porque os salários estão subindo naquelas. Por outro lado, isso poderia ser reforçado por um relativo declínio da importância dos custos da unidade de trabalho comparados a outros custos, como transporte, por exemplo, tão logo as emissões de dióxido de carbono sejam corretamente precificadas e internalizadas no custo do frete aéreo ou marítimo.

Tempo de repensar

Embora seja possível que já tenhamos entrado em uma fase de gradual desglobalização induzida pelo mercado, qualquer outro retrocesso politicamente motivado deve ser combatido para evitar a subida escorregadia representada por guerras competitivas dissimuladas ou mesmo abertas. No entanto, isso é mais fácil de falar do que de fazer. No mínimo, seria necessário restaurar parte da confiança perdida no comércio e em negociações e negociadores comerciais. Para isso, necessitamos repensar a política comercial – isto é, precisamos de políticas comerciais que sejam realistas e pragmáticas, equilibradas, inclusivas, compatíveis e alinhadas com as outras áreas da política pública.

Primeiramente, é hora de uma avaliação honesta sobre o que um aprofundamento da liberalização comercial pode de fato alcançar em termos de crescimento econômico global ou como meio de combater uma recessão global, qual seja, não muito. Devemos abster-nos de exagerar seus alegados benefícios e de colocar nossas esperanças nessa liberalização para uma recuperação econômica global quando há outros fatores restringindo a demanda global. Devemos, antes, ser pragmáticos e identificar questões para as quais novas regras comerciais globalmente aceitáveis sejam urgentemente necessárias e que possam trazer benefícios potenciais a todos. O comércio digital transfronteiriço (e-commerce) seria uma dessas áreas em que são necessárias regras comuns.

Em segundo lugar, a política comercial deve parar de pressionar por uma agenda empresarial agressiva e apresentar um equilíbrio muito maior entre os interesses representados, sejam daqueles que se sentam à mesa durante as negociações comerciais, sejam dos que são regularmente consultados. A política comercial também tem que respeitar adequadamente a necessidade do «espaço de política» e o direito dos governos de regular no interesse público. Normas que expressem preferências de uma sociedade não deveriam estar em disputa. Cláusulas de irreversibilidade vinculando liberalização quase automática devem sofrer resistência. Tomando o e-commerce novamente como exemplo, um resultado equilibrado das negociações nesse caso seria aquele que, entre outras coisas, assegurasse a neutralidade da rede – isto é, direitos iguais aos usuários da internet no acesso aos dados – e priorizasse as leis de privacidade dos estados sobre o interesse empresarial de armazenamento de dados, permitindo-lhes, por exemplo, que exijam que os dados sejam armazenados no país onde foram coletados.

Em terceiro lugar, a busca por inclusão deve começar pelo reconhecimento de que a liberalização comercial necessariamente produz ganhadores e perdedores. Em vez de permitir resultados do passado do tipo «o ganhador leva tudo», os perdedores devem ser adequadamente compensados nacional e internacionalmente como parte de abordagens políticas mais amplas que priorizem a imparcialidade, a igualdade, a inclusão e a transparência. Instrumentos como o Fundo Europeu de Ajustamento à Globalização e a Assistência a Ajuste de Comércio (taa, na sigla em inglês) nos eua devem ser revistos, reformados e expandidos a fim de torná-los muito mais efetivos.

Avaliações de impacto preliminares – inclusive avaliações de impacto sobre direitos humanos – e monitoramento de impactos devem figurar em qualquer projeto de integração ou liberalização. Os efeitos do lado da oferta e os possíveis efeitos do lado da demanda com uma maior liberalização devem ser confrontados e levados em conta. Por fim, mas não menos importante, há necessidade urgente de maior coerência entre a política comercial e as outras áreas da política pública. Comércio e mais comércio não devem ser vistos como um fim em si mesmos, mas como um meio para vários fins. Primeiramente, as políticas e os acordos comerciais devem estar alinhados com a Agenda de Trabalho Decente da Organização Internacional do Trabalho (oit) e a com promoção de trabalho decente nas cadeias globais de suprimento. Acordos comerciais que contemplem capítulos laborais, ou apenas incluam dispositivos laborais juridicamente vinculantes ou não, podem ser ferramentas para um melhor alinhamento dos resultados econômicos e sociais que ainda precisem ser explorados em toda a sua potencialidade. De modo geral, padrões laborais e direitos trabalhistas codificados internacionalmente – tais como a Liberdade Sindical e Direito à Sindicalização (Convenção 87 da oit) e o Direito de Sindicalização e de Negociação Coletiva (Convenção 98 da oit) – não devem ser entendidos como medidas protecionistas. Antes, devem ser vistos como instrumentos para «igualar as condições», como instrumentos para uma globalização justa – e, portanto, legítima – que de modo algum afetam as legítimas vantagens comparativas de países mais pobres com rendas mais baixas e, portanto, níveis salariais correspondentemente inferiores. Em segundo lugar, nesta conjuntura, o comércio deve desempenhar o papel precípuo de apoiar a consecução dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e a luta contra a mudança climática. Assim, as políticas comerciais e os futuros acordos comerciais devem alinhados na medida do possível com os arcabouços das políticas internacionalmente acordadas, em particular, com a Agenda 2030 e o Acordo de Paris. Em termos gerais, isso significa que as políticas comerciais devem contribuir para a transformação estrutural fundamental que temos pela frente – que consiste em desvincular prosperidade econômica e bem-estar social da destruição ambiental, do uso de recursos e das emissões de dioxido de carbono. Em termos práticos, isso significaria, por exemplo, priorizar a conclusão exitosa do acordo plurilateral de bens ambientais (aba), encontrar uma solução equilibrada para a eliminação gradual de subsídios à pesca danosos ao meio ambiente e propor um novo regime mais equilibrado de direitos de propriedade intelectual ligados a comércio especificamente para tecnologias verdes que promova sua rápida difusão.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Junho 2017, ISSN: 0251-3552


Newsletter

Suscribase al newsletter