Artículo
NUSO Nº Setembro 2013

A Alemanha e a crise: vitórias pírricas

A Alemanha teve sua primeira «crise», uma longa estagnação econômica entre 2000 e 2005, à qual respondeu com um conjunto de reformas («Agenda 2010») em 2003. Uma lenta recuperação, posterior a 2006, chega a uma parada súbita quando a crise financeira global é deflagrada. Mas a Alemanha suportou a Grande Recessão bastante bem. Muitos observadores consideraram as reformas da Agenda e a força industrial da Alemanha como as causas desse bom desempenho. No entanto, um olhar mais atento revela um quadro diferente e ambíguo. As vitórias da Alemanha custaram um preço alto: desigualdade crescente dentro do país e crises de endividamento no exterior.

A Alemanha e a crise: vitórias pírricas

Crescimento e crise

A economia alemã teve que enfrentar dois enormes desafios estruturais na década de 1990: a unificação com a Alemanha Oriental e a União Monetária (introdução do euro). A economia da Alemanha Oriental entrou em colapso devido a uma taxa de câmbio supervalorizada, quando de sua adoção do marco da Alemanha Ocidental, a um rápido aumento dos salários acima da produtividade e à ruptura dos fluxos tradicionais de comércio. No devido tempo, a Alemanha Ocidental havia financiado quase metade do consumo da Alemanha Oriental – cerca de 100 bilhões de euros ao ano ou 8% do PIB – por meio de transferências, impondo, assim, um enorme fardo ao sistema da seguridade social e aumentando os custos laborais não salariais. A unificação levou ainda a altos déficits orçamentários, que fizeram a dívida pública crescer de cerca de 40% do PIB em 1992 para 60% do PIB em 1997. O superávit comercial da Alemanha Ocidental de cerca de 5% do PIB antes da unificação desapareceu por completo, dando lugar a uma onda de angústia existencial na Alemanha em razão da suposta perda de competitividade internacional do país.

A segunda mudança histórica foi o estabelecimento da União Monetária Europeia (UME) e a introdução do euro em 1999. Como resultado disso, a Alemanha perdeu o controle de sua política monetária e passou a ter que se submeter à taxa de juro escolhida pelo Banco Central Europeu (BCE). Para a Alemanha isso significou um período de taxas de juros relativamente altas, acompanhadas de baixa inflação e lento crescimento. Alguns economistas argumentavam que a Alemanha havia entrado na UME com uma taxa de câmbio sobrevalorizada (DM 1,96/€), resultando em perda de competitividade.

Estagnação e reformas. Essa foi a herança que o governo «rubro-verde» (SPD + Verdes) assumiu em 1998. Os anos 1998 a 2005 caracterizaram-se por um lento crescimento, exceção feita ao curto boom das «ponto com» em 2000, que provocou um desemprego persistente e elevado de cerca de 10% e déficits orçamentários em torno de 3%. A inflação era baixa e, devido ao fraco crescimento e à contenção salarial, menor do que nos demais países da zona do euro. As exportações líquidas eram o principal indutor do crescimento, enquanto o crescimento da demanda interna – em particular, o investimento, mas o consumo privado também – estagnava. Ainda assim, prevalecia o temor de perder competitividade internacional. O governo queria reduzir seu déficit para, não menos importante, cumprir os assim chamados critérios de Maastricht do Pacto de Estabilidade e Crescimento Europeu, que preveem déficits públicos inferiores a 3% do PIB e dívida pública menor do que 60% do PIB. Essa política de austeridade adotada durante a recessão pode ter prolongado o baixo crescimento e o alto desemprego.

Em 2002–2004, o governo (SPD/Verdes) introduziu várias reformas, inclusive reformas do mercado de trabalho (Hartz IV) e um aumento da idade para aposentadoria de 65 para 67 anos. As reformas foram recebidas com uma substancial oposição, particularmente dos sindicatos, mas, no fim, foram aprovadas. Entretanto, em 2005 os eleitores puniram o SPD com a perda da maioria e dando-lhe apenas 23% dos votos em 2009 (contra 40,5% em 1998). As reformas laborais contribuíram decisivamente para mudar a Alemanha, ainda que não necessariamente na direção esperada (v. quadro). O setor de baixos salários e a dispersão salarial cresceram sobremaneira. Os salários como proporção do PIB, já então em declínio, foram ainda mais achatados. Mas os efeitos esperados de menor desemprego e de maior crescimento não se materializaram no curto prazo.

No saldo, os efeitos negativos superaram os positivos. No quadro acima, os fatos positivos em relação ao outro período estão indicados pelo sombreamento cinza nos campos correspondentes. No período pré-reforma há dez indicadores com desempenhos melhores em comparação com apenas seis no período posterior. Vale notar que o investimento, a produtividade e o crescimento das exportações tiveram melhor desempenho antes do que depois, embora o mito de que as reformas tenham sido positivas nesse tocante ainda tenha força.

O principal resultado disso foi um aumento substancial da competitividade dos preços e das exportações alemãs. O superávit das exportações da Alemanha cresceu a cerca de 5% do PIB devido ao aumento da demanda em uma economia global e uma periferia europeia a todo vapor. Após um longo período de baixíssimo investimento, este é retomado pelas empresas privadas embora ainda de maneira modesta. Isso – mais o aumento da demanda por exportados – levou a um maior crescimento e a um leve declínio do desemprego. Ao cabo, em 2007-2008, a Alemanha estava – desde uma perspectiva macroeconômica – em condições bastante boas: o crescimento recuperava-se, o desemprego declinava, a inflação estava abaixo de 2% e o orçamento aproximava-se do equilíbrio.

O principal problema era a crescente desigualdade (v. tb. a seção «Exportação como causa de desigualdade», abaixo), combinada a uma alta taxa de poupança. Como essa poupança era apenas investida em parte no mercado interno, grande parte dela fluiu para o exterior. Essa saída de capitais refletia os superávits comerciais. Ambos em essência resultavam da mesma causa: distribuição desigual do valor agregado entre o trabalho e o capital. Enquanto os trabalhadores e os dependentes de benefícios sociais (pensões e outros) enfrentavam rendas reais estagnadas ou declinantes, as empresas e os ricos usufruíam de rendas que cresciam muito mais rápido do que suas intenções de investir ou consumir. Salários mais baixos e produtividade crescente resultaram em custos unitários do trabalho mais baixos. As saídas de capital e os superávits comerciais daí resultantes alavancaram a posição líquida de investimento internacional da Alemanha, um reflexo do endividamento no exterior.Crise financeira: recessão em V. Essas características do modelo de crescimento alemão contribuíram para a crise financeira global e a posterior crise do euro. A Alemanha (junto com outros países superavitários) criou os desequilíbrios que alimentaram os mercados de capitais com poupança em busca de retorno maior. Enquanto os seus próprios mercados de ativos (notadamente o mercado imobiliário) continuavam relativamente estagnados, seus poupadores e bancos queriam beneficiar-se do aumento dos preços dos ativos no exterior. Quando a crise se abateu em setembro de 2008, de início a Alemanha apenas se considerou afetada marginalmente. No entanto, a realidade mostrou-se diferente. Os bancos da Alemanha também foram muito afetados. Com a grande recessão global que se seguiu em 2009, as exportações alemãs entraram em colapso.

No devido tempo e não sem alguma relutância, a Alemanha juntou-se aos demais governos na adoção de políticas anticrise para salvar os bancos e estimular a demanda. Mas o país insistia na manutenção de programas nacionais distintos, rejeitando esforços articulados, em especial com relação ao resgate de instituições financeiras em crise. Esse «nacionalismo econômico» viria a se tornar a principal causa da subsequente crise do euro. A Alemanha e outras nações-estado subestimaram o grau de integração que o setor financeiro europeu já alcançara e o que isso implicava para governos ainda responsáveis em caso de insolvência.

Dois programas de estímulo foram particularmente bem-sucedidos na Alemanha: a redução da jornada de trabalho com compensação salarial nos setores e/ou empresas afetados pela crise e um subsídio de vários bilhões de dólares na troca de carros velhos por novos (cash for clunkers, em tradução livre «dinheiro por lata velha»). Enfim, é provável que a Alemanha tenha se beneficiado principalmente dos esforços de outros países para estimular a demanda através de políticas monetárias e fiscais menos restritivas.

Em 2009, o PIB da Alemanha sofria um severo declínio – acima de 5% – porque a economia alemã era (e ainda é) dependente de exportações. Com o comércio mundial em declínio, o mesmo ocorreu com a máquina exportadora alemã. Embora seu PIB tenha declinado tão profundamente, a recuperação de 2010/11 também foi bastante forte, resultando em uma recessão em V. No final de 2011, a Alemanha estava mais ou menos de volta ao caminho do crescimento que ela seguira desde 2005. Com 3,7% em 2010 e 3,0% em 2011, os crescimentos da Alemanha foram mais velozes que os dos Estados Unidos (3,0% e 1,7%) e do Reino Unido (2,1% e 0,8%). Entretanto, outros países, a exemplo da Suécia (6,1% e 3,9%) ou da Eslováquia (4,2% e 3,3%), recuperaram-se ainda mais rápido. Mas graças a um engenhoso programa empresarial de gestão da jornada de trabalho que envolveu governo, sindicatos, comissões de fábrica e empregadores, a Alemanha foi a única das maiores economias a ver o desemprego cair em vez de crescer durante a crise.

Muitos alemães acreditam que foi a força de sua indústria que impediu uma recessão pior. E, de fato, o renascimento da indústria é hoje considerado algo crucial por muitos países, entre eles o Brasil e os EUA, e pela própria Comissão Europeia, a fim de recuperar o crescimento e a competitividade. A Alemanha é vista como um modelo nesse sentido. No entanto, o gráfico 1 mostra um quadro diferente: a indústria alemã foi mais afetada pela crise do que o seu setor de serviços. Em 2011, a indústria ainda não tinha recuperado o nível de emprego pré-crise.

Em 2012, a Alemanha era novamente considerada um milagre econômico e parecia ter superado a crise relativamente ilesa. O PIB recuperara-se, o emprego estava em alta. A dívida pública era significativamente mais alta do que antes da crise (por volta de 83% do PIB em 2010 em comparação com 64% em 2007), mas se mantinha muito abaixo dos níveis de outros países da zona do euro, ou dos EUA, e controlada graças a receitas tributárias crescentes. Os problemas decorriam menos de questões internas à economia alemã do que de questões externas.

A Alemanha e a crise do euro. O crescimento da Europa deu-se com bastante desequilíbrio nos últimos 10 a 15 anos. Enquanto países na periferia europeia apresentavam alto crescimento, estimulado pelo aumento da dívida privada, a economia alemã ficava estagnada e poupava. Posteriormente os países devedores exibiriam elevados déficits em conta corrente, ao passo que a Alemanha apresentava enormes superávits comerciais. A crise financeira interrompeu abruptamente o acesso a crédito novo e, portanto, o crescimento.

Esse pouso forçado deflagrou uma recessão que demandou gasto público para estimular a economia e salvar os bancos, o que por sua vez aumentou muito o déficit público. Apesar da rápida recuperação, seguiu-se um pânico nos mercados de títulos públicos na zona do euro. Esse pânico decorreu menos de inaceitáveis altos níveis de endividamento do que de uma concepção equivocada do projeto institucional da zona do euro (falta de um emprestador de última instância) e de políticas erradas. As políticas de austeridade implementadas na Alemanha e na União Europeia (UE) exacerbaram a crise e desaceleraram a recuperação ou a fizeram retroceder.

A crise da zona do euro é hoje o maior desafio para o sucesso econômico da Alemanha. A maioria dos governos dos países da zona do euro aumentou sua dívida enormemente durante a crise financeira, em parte salvando bancos (Irlanda) ou estimulando a economia e compensando a «desalavancagem» privada e, em parte, devido aos estabilizadores automáticos (receitas tributárias encolhidas, despesas maiores com auxílio desemprego e assim por diante). No final, a relação média dívida pública/PIB na zona do euro aumentou em cerca de 20 pontos percentuais. Quando a Grécia teve que admitir em 2010 que havia «maquiado» suas contas e que sua dívida e déficits eram, de fato, mais altos do que o divulgado anteriormente, os credores entraram em pânico. Primeiro a Grécia, depois Irlanda e Portugal, precisam receber suporte via empréstimos dos governos da UE, da própria UE, do Fundo Monetário Internacional (FMI) e/ou do recém-criado Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF).

De 2010 em diante, a crise alargou-se e aprofundou-se. E a Alemanha é a principal culpada dessa consequência desastrosa porque se recusou a dar autorização ao BCE para intervir mais no mercado de títulos da dívida pública e a assumir corresponsabilidade por toda a dívida governamental da zona do euro, por exemplo, via eurobônus. Com a zona do euro rapidamente se aproximando da recessão ou mesmo de uma crise de graves proporções se um governo – talvez a Grécia – vier a decretar falência e/ou deixar a zona do euro, o imutável modelo de crescimento da Alemanha corre perigo. A Alemanha continua a manter sua vantagem competitiva através de contenção salarial e fiscal à custa dos déficits dos outros países. Mas a competitividade não pode assegurar a demanda quando os compradores veem-se forçados a «desalavancar».

As exportações alemãs constituem quase 40% do PIB do país. Uma grande parcela delas (cerca de 70%) vai para a Europa e, em particular, para a zona do euro (mais ou menos 40%). A China absorve menos de 5% das exportações alemãs, ainda que com altas taxas de crescimento. A recessão na Europa, e seu provável alastramento para os EUA e, em última instância, para os mercados emergentes, provocaria recessão na Alemanha também. A crise de 2008 mostrou o quanto a Alemanha depende do comércio mundial. A Alemanha deve assumir uma responsabilidade pela estabilização financeira da Europa (e do mundo) compatível com seu papel.

O ponto crucial continua sendo a crise do euro. A Alemanha tem enorme responsabilidade pela duração e profundidade da crise. Se o governo alemão tivesse endossado a corresponsabilidade de todos os governos da zona do euro, um título comum europeu (eurobônus) e um papel ativo para o BCE nos mercados de títulos públicos e como emprestador de última instância, a crise teria cessado de imediato em maio de 2009. A relutância da Alemanha em salvar a Grécia e outros países altamente endividados da zona do euro (Irlanda, Portugal e Espanha) fez aumentar o pânico dos mercados financeiros e, portanto, o custo de qualquer programa de resgate posterior. A insistência da Alemanha (bem como a da UE e do FMI) com as políticas de austeridade nos PIGS (Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha) exacerbou a crise. A recessão que se seguiu nesses países reduziu-lhes a capacidade de serviço da dívida e elevou a crítica relação dívida/PIB, reduzindo o denominador.O desempenho da economia alemã depende sobremaneira do resultado da crise do euro. Se a Europa e a Alemanha conseguirem superar a crise, é possível que a economia alemã continue com seu modelo de crescimento baseado em exportações. Mas esse cenário implica uma disposição em financiar os déficits dos países devedores de modo sustentável, transformando a UE em uma união fiscal e de transferência de recursos. Até agora, o governo alemão sob Ângela Merkel vem se opondo a tal solução, o que, de todo modo, também não conta com muito apoio do eleitorado alemão.

A estabilidade e o crescimento de longo prazo da economia europeia e global (sobre a qual está assentada a prosperidade da Alemanha) seriam mais bem aproveitados se a Alemanha adotasse um novo modelo de crescimento (v. ainda a seção «Competitividade versus crescimento social», abaixo) baseado em demanda interna e não em superávits comerciais. Tal expansão do consumo interno demandaria maior crescimento salarial, uma distribuição mais equitativa da renda e mais gastos públicos, em particular em serviços sociais como educação e saúde. Um sistema educacional melhor que corrigisse o viés classista do sistema atual e aumentasse a produtividade e a empregabilidade. O crescimento resultante financiaria os gastos adicionais.

Exportação como causa de desigualdade

A Alemanha está altamente integrada à economia mundial. Para um país de seu tamanho (população de 82 milhões para um PIB de 2,4 trilhões de euros em 2010), sua participação no comércio exterior é muito alta. O alto volume total do comércio de manufaturados esconde uma forte atividade de reexportação e reimportação nas cadeias de produção transnacionais geridas por empresas alemãs, que fez dobrar a relação exportações/PIB entre 1993 e 2008. A integração beneficiou-se da abertura da Europa Central e do Leste na esteira do colapso do comunismo, que oferecia baixos salários em novas praças aos industriais alemães. Estes reorganizaram a cadeia de valor substituindo alta remuneração pelo trabalho por baixos salários, aumentando, assim, sua competitividade externa e sua desigualdade interna.

As exportações estão avaliadas em quase um trilhão de euros, um valor próximo a 38% do PIB. As importações estão em um patamar algo mais baixo, mas ainda assim em torno de 32%, levando a um superávit comercial de cerca de 150 bilhões de euros, ou 6% do PIB. Esse superávit é, de certa maneira, reduzido por um déficit em serviços, notadamente em turismo. A conta de capital é, como deve ser, a imagem espelhada da conta corrente, tornando a Alemanha uma exportadora líquida de capital, com uma posição líquida de investimento crescente como credora global. Essas exportações de capital são alimentadas pela abundância de poupança alemã (v. gráfico 2), que decorre da crescente desigualdade da renda e da riqueza.

A Alemanha Ocidental era, em 1985, uma das sociedades capitalistas mais igualitárias do mundo, com um coeficiente de Gini de 0,25. Em 2007, esse valor subiria para 0,3. Para ilustrar essa mudança, a atual distribuição de renda da Alemanha assemelha-se à da Itália de 1985, ao passo que em 1985 ela era semelhante à da Noruega hoje. A distribuição funcional entre capital e trabalho mudou enormemente: a participação do salário no PIB declinou de 73% em 1993 para 64% em 2006. O salário recuperou-se um pouco, por pouco tempo, durante o auge da crise, quando os lucros caíam mais rápido do que declinavam os salários. Mas em 2010 a velha tendência ressurgia. Os diferenciais de renda entre assalariados cresciam com força, de 0,41 para 0,46 (coeficiente de Gini), refletindo a ascensão do setor de baixos salários e aumentos acima da média dos rendimentos dos já ricos (executivos-chefes de empresas, por exemplo). O setor de baixos salários expandiu-se de 15% em 1995 para 22,2% em 2006, sendo que baixo salário define-se como sendo aquele menor do que dois terços do salário médio. As mulheres ainda são discriminadas no mercado de trabalho, recebendo 22% menos, em média, do que os homens. O saldo disso é que ao longo da última década a Alemanha apresentou uma das maiores elevações nos níveis de desigualdade entre os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

A pobreza também cresceu. Na Alemanha, a pobreza é medida pelo índice de risco de pobreza, que fornece a parcela de domicílios vivendo com 60% ou menos da renda equivalente líquida média (uma renda fictícia ajustada ao tamanho do domicílio). Esses valores subiram (indicando risco de pobreza mais alto) de cerca de 10% durante a década de 1990 para quase 15% no final da primeira década de 2000. O aumento foi significativamente forte na Alemanha Oriental, onde cresceu de 13% em 1998 (o menor valor entre 1992 e 2009) a um pico de 23% em 2006 (posteriormente retrocedendo para em torno de 20%).

O outro lado da questão é a distribuição de riqueza. Os 10% mais ricos da população possuíam 57,9% dos ativos líquidos em 2002; em 2007 sua participação aumentara para 61,1%. A riqueza média entre esse grupo subiu de 208.483 euros para 222.295 euros. O decil mais pobre só tinha dívidas. Como mostra o gráfico 2, a riqueza monetária (excluindo propriedades, plantas, equipamentos e assim por diante) cresceu muito mais rápido do que o PIB, variando de 70% do PIB para 125%. É quase inevitável que isso leve a uma maior participação na renda dos donos da riqueza, que esperam um retorno «decente» para seus investimentos. Entretanto, esses investimentos são, cada vez menos, feitos no setor empresarial privado. A dívida deste cresceu bem mais devagar, de em torno de 50% do PIB para cerca de 60%. O Estado substituiu o setor empresarial como o principal destinatário da poupança das famílias, aumentando sua participação de 10% para 50% do PIB.

Enfim, a Alemanha tornou-se uma sociedade muito mais desigual nas duas últimas décadas. Essa distribuição mais desigual da renda e da riqueza levou a uma demanda interna fraca e, por conseguinte, a um crescimento menor. A vitória da Alemanha nos mercados mundiais foi conseguida à custa dos trabalhadores e do governo.

Mudanças no modelo de crescimento da Alemanha advirão de desafios externos e não de reformas internas. Dentre aqueles, um aprofundamento da crise do euro e um declínio do comércio dos mercados emergentes são mais importantes, visto que ambos prejudicarão as perspectivas das indústrias exportadoras alemãs. Dentre as últimas, é possível que a aprovação de um salário mínimo legal e uma maior taxação dos domicílios mais ricos possam melhorar a distribuição de renda e levar a maior importação de e/ou demanda por bens de consumo e serviços.

Tal estratégia é recebida com muito ceticismo na Alemanha, onde as pessoas são obcecadas por competitividade internacional e adoram pensar que o bem-estar nacional depende de exportações ou mesmo de superávits comerciais, embora nenhum dos dois seja condição necessária ou suficiente para o crescimento. Se exportações fossem necessárias, a economia mundial não cresceria. Se fossem suficientes, a Alemanha não teria passado pela estagnação econômica do início da década de 2000.

Miopia industrial

Muitos alemães têm orgulho do desempenho recente de seu país, desempenho esse que também é motivo de admiração no exterior. A indústria, com seu forte viés exportador, é vista por muitos observadores alemães e estrangeiros como sendo a principal causa desse sucesso. De fato, o setor industrial alemão é relativamente mais forte do que o de muitas outras economias altamente desenvolvidas e ricas, como a dos EUA e do Reino Unido. A desindustrialização na Alemanha ocorreu a um ritmo menor do que naqueles países. Não obstante, a Alemanha viu-se também submetida a uma profunda mudança estrutural.

A indústria perdeu quatro milhões de postos de trabalho (de um total de 13,4 milhões) desde 1991. O número de horas trabalhadas declinou 32%. O emprego na indústria aumentou em raras ocasiões, ao passo que o setor de serviços criou 5,6 milhões de novos postos de trabalho ao longo dos últimos 20 anos. A indústria contribuiu com apenas 19% (ou 167 bilhões de euros) do total da produção de 902 bilhões de euros (em valor atualizado) gerada entre 1991 e 2011, enquanto os serviços contribuíam com 79% (ou 714 bilhões de euros). Porém, devido à produtividade crescente, a participação da indústria no valor agregado da economia alemã permaneceu em aproximadamente 25% (com pequenas oscilações cíclicas).

Ainda no comparativo internacional, o forte setor industrial alemão não transformou a Alemanha em um tigre econômico com alto crescimento. Se não olhamos para o crescimento da produção no curto prazo dos anos posteriores à recessão de 2009 (que, de todo modo, apenas recuperou perdas passadas conforme mostra o gráfico 1 acima), o desenvolvimento de longo prazo é muito menos convincente. Os EUA e o Reino Unido, países em geral considerados fracos e dominados por indústrias financeiras inchadas, na realidade cresceram muito mais rápido do que a Alemanha: o PIB dos EUA era 66,3% maior em 2011 do que em 1992 e o PIB britânico 56,9%, ao passo que o alemão crescera apenas 30,5% durante o mesmo período. Uma comparação mais geral das taxas de crescimento e participação da indústria no produto dos países da OCDE não mostra qualquer correlação clara.

O desempenho comercial da Alemanha é invejado por muitos países que sofrem de déficits crônicos em conta corrente e dos resultantes problemas de endividamento, normalmente atribuídos ao declínio da indústria (desindustrialização). Com efeito, o superávit comercial da Alemanha é decorrente da competitividade de sua indústria. Mas, como dependente de exportações que é, essa indústria tem sido muito vulnerável a choques externos (v. gráfico 1 acima). As exportações caíram 16% em 2009. Por outro lado, a Alemanha também é uma forte exportadora de serviços. Com efeito, seu ranking na liga exportadora global é o mesmo segundo lugar tanto em bens (atrás da China) como em serviços (atrás dos EUA). E suas exportações de serviços crescem mais rapidamente do que a de bens. Aquelas cresceram 97,5% entre 1991 e 2011, estas 87,5%, isto é, dez pontos percentuais mais lentamente. Isso não é de surpreender uma vez que o comércio mundial de serviços vem crescendo com maior rapidez do que o comércio de bens.

A fixação da Alemanha pela indústria como a única atividade real de agregação de valor é míope. Particularmente no que concerne às exportações, um país está mais bem posicionado se oferece algo que tem forte demanda de clientes com poder de compra alto e em crescimento. A Alemanha atende essa condição com seus carros e bens de investimento (equipamentos) premium, que estão bem posicionados nos mercados emergentes, com suas altas taxas de crescimento e classe alta em ascensão, fruto da desigualdade crescente. O crescimento precisa de investimento e maquinário e os novos ricos adoram carros de luxo. Mas a indústria financeira, contra a qual os alemães adoram vituperar, também atende a mesma clientela, administrando uma riqueza global de cerca de US$ 70 trilhões. Apenas um por cento de retorno sobre esses ativos supera o valor agregado de toda a indústria alemã. Ambos os setores são vulneráveis a crises de superacumulação.

A indústria alemã pode cair mais lentamente do que a de outros países da OCDE, mas, pelo menos em termos de emprego, ela também está caindo. Uma perspectiva de mais longo prazo revela as semelhanças com a agricultura, que em 1950 ainda empregava 22% da força de trabalho alemã (hoje apenas 2%). A indústria empregava 48% em 1960, comparado a 18% em 2011. O aumento da produtividade em ambos os setores permitiu sua expansão (primeiro a indústria e depois os serviços) e atender a demanda com cada vez menos insumo de mão de obra.

A política econômica da Alemanha sempre se preocupou primordialmente com sua competitividade internacional, que buscou preservar por meio de duas políticas. Primeiro, pela redução de custos, objetivo que dominou as políticas alemãs por um longo tempo. A Alemanha quase sempre tratou de perseguir uma política de contenção salarial e baixa inflação. A consequente desvalorização real da moeda nacional (até 1998, o marco alemão) foi compensada por aumentos nominais periódicos da taxa de câmbio (desvalorizações do dólar americano e de outras moedas em relação ao marco alemão). Dentro da zona do euro, o primeiro processo continuava enquanto o segundo tornava-se impossível, levando à estabilidade e ao contínuo reforço da vantagem competitiva da indústria exportadora alemã. A segunda dimensão, mais dinâmica e voltada para o futuro, busca preservar ou criar uma estrutura de capacidades produtivas que permita alto crescimento da renda interna, sem déficits em conta corrente, ou em outras palavras, exportações fortes a preços altos.

Isto requer uma estrutura de exportação regional e setorial focada em mercados de alto crescimento. Para proteger o padrão setorial contra a competição de baixo custo, a produção alemã tem que ser de alta qualidade. Gastos em P&D, educação e treinamento, e cooperação próxima entre universidades e empresas contribuem para o fortalecimento da indústria alemã. Mais recentemente, o crescimento verde ou a promoção da indústria verde virou moda na política industrial alemã. Medidas como a Lei de Abastecimento de Energia, que subsidia os fornecedores de energia renovável, é apenas uma das muitas iniciativas públicas de apoio a novas indústrias, trazendo efeitos ambientais benéficos como a produção de energia renovável, economia de energia, o armazenamento de energia e para o transporte. Ambientalistas alemães esperam combinar o «esverdeamento» da Alemanha com a criação de empregos e a promoção da exportação tornando a indústria alemã uma líder global nesse campo.

A grande lacuna da política industrial alemã é o setor de serviços. Embora este tenha respondido por quase três quartos de todos os empregos (incluindo os autônomos) e por cerca de 70% do valor agregado da economia alemã em 2010, não há um conceito e/ou estratégia claros para seu desenvolvimento. Pelo contrário, os serviços ainda são comumente considerados um peso para a economia «real», em termos industriais. Em muitos sentidos, a única política direcionada ao setor de serviços foi uma política de baixos salários porque se presumia que a demanda por serviços somente cresceria quando os preços relativos declinassem. A fim de criar mais empregos no único setor onde se poderia esperar que o emprego pudesse crescer razoavelmente, os mercados de trabalho foram reformados, liberalizados ou desregulados para permitir a criação de empregos precários. O reverso da moeda tem sido um crescimento muito baixo da produtividade (até negativo entre 2000 e 2005) do setor de serviços, que, de sua parte, foi corresponsável pelo baixo crescimento da economia como um todo.

Competitividade versus crescimento social

À primeira vista, a economia da Alemanha – em especial sua economia exportadora – beneficiou-se da globalização. A Alemanha internacionalizou seus processos de produção, do que resultou – por comparação internacional – um forte e relativamente grande setor industrial ao lado de um setor de serviços relativamente pequeno. Um exame mais detalhado, entretanto, permite discernir inúmeros problemas decorrentes dessa situação na Alemanha. Por exemplo, por causa de sua forte dependência da indústria exportadora, a economia alemã é muito suscetível a crises externas. Isso afeta não apenas o setor bancário, que na esteira da crise financeira global chegou à beira do desastre e teve que ser socorrido pelo Estado, mas a economia real também. Em torno de menos 5%, o colapso da Alemanha em 2009 esteve entre os piores, por comparação internacional. Embora o desemprego tenha crescido apenas moderadamente, isso ocultou uma queda maciça das horas trabalhadas devido a reduções nos bancos de horas e a jornadas mais curtas.

Ainda sob uma ótica mais de longo prazo, a dinâmica do crescimento e do emprego na Alemanha foi decepcionante em uma comparação internacional. O crescimento foi bastante fraco até 2005 devido à predominância da dependência dos superávits comerciais à custa da demanda interna. Também alarmante é, ainda comparando internacionalmente, o baixo e rápido declínio do crescimento agregado da produtividade. Os números do desemprego na Alemanha mantiveram-se altos por um período considerável, mesmo antes da crise. Graças ao avanço do capitalismo financeiro de mercado e a uma política para o mercado de trabalho que promoveu o emprego precário, os salários reais estagnaram. A desigualdade de renda e de riqueza aumentou mais rapidamente do que em quase todos os outros países da OCDE. Os trabalhadores com baixa qualificação, em particular, continuam impossibilitados de entrar no mercado de trabalho. Assim, mesmo em anos anteriores à crise, cada vez menos pessoas beneficiaram-se do desenvolvimento econômico, enquanto as oportunidades de mobilidade econômica e social deterioravam-se e o risco de pobreza (especialmente dos em idade avançada) crescia. Esses sérios problemas sociais não ameaçam apenas o desenvolvimento futuro, mas a coesão social também.

Na Alemanha, o Estado também abandonou muitas áreas da vida econômica e social nos últimos anos. Isso se reflete, por um lado, na evolução dos gastos governamentais como relação do PIB, que, pouco antes da crise, caía a seu nível mais baixo desde a reunificação. Em consequência disso, o setor público da Alemanha tem hoje um dos mais baixos índices de investimento e de gastos em treinamento inicial e complementar, bem como em infraestrutura pública. Isso diminuiu o crescimento econômico nos últimos anos e está corroendo a base do crescimento futuro. A relação tributos/PIB também caiu sensivelmente na esteira de amplos cortes tributários, em razão dos quais o Estado, somente nos últimos dez anos, abriu mão de recursos da ordem de 350 bilhões de euros e encontra-se em um nível muito baixo na comparação com outros países. Entretanto, o objetivo de usar cortes tributários para estimular o investimento pelas empresas privadas não foi afetado. Em vez disso, esses cortes de impostos reduziram a capacidade redistributiva do sistema tributário alemão. Hoje, ativos e capitais são pouco taxados, o que serve apenas para acelerar ainda mais a desigualdade de renda e de riqueza. Por outro lado, aqueles que dependem da renda do trabalho, em especial as rendas médias – também como consumidores – estão de fato arcando cada vez mais com o imposto agregado e a carga da contribuição. Disso resulta que o Estado e, principalmente, os estados federados (Länder) e os municípios, que arcam com o grosso do investimento público, carecem do vigor financeiro de que necessitam para lidar com as tarefas que se lhes apresentam. Não se conseguiu atingir nem mesmo o objetivo de reduzir a dívida pública. A dívida pública alemã cresceu, mesmo antes da crise, em decorrência do longo período de baixo crescimento econômico e alto desemprego e explodiu na esteira das políticas de resgate financeiro necessárias para a superação da crise atual.

A recuperação da Alemanha depois de 2009 deu-se por conta de pacotes governamentais de estímulo econômico e de políticas monetárias expansionistas levadas a cabo pelos bancos centrais e aplicadas por todo o mundo. A melhoria do mercado de trabalho permitiu ganhos salariais nominais modestos. Entretanto, a economia alemã retornou ao seu desequilibrado modelo de crescimento orientado para exportações. As irrisórias taxas de juros atuais – decorrentes de taxas de juros nominais baixas e de inflação ligeiramente mais alta – também fortalecem o crescimento. O «milagre pós-crise econômica», no entanto, depende da demanda europeia e mundial, como dependia antes da crise. Os países em desenvolvimento e emergentes, que hoje sustentam o crescimento econômico global, estão tendo que enfrentar problemas como o superaquecimento de suas economias, a entrada de capital especulativo e bolhas ameaçadoras nos preços dos ativos. Há consideráveis riscos macroeconômicos e deficiências nas políticas públicas, tanto na Europa como globalmente, que fazem a base da recuperação econômica parecer frágil e a distribuição de seus benefícios, injusta.

A evolução mais provável da economia alemã é a continuação das tendências atuais. A Alemanha tentará manter-se como a principal produtora mundial de equipamentos e carros de alta qualidade. O acesso aos mercados de exportação, se necessário por meio de desvalorização real, continuará sendo uma prioridade. Economizar matéria-prima e energia encaixa-se nesse quadro, já que reduz custos. Produzir equipamentos e carros que usem menos energia também se encaixa nesse padrão, já que isso aumenta a competitividade extra preço das exportações alemãs em um momento em que os consumidores de energia se deparam com tarifas energéticas mais caras. Além disso, é provável que a Alemanha use a ausência de acordos globais como desculpa para empreender apenas modestos esforços para reduzir a emissão de CO2. E não se pode descartar por completo um renascimento de grandes proporções da energia nuclear, embora isso pareça bastante improvável.

Uma política muito melhor, embora menos provável infelizmente, seria a adoção de um novo modelo de crescimento, como o proposto pela Fundação Friedrich Ebert (FES) no marco de seu projeto «Crescimento Social». Esse modelo de crescimento baseia-se na expansão dos serviços, por exemplo, de educação e saúde, para consumo interno. O crescimento do emprego, em particular das mulheres, e da produtividade, por meio de investimento em TI, capital intangível e humano, alicerçariam esse modelo de crescimento do lado da oferta real. Do lado da demanda, uma maior redistribuição através do sistema tributário e salários mais altos assegurariam um desenvolvimento estável da demanda menos dependente de endividamento. Ademais, o crescimento social seria mais ecológico, já que os serviços são muito menos intensivos em energia do que a indústria. Esse crescimento voltado para dentro ainda traria o benefício adicional de desativar a crise na zona do euro, corrigindo os desequilíbrios atuais por meio de maiores importações e uma inversão da desvalorização real.

Páginas web

Comissão Europeia, Eurostat: http://epp.eurostat.ec.europa.eu/portal/page/portal/statistics/search_database.Conselho Alemão de Especialistas Econômicos (Sach­verständigenrat zur Begutachtung der ge­samtwirtschaftlichen Entwicklung, SVR): www.sachverstaendigenrat-wirtschaft.de/zrdeutschland.html.Fundo Monetário Internacional: Dados e Estatísticas, www.imf.org/external/data.htm.Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE): www.oecd.org/statistics/.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Setembro 2013, ISSN: 0251-3552


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